A velocidade com a qual fluem os cadáveres da covid-19 é
inversamente proporcional ao represamento dos embates produzidos na pandemia
pelo processo que o ministro do Meio Ambiente, na reunião ministerial revelada
há um ano, chamou de “passar a boiada”. Parlamentares, ministros, juristas e,
principalmente, o presidente da República se valeram da pandemia para impor sua
agenda sobre um país de ruas esvaziadas e cidadãos crescentemente amedrontados
pelo vírus. São tantos e tão gordos os animais que estão a passar pela porteira
que a boiada entalou.
Os rebanhos
mais visíveis estão no Executivo, mas vêm dos Três Poderes. No Judiciário, a
disputa pela substituição do ministro Marco Aurélio Mello congestionou a
porteira. As tratativas para a escolha influenciam a pauta e movem os arranjos
internos no Supremo Tribunal Federal. A sessão de ontem foi um exemplo disso.
Estava em pauta a liberação de cultos religiosos, mas o que estava em jogo
mesmo era a ofensiva do ministro Kassio Nunes Marques sobre as prerrogativas de
Gilmar Mendes como principal interlocutor do presidente no preenchimento das
vagas dos tribunais.
O próprio
Nunes Marques foi submetido pelo presidente a um beija-mão de Mendes em outubro
do ano passado antes de sua nomeação. Agora se arvora a disputar espaço com
aquele que avalizou sua escolha. Está em jogo a sobrevivência política e a
liberdade de Bolsonaro e de seus filhos. Por isso são tão gordos os bois que se
espremem na porteira. O presidente vê no agrado aos evangélicos o caminho para
a mobilização de uma base de eleitores que, durante a pandemia, ficou ainda
mais dependente espiritualmente das lideranças religiosas. É a aposta que faz
para neutralizar, neste segmento, danos sobre sua imagem advindos do genocídio
que podem atingi-lo até mesmo antes da eleição.
A escolha de
Nunes Marques foi marcada pela tentativa de Bolsonaro de construir um
condomínio de lealdades com Mendes e o Centrão. O aval dos evangélicos à nova
escolha só demonstra um presidente mais isolado e menos confiante nos demais
poderes. Foi ante este isolamento que Nunes Marques resolveu ganhar terreno.
Primeiro na suspeição de Sergio Moro e agora, na liberação de cultos
religiosos.
O
procurador-geral da República, Augusto Aras viu o pêndulo de forças se mexer,
saiu da sombra de Gilmar Mendes e passou a disputar com o advogado-geral da
União, André Mendonça, que tem a preferência de Bolsonaro, o apoio de Nunes
Marques. Ambos apresentaram sua candidatura ontem defendendo o direito de os
fiéis morrerem pela fé. Mendonça foi chamado de delirante por Mendes e Aras, de
cambiante. Já se sabem derrotados, mas imaginam ganhar, mesmo perdendo, a
gratidão dos evangélicos e do presidente a quem buscam agradar.
O desespero
pela vaga vai além e ameaça avançar, na próxima semana, sobre o habeas corpus
que anulou os julgamentos da 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. Nunes
Marques ganhou apoio de Aras para a tentativa de reverter a anulação decidida
pelo ministro Edson Fachin e alimenta a esperança de ter o voto de Luiz Fux. No
limite, porém, pode conseguir mais um voto, de Marco Aurélio Mello, mas
dificilmente será capaz de reverter a decisão que recolocou o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva no jogo.
Contra as
provocações de Nunes Marques, bancadas por Bolsonaro, Mendes tem o poder de
mandar de volta para a primeira instância os processos contra o senador Flávio
Bolsonaro, onde não demoraria a sair um mandado de prisão. Dificilmente o fará
antes que a vaga no STF esteja definida. Como disse ontem em seu contundente
voto em defesa da ciência, “os bobos ficaram fora da Corte”.
Até o voto
contra a suspeição, Nunes vinha aderindo ao pelotão dos garantistas da Segunda
Turma. Interessa a Mendes que continue a fazê-lo, mas, principalmente, que a
próxima vaga não seja preenchida por alguém com os (ou a falta de) predicados
de Nunes Marques. Por isso, limitou-se a mostrar ao presidente o custo de
voltar a nomear um ministro cujo único ativo seja o de se lhe mostrar leal.
O Judiciário
não é o único Poder a estreitar a porteira. O jogo no Orçamento é um boi
gordíssimo. Se o presidente sancioná-lo do jeito que está incorre em crime de
responsabilidade. Se vetá-lo, os parlamentares o lembrarão dos mais de 100
pedidos de impeachment engavetados na mesa diretora da Câmara. Mas o Centrão
esticou a corda nas emendas porque não pretende pautar a cassação do presidente
e confia no acolhimento, pelo Tribunal
de Contas da União, de que dois e dois são cinco.
Enfrentarão a
rebeldia dos técnicos do TCU que,
no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, enfrentaram sindicância interna
por não terem alertado sobre a criatividade criativa. Não o fizeram porque
nunca o haviam agido com tanto rigor em relação a outros governos, mas agora,
escaldados, não abrirão mão de denunciá-la. A saída apontada é a renovação da
calamidade pública, a mesma que permitiu ao governo gastos de mais de R$ 600
bilhões incapazes de impedir que a pandemia atingisse o atual descalabro. Terá
sido, certamente, o genocídio mais caro da história.
Os
parlamentares, liderados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
esperam compensar o rombo em sua imagem, provocado pelo Orçamento, com a
mudança no projeto de compra privada das vacinas. Mantiveram a doação de metade
das doses ao SUS mas introduziram a esperteza de importação sem aval pela
Anvisa, o que impedirá a repartição.
O projeto,
aprovado pela Câmara, segue para o Senado. Agradará a uma parte dos
empresários, especialmente aqueles que ainda estão na canoa de Bolsonaro, mas
não a todos. É, porém, um tiro no pé para as campanhas eleitorais de renovação
dos mandatos parlamentares. O eleitor não gostará de saber que perdeu um
parente porque um endinheirado lhe tomou o lugar na fila da vacinação. Os
parlamentares se associaram à barbárie bolsonarista e, para evitar a reprimenda
do eleitor, estão dispostos até mesmo a mudar o sistema eleitoral. É um dos
próximos bois que está por chegar à porteira, mas está longe de ser o último.
Liberação de
cultos embute disputa pela vaga no Supremo.
Por Maria Cristina Fernandes, no Valor Econômico
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