sexta-feira, 9 de abril de 2021

A boiada entalada na porteira

 


A velocidade com a qual fluem os cadáveres da covid-19 é inversamente proporcional ao represamento dos embates produzidos na pandemia pelo processo que o ministro do Meio Ambiente, na reunião ministerial revelada há um ano, chamou de “passar a boiada”. Parlamentares, ministros, juristas e, principalmente, o presidente da República se valeram da pandemia para impor sua agenda sobre um país de ruas esvaziadas e cidadãos crescentemente amedrontados pelo vírus. São tantos e tão gordos os animais que estão a passar pela porteira que a boiada entalou.

 

Os rebanhos mais visíveis estão no Executivo, mas vêm dos Três Poderes. No Judiciário, a disputa pela substituição do ministro Marco Aurélio Mello congestionou a porteira. As tratativas para a escolha influenciam a pauta e movem os arranjos internos no Supremo Tribunal Federal. A sessão de ontem foi um exemplo disso. Estava em pauta a liberação de cultos religiosos, mas o que estava em jogo mesmo era a ofensiva do ministro Kassio Nunes Marques sobre as prerrogativas de Gilmar Mendes como principal interlocutor do presidente no preenchimento das vagas dos tribunais.

O próprio Nunes Marques foi submetido pelo presidente a um beija-mão de Mendes em outubro do ano passado antes de sua nomeação. Agora se arvora a disputar espaço com aquele que avalizou sua escolha. Está em jogo a sobrevivência política e a liberdade de Bolsonaro e de seus filhos. Por isso são tão gordos os bois que se espremem na porteira. O presidente vê no agrado aos evangélicos o caminho para a mobilização de uma base de eleitores que, durante a pandemia, ficou ainda mais dependente espiritualmente das lideranças religiosas. É a aposta que faz para neutralizar, neste segmento, danos sobre sua imagem advindos do genocídio que podem atingi-lo até mesmo antes da eleição.

A escolha de Nunes Marques foi marcada pela tentativa de Bolsonaro de construir um condomínio de lealdades com Mendes e o Centrão. O aval dos evangélicos à nova escolha só demonstra um presidente mais isolado e menos confiante nos demais poderes. Foi ante este isolamento que Nunes Marques resolveu ganhar terreno. Primeiro na suspeição de Sergio Moro e agora, na liberação de cultos religiosos.

O procurador-geral da República, Augusto Aras viu o pêndulo de forças se mexer, saiu da sombra de Gilmar Mendes e passou a disputar com o advogado-geral da União, André Mendonça, que tem a preferência de Bolsonaro, o apoio de Nunes Marques. Ambos apresentaram sua candidatura ontem defendendo o direito de os fiéis morrerem pela fé. Mendonça foi chamado de delirante por Mendes e Aras, de cambiante. Já se sabem derrotados, mas imaginam ganhar, mesmo perdendo, a gratidão dos evangélicos e do presidente a quem buscam agradar.

O desespero pela vaga vai além e ameaça avançar, na próxima semana, sobre o habeas corpus que anulou os julgamentos da 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. Nunes Marques ganhou apoio de Aras para a tentativa de reverter a anulação decidida pelo ministro Edson Fachin e alimenta a esperança de ter o voto de Luiz Fux. No limite, porém, pode conseguir mais um voto, de Marco Aurélio Mello, mas dificilmente será capaz de reverter a decisão que recolocou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no jogo.

Contra as provocações de Nunes Marques, bancadas por Bolsonaro, Mendes tem o poder de mandar de volta para a primeira instância os processos contra o senador Flávio Bolsonaro, onde não demoraria a sair um mandado de prisão. Dificilmente o fará antes que a vaga no STF esteja definida. Como disse ontem em seu contundente voto em defesa da ciência, “os bobos ficaram fora da Corte”.

Até o voto contra a suspeição, Nunes vinha aderindo ao pelotão dos garantistas da Segunda Turma. Interessa a Mendes que continue a fazê-lo, mas, principalmente, que a próxima vaga não seja preenchida por alguém com os (ou a falta de) predicados de Nunes Marques. Por isso, limitou-se a mostrar ao presidente o custo de voltar a nomear um ministro cujo único ativo seja o de se lhe mostrar leal.

O Judiciário não é o único Poder a estreitar a porteira. O jogo no Orçamento é um boi gordíssimo. Se o presidente sancioná-lo do jeito que está incorre em crime de responsabilidade. Se vetá-lo, os parlamentares o lembrarão dos mais de 100 pedidos de impeachment engavetados na mesa diretora da Câmara. Mas o Centrão esticou a corda nas emendas porque não pretende pautar a cassação do presidente e confia no acolhimento, pelo Tribunal de Contas da União, de que dois e dois são cinco.

Enfrentarão a rebeldia dos técnicos do TCU que, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, enfrentaram sindicância interna por não terem alertado sobre a criatividade criativa. Não o fizeram porque nunca o haviam agido com tanto rigor em relação a outros governos, mas agora, escaldados, não abrirão mão de denunciá-la. A saída apontada é a renovação da calamidade pública, a mesma que permitiu ao governo gastos de mais de R$ 600 bilhões incapazes de impedir que a pandemia atingisse o atual descalabro. Terá sido, certamente, o genocídio mais caro da história.

Os parlamentares, liderados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), esperam compensar o rombo em sua imagem, provocado pelo Orçamento, com a mudança no projeto de compra privada das vacinas. Mantiveram a doação de metade das doses ao SUS mas introduziram a esperteza de importação sem aval pela Anvisa, o que impedirá a repartição.

O projeto, aprovado pela Câmara, segue para o Senado. Agradará a uma parte dos empresários, especialmente aqueles que ainda estão na canoa de Bolsonaro, mas não a todos. É, porém, um tiro no pé para as campanhas eleitorais de renovação dos mandatos parlamentares. O eleitor não gostará de saber que perdeu um parente porque um endinheirado lhe tomou o lugar na fila da vacinação. Os parlamentares se associaram à barbárie bolsonarista e, para evitar a reprimenda do eleitor, estão dispostos até mesmo a mudar o sistema eleitoral. É um dos próximos bois que está por chegar à porteira, mas está longe de ser o último.

Liberação de cultos embute disputa pela vaga no Supremo.

Por Maria Cristina Fernandes, no Valor Econômico    


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