A tentativa de colocar em votação no Senado na última quarta-feira (28/04) o Projeto de Lei 510/2021 — que flexibiliza as regras para regularizar áreas desmatadas ilegalmente — voltou a expor um racha no agronegócio brasileiro.
De um lado, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA),
principal representante de proprietários rurais brasileiros, defende a
aprovação do projeto, elaborado pelo senador Irajá Abreu (PSD-TO) e apoiado
pelo governo Jair Bolsonaro.
Já o presidente da principal entidade que representa grandes empresas do
setor critica a proposta e diz que ela não foi debatida com a sociedade.
Após protestos da oposição, a votação do projeto foi adiada. Membros da
bancada ruralista devem tentar pautá-la de novo na semana que vem.
Em entrevista à BBC News Brasil, o presidente da Associação Brasileira do
Agronegócio (Abag), Marcello Brito, diz que a proposta de Irajá premiaria quem
cometeu ilegalidades.
"O Brasil precisa parar com essa coisa de anistiar irregularidades.
Essa lei aí nada mais é do que mais uma anistia premiando quem não fez as
coisas direito", diz Brito.
A Abag, associação que Brito preside desde 2019, é composta por 67
empresas ou associações do setor. Entre seus integrantes há pesos pesados da
agroindústria, como JBS, Bayer, BASF, Syngenta, Cargill, John Deere e Raízen. É
ainda composta por bancos, como Santander, ItaúBBA e Banco do Brasil.
A Abag é parte da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, que na
quarta-feira (28/04) divulgou uma carta crítica ao PL 510/2021.
Segundo a coalizão — que agrega empresas, ONGs ambientalistas e
associações setoriais —, o PL "pode causar grande prejuízo às florestas
públicas e às populações tradicionais da Amazônia brasileira".
O PL 510/2021 mudaria as regras para a privatização de terras federais
desmatadas ilegalmente e teria maior impacto na Amazônia, onde essas áreas se
concentram. O texto se baseia numa Medida Provisória (MP) editada pelo
presidente Jair Bolsonaro em 2019, que caducou por não ter sido aprovada no
Congresso a tempo.
A proposta de Irajá muda de 2011 para 2014 o chamado marco temporal das
ocupações — prazo até o qual áreas públicas desmatadas podem ser privatizadas
segundo os trâmites já existentes. A iniciativa cria ainda uma brecha para a
regularização de áreas derrubadas atualmente ou no futuro.
Defensores do projeto dizem que ele promoveria a "regularização
fundiária" em terras da União, o que impulsionaria a produção de alimentos
e facilitaria o controle do desmatamento.
Em nota enviada à BBC no início de abril, o autor da proposta, senador
Irajá Abreu (PSD-TO), filho da também senadora Kátia Abreu (PSD-TO), disse
buscar atender "milhares de famílias de produtores que aceitaram o desafio
proposto pelo governo de ocupar áreas não povoadas na década de 1970 e até
hoje, passados mais de 50 anos, não receberam os títulos de suas
propriedades".
Mas para Marcello Brito, da Associação Brasileira do Agronegócio, se o
objetivo é atender quem migrou para a Amazônia há décadas, não faz sentido
contemplar desmates ocorridos nos últimos anos.
Segundo ele, mudar o chamado marco temporal "a cada ano que passa,
mais para cima, não é a concretização da justiça para quem foi para lá (Amazônia)
30 anos atrás". A última alteração no marco temporal das ocupações ocorreu
em 2017, quando o prazo passou de 2004 para 2011.
Questionado sobre quem se beneficiaria com a proposta de Irajá, Brito
respondeu: "Prefiro não entrar nisso. Com certeza não são aqueles que
esperam há 20, 30 anos que o governo faça valer sua obrigação."
Brito diz que a "regularização fundiária talvez seja um dos pontos
mais importantes para a consolidação do processo de desenvolvimento do
Brasil".
Mas ele afirma que a legislação atual já dá conta do tema. "As coisas
não deixam de acontecer por causa dessa ou daquela lei, elas não acontecem por
falta de estrutura dos órgãos responsáveis por fazer valer a lei fundiária
brasileira.
Nos últimos anos, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária), principal órgão responsável pela regularização fundiária no país, tem
perdido verbas e servidores.
"A gente fica se escondendo atrás de leis salvadoras, mas o processo
de regularização no Brasil vem a cada ano que passa mais lento", diz o
presidente da Abag.
"À medida que a tecnologia aumenta, que aumenta a inovação, acesso a
satélite, digitalização, o que explica a gente não conseguir fazer o processo
andar mais rápido?", questiona.
Para Brito, não basta regularizar propriedades privadas; é preciso também
cuidar para que áreas públicas vizinhas não sejam invadidas, tema não
contemplado pela proposta de Irajá.
Ele diz que a proposta não foi debatida e é quase uma cópia da MP 910,
"que já foi rejeitada por boa parte da sociedade no ano passado".
Afirma ainda que a tentativa de aprovação ocorre num momento em que a
imagem do Brasil "já está muito desgastada" por conta da postura
ambiental do governo e do avanço do desmatamento na Amazônia.
"Você tem um erro estratégico de tentar reavivar algo que já foi
derrotado. Você tem um erro de timing. Num momento de pacificação das relações
ambientais do país, você vem com algo goela abaixo, dessa forma?"
A BBC News Brasil enviou as críticas de Brito ao senador Irajá, mas ele
não respondeu até a publicação desta reportagem.
No início do mês, o senador afirmou por meio de sua assessoria que a
"regularização fundiária garante empregos e renda no campo, além de
permitir que os órgãos de controle (...) possam fiscalizar se as leis estão
sendo cumpridas por seus proprietários".
"A ideia é trazer produtores e famílias para dentro da formalidade,
dar dignidade, estimulando a produção formal e econômica, dando a essas pessoas
os seus direitos até para poder cobrar delas as suas obrigações junto ao Estado",
afirmou.
A BBC também pediu uma entrevista à Confederação Nacional da Agricultura e
Pecuária (CNA) sobre a proposta de Irajá, mas o órgão disse que não
responderia. Em seu site, a CNA diz ser favorável à aprovação.
Racha no
agronegócio
As críticas à proposta de Irajá por parte de Brito — presidente da
principal associação empresarial do agronegócio — se dão num momento de
crescentes divergências entre parte relevante do agro-empresariado e grandes
proprietários rurais.
Em setembro passado, a Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de
Soja) — representante dos responsáveis pelo item agrícola mais exportado pelo
país — deixou a Abag por divergir das posições da entidade em relação ao
desmatamento na Amazônia.
Dias antes, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura — da qual a
Abag faz parte — havia divulgado uma carta com sugestões para combater o
desmatamento.
Na época, o então presidente da Aprosoja, Bartolomeu Braz, criticou a Abag
por trabalhar na coalizão com "ONGs e banqueiros que têm outros interesses
dentro do Brasil".
Em entrevista ao Canal Rural, Braz disse que a associação empresarial
tinha "pouco acesso" ao que ocorria "dentro da porteira" —
expressão que se refere à atividade dentro das fazendas.
A Aprosoja é próxima de Bolsonaro e anunciou que apoiará protestos em maio
em defesa do presidente e contra medidas restritivas adotadas por governadores
e prefeitos contra a covid-19.
Em 23 de abril, o novo presidente da Aprosoja, Antônio Galvan, visitou a
Terra Indígena Sangradouro, em Mato Grosso, e disse que apoiaria comunidades
indígenas que queiram produzir soja — tipo de iniciativa que vem sendo
estimulado pelo governo Bolsonaro.
A Aprosoja foi uma das grandes entidades de proprietários rurais
brasileiros a assinar um manifesto em defesa do ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, em maio de 2020, ao lado de entidades como a Abrafrigo
(frigoríficos), Abrafrutas, SRB (Sociedade Rural Brasileira) e Única
(cana-de-açúcar).
O manifesto foi uma resposta a uma campanha promovida por ONGs contra
Salles após o ministro sugerir, em reunião no Palácio do Planalto que teve o
conteúdo divulgado por decisão judicial, que o governo deveria aproveitar a
pandemia para "passar a boiada", simplificando e eliminando normas
ambientais.
Para Marcello Brito, da Abag, as visões divergentes entre empresas do
agronegócio e fazendeiros se devem ao grau distinto de exposição que cada grupo
tem a consumidores cada vez mais preocupados com o meio ambiente.
"Quanto mais próximo do consumidor, mais pressão você recebe e mais
antenado você está com as mudanças geracionais. Quanto mais longe você está, ou
seja, lá na produção primária, menos pressão você sofre e menos influência das
tendências de consumo de mercado", diz Brito.
Mas ele afirma que mesmo os proprietários rurais hoje relutantes em mudar
de postura serão afetados. "A pressão pode demorar a chegar lá embaixo,
mas chega."
Nos últimos meses, acompanhando concorrentes de outras partes do mundo,
grandes empresas brasileiras do setor de carnes anunciaram metas para atingir
equilíbrio entre a emissão e absorção de gases causadores do efeito estufa.
Grandes empresas globais também têm anunciado apoio a iniciativas
governamentais para preservar florestas e privilegiar energias limpas.
"As questões ambientais vieram para ficar. São questões geracionais.
Essa talvez seja a maior dificuldade para o público mais velho hoje", diz
Brito.
O presidente da Abag diz que, de fato, muitas críticas externas à postura
ambiental do Brasil camuflam interesses de competidores do país — argumento
frequentemente usado pelo governo.
"Mas acho que isso faz parte do jogo. Num mundo comercial,
competitivo, o seu concorrente não facilita sua vida, ele atrapalha sua vida. O
que cabe a você é mostrar seus ativos e como eles são trabalhados", diz
Brito.
"O Brasil tem um ativo ambiental que, lamentavelmente, estamos
trabalhando como passivo. Em vez de sermos os protagonistas desse processo e
continuarmos o liderando, abrimos mão pra ficar atrás, sendo julgados e
subjugados por outros."
Ele também atribuiu as divergências internas no agronegócio à forma com
que cada grupo se relaciona com o governo.
"Um grupo está olhando para o mercado, e o outro está olhando para um
posicionamento político. No nosso caso, não fazemos política, fazemos a defesa
do agronegócio brasileiro em relação ao que ele necessita para sua expansão
mundial, independente de quem esteja no governo."
Brito afirma que a "mudança de postura" de Bolsonaro em evento
recente sobre mudanças climáticas convocado pelo presidente dos EUA, Joe Biden,
mostra que seu lado "está com a razão".
Ao discursar no evento, o presidente brasileiro - que em outras ocasiões
chegou a culpar ONGs e indígenas pelo desmatamento na Amazônia - adotou um tom
mais brando e disse que seu governo combateria a destruição da floresta.
"Parabenizo a chancelaria brasileira pelo discurso escrito. Foi um
discurso que não comprometeu", afirma Brito.
Mas ele diz não saber se a mudança no tom se traduzirá em ações concretas.
"Se o que ele colocou vai virar realidade ou não, é outra história.
Para nós, está difícil de acreditar, porque a narrativa não corresponde aos
fatos — pelo menos é o que temos visto nesses dois anos de governo."
Por João
Fellet, na BBC News
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