Além da mobília, caminhões carregaram sonhos e desejos de uma moradia sem despejo | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte |
“Aqui a busca é por moradia, não é criminalidade e nem violência”
A
Defensoria Pública de São Paulo pediu a suspensão do cumprimento da ordem de
reintegração de posse. O pedido foi negado na segunda instância pelos
desembargadores Ricardo Pessoa de Mello Belli, Cláudia Grieco Tabosa Pessoa e
Mourão Neto. Na decisão de segunda instância, o relator Ricardo Pessoa de Mello
Belli disse que “a protelação do cumprimento da ordem liminar, para aguardo de
providências do Poder Público destinadas a promover o assentamento dos réus,
não teria outro efeito que não o de agigantar a invasão”
Se
do lado de fora alguns policiais conseguiam sorrir, do lado de dentro do
terreno de 12 mil m², boa parte de terra batida recheado de barracos de
madeira, o semblante das pessoas era de cansaço por noites em claro, além do desespero
de não saber como será o amanhã.
Um
retrato fiel da desolação podia ser visto no rosto da dona de casa Maria José
dos Santos, 62 anos. Solitária, a idosa estava sentada em uma cadeira quando a
reportagem se aproximou para ouvir sua história e o porquê daquela solidão
naquele momento. “É a primeira vez que estou passando por isso. Não tenho
palavras”. Questionada sobre para onde levaria seus poucos pertences assim que
o caminhão contratado pela Igreja Internacional da Graça de Deus, proprietária da
área e responsável pela ação na Justiça, ela olhou para o céu como se pedisse
forças divinas e soltou: “Não sei para onde vou. Talvez para uma nova ocupação.
Estou sem dormir. Só Jesus”.
Durante
a conversa, explicou o motivo por permanecer sentada e fazer uso de uma bengala
durante os poucos minutos que consegue ficar em pé. “Quebrei o pé e minha perna
está atrofiando”, diz, apontando as cicatrizes que possui no membro inferior
direito. Antes de se despedir, a idosa ainda contou que chegou ao local há dois
meses, após cansar de apanhar do ex-marido. “Para casa não volto”, ressaltou.
Enquanto
a reportagem conversava com Maria José, um barulho chamava a atenção. Ao olhar
mais adiante, um homem batia um martelo contra compensados de madeira. Sua
intenção não era fixar estacas, mas remover os objetos que durante seis meses
serviram como moradia para ele, sua esposa e sua filha de oito anos. O homem,
que trabalhava de maneira rápida, aproveitando os minutos antes da polícia
tomar o local e as retroescavadeiras completaram o serviço de demolição, era o
ajudante de obra Rodrigo Teixeira Miguel, 27. “Não posso desperdiçar [madeira],
depois não tenho como arrumar outra. Único dinheiro que ganho é para sustentar
a família”. A habilidade com o martelo só perdeu o ritmo ao ser indagado qual
seria o seu destino. “Por enquanto para nenhum lugar, não tenho para onde ir”,
para, logo na sequência, voltar ao trabalho de despregar as madeiras.
Se a
área pertence a um religioso de vertente evangélica, tantos outros evangélicos
das mais diversas denominações, menos abastadas do que a Igreja da Graça de
Deus, construíram ali suas esperanças por dias melhores. Um deles era o pastor
Edilson de Souza Barreto, 52, revoltado com a postura de seu correligionário
rico, o missionário R.R. Soares, líder da congregação que pediu à Justiça o
despejo. “Esse é um falso profeta. O que o R.R. Soares está fazendo com as
famílias é ser um falso profeta”.
Quando
da primeira visita da Ponte à Favela Penha Brasil, a reportagem tomou
conhecimento da história de Karine Alcantara Silveira, 41, mãe de um
adolescente autista, que tinha como brinquedo três litros de leite envoltos em
fita adesiva. Assim como naquele dia, a renda da mulher continua a ser formada
apenas pelo benefício de um salário mínimo a qual o jovem tem direito. Em boa
parte do despejo, o menino, sempre grudado com a mãe, não estava no local.
“Deixei ele dormindo na casa da minha irmã, não é bom isso para ele”. No
entanto, assim que acordou, ele quis encontrar Karine, o que fez com que o jovem
permanecesse por um curto tempo no local, até que a mulher o levasse novamente
até a tia. “Não tenho para onde ir. Estou esperando uma luz no fim do túnel”.
Sem comer há três dias devido à preocupação, a mulher chegou a cambalear, sendo
amparada por outros moradores, que lhe ofereceram iogurte e um lanche.
Primeiro
despejo de muitos ali, que se viram afetados pelo desemprego durante a
pandemia, o semblante a cada minuto que passava variava da tristeza com a falta
de ter para onde ir com o medo de uma ação violenta por parte da PM. O dia já
tinha amanhecido quando a Força Tática do 9° Batalhão de Polícia Militar
Metropolitano passou a encenar que entraria no local.
Gritos
de comando, sobe e baixa escudo, sobe e baixa cassetete, além de formações
táticas deixaram os moradores ressabiados com o possível uso de armamento menos
letal pela polícia, como bombas e balas de borracha.
“Aqui a busca é por moradia, não é
criminalidade e nem violência”, disse o músico Alexandro Ferreira da Silva, 42,
uma das pessoas escolhidas pelos moradores para ser uma liderança do local,
criticando o cerco policial.
Durante
todo o tempo uma mulher andava de um lado ao outro dando atenção às famílias e
vez ou outra conversando com os comandantes da ação policial. Professora de carreira
e atualmente ocupando uma vaga de vereadora em São Paulo, Silvia Ferraro
(PSOL), se mostrou aborrecida por nenhum projeto de lei ter sido sancionado a
tempo de evitar a reintegração de posse na Penha Brasil. “É preciso projetos
que impeçam despejos na pandemia. Na Câmara [Municipal] não entramos com
projeto na expectativa da aprovação na Alesp [Assembleia Legislativa do Estado
de São Paulo] no âmbito estadual”, explicou.
O
texto na Alesp mencionado por Silvia foi aprovado em primeira votação, no entanto,
repousa nas galerias do Legislativo paulista aguardando quórum para a análise
de emendas. Um projeto que visa suspender remoções durante pandemia também foi
protocolado em âmbito federal. Aprovado pelos deputados, aguarda ser apreciado
pelo Senado.
Se
ainda não há uma lei específica sobre o tema, o remoção vai na contramão de
recomendação do Conselho Nacional de Justiça, para que magistrados “avaliem com
cautela o deferimento de tutelas de urgência que tenham como objetivo a
desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, principalmente quando
envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica, enquanto a
pandemia do novo coronavírus persistir”. Uma recomendação similar também foi
pauta da Organizações das Nações Unidas ao Brasil, país em que são registrados
duas mil mortes por dia pela doença. O pedido foi comunicado em agosto de 2020,
assinado pelo relator especial sobre o direito à moradia, Balakrishnan
Rajagopal.
Assim
como os moradores, a vereadora achou desnecessária a presença do grande
contingente policial, com cerca de 120 oficiais e soldados, segundo o major
Reco. “As pessoas acham que violência é só quando tem agressão física, mas as
crianças que estão aqui vão ficar traumatizadas para o resto da vida.”
Por
volta das 9h os primeiros caminhões partiram levando madeira, móveis,
eletrônicos, sonhos e desejos de quem morava ali. Assim como todos que
habitavam a favela, Sandra Costa da Silva, 23, alegou que não tinha para onde
ir. “Vou levar só os móveis para a casa da minha mãe [no Jardim Vista Alegre,
na mesma região]. Para onde eu vou, eu não sei”, disse, enquanto amamentava o
filho de dois meses.
Dono
do terreno, o milionário Romildo Ribeiro Soares, ou R.R. Soares, não deu as
caras no local. Como seu representante estava o advogado Leonardo Girundi.
Questionado pela reportagem sobre qual a destinação será dada ao terreno que,
segundo os moradores, era um monte de mato até a chegada deles, afirmou que a
Igreja Internacional da Graça de Deus tem uma série de projetos para o espaço.
“A igreja tem um projeto de atendimento para a comunidade, além de um templo”.
Quem
também não parou um minuto, gastando o salto no chão de terra batida, foi a
advogada das famílias, a criminalista Karina Rodrigues de Andrade, 39, que
atuou junto à Defensoria Pública tentando um desfecho feliz para os sem-teto.
Em sua petição na tentativa de barrar a ação, Karina justificou que o terreno
possui dívidas de IPTU no entorno de R$ 200 mil. No entanto, Girundi negou a
existência de tal débito. Para ele, as dívidas contraídas junto à prefeitura
são recentes, multas por construção irregular com os barracos erguidos desde
dezembro.
Aborrecida
com a juíza Fernanda de Carvalho Queiroz, da 4ª Vara Civil do Fórum de Santana,
e com desembargador Ricardo Belli, do Tribunal de Justiça, responsáveis por
decretarem remoção, Karina pontuou que o lado mais fraco é sempre
desfavorecido. “No final das contas a Justiça tem lado. Sempre tem.”
Procurada,
a Prefeitura de São Paulo informou que “a área é particular e a reintegração de
posse foi determinada pela Justiça. A Administração Municipal informa que as
famílias que ocupam a área foram cadastradas pela Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social e receberam orientações sobre a rede
socioassistencial, acolhimento e cadastro para programas de transferência de
renda. Também foi colocado à disposição das famílias, o Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) Casa Verde. Até o momento, cinco famílias aceitaram o
acolhimento.
O
Núcleo de Solução de Conflitos da Sehab atuou no sentido de mediar uma saída
voluntária do terreno. A secretaria oferta também o cadastro nos programas
habitacionais do município. Os ocupantes não se enquadram nos critérios para
atendimento via auxílio aluguel, conforme os parâmetros definidos na Portaria
SEHAB 131/15”.
Por Por Paulo Eduardo
Dias, no Ponte Jornalismo
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