Com indicações
do Centrão, contratos milionários ficaram com microempresas sem sedes próprias
e com firmas investigadas na Operação Lava Jato
Parte da verba
do orçamento secreto revelado pelo Estadão foi parar nos cofres de empresas
ligadas a políticos e também de firmas que já figuraram nas páginas de outro
escândalo, a operação Lava Jato. Uma análise da destinação do dinheiro mostra
estabelecimentos caseiros fechando contratos de dezenas de milhões de reais
para compra de maquinário pesado.
Na quarta-feira, dia 19, o subprocurador-geral da República junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) Lucas Furtado formulou uma
representação para que sejam apuradas possíveis irregularidades envolvendo as empresas contratadas com esses
recursos. O assunto será agora investigado pela área técnica.
"É óbvio - deve ser registrado por dever de ofício - que nem todas as
empresas tenham atuado de forma ilícita na obtenção dos contratos. Cabe, contudo,
ao controle externo,
identificar padrões de atuação", escreveu Furtado na representação.
O esquema do orçamento secreto foi criado pelo presidente Jair Bolsonaro e
operado com verba do Ministério do Desenvolvimento Regional,
uma pasta loteada pelo Centrão. Com o aval do Planalto, um grupo de deputados e
senadores pôde impor o que seria feito com ao menos R$ 3 bilhões. Toda
negociação foi sigilosa e fere a lei orçamentária, o que pode levar o
presidente a responder por crime de responsabilidade.
A pasta comandada pelo ministro Rogério Marinho recebeu a maior parte dos
recursos em 2020: R$ 8,3 dos 20,1 bilhões. O dinheiro foi usado pela própria
pasta e por órgãos ligados a ela, como o Departamento Nacional de Obras Contra
a Seca e a Companhia de Desenvolvimento do
Vale do São Francisco, a Codevasf (Codevasf).
Uma das empresas na mira do TCU é
a JND Representações. Ela fechou três contratos com a Codevasf no fim de 2020
para fornecer maquinário pesado, totalizando R$ 11,04 milhões. Um feito e tanto
para uma microempresa aberta em 2018, sediada em um apartamento residencial e
comandada por um jovem de 29 anos. A JND tem capital social de R$ 50 mil - ou
seja, este é o valor do investimento inicial.
Os contratos foram fechados em uma indicação do ex-presidente do Senado, Davi
Alcolum- bre (DEM-AP).
Segundo o Fisco, as microempresas como a JND devem ter receita bruta anual que
não ultrapasse R$ 360 mil - valorbem inferior aos contratos da JND com a
Codevasf. No caso desses contratos, a JND sagrou-se vencedora dentro da cota
destinada a pequenas empresas. A sigla "JND" faz referência ao nome
do dono. Jonathan Allison Dias é um engenheiro civil de 29 anos e de origem
mineira. Sua empresa parece ser especialista em licitações da Codevasf: foram onze desde agosto de 2020. A
firma não participou de outras licitações do
Em um dos certames, a Codevasf arrematou da JND seis motoniveladoras de 193
cavalos de potência e 17 toneladas de peso, por R$ 656,5 mil cada uma. O valor
total é de R$ 3,9 milhões. No outro edital, a JND vendeu 11 escavadeiras
hidráulicas por R$ 6,6 milhões. Em ambos os casos, os equipamentos foram
comprados "com vistas a atender o Estado do Amapá".
Questionado pela reportagem, Jonathan Allison afirmou não ter qualquer
conhecimento sobre a indicação de Alcolumbre e que sequer o conhece.
"Minha empresa cumpre com todos os requisitos de qualificação exigidos
pelo edital." A Codevasf informou que os contratos vencidos pela JND
"foram realizados no site oficial de Compras do Governo Federal, onde ficam
registrados todos os atos praticados pelo pregoeiro responsável".
A empresa baiana Liga Engenharia Ltda não tinha contrato com o governo federal
até setembro de 2019. Foi quando começou a ganhar uma série de licitações na Codevasf e no
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), órgãos aparelhados pelo
Centrão. Em 1 ano e 3 meses firmou oito contratos com valores somados de R$ 58
milhões, dos quais já recebeu R$ 53 milhões.
Um sócio da empresa é cunhado de um sobrinho do senador Fernando Bezerra Coelho
(MDB-PE). Foi um Termo de Execução Descentralizada indicado pelo senador, em
2019, antes da criação do orçamento secreto, que representou o primeiro grande
aporte na empresa, de R$ 28 milhões. A maior parte foi para serviço de
pavimentação asfáltica em vias urbanas e rurais de municípios na região de
atuação da 3.ª Superintendência Regional da Codevasf, em Petrolina-PE. O chefe
da superintendência, Aurivalter Cordeiro, é ex-assessor de Bezerra Coelho.
Do orçamento secreto, a empresa deve receber R$ 18 milhões da Codevasf por
novos contratos. São os valores previstos em uma licitação que a empresa venceu, mas que a área técnica do TCU quer suspender. A Liga foi
uma das dezoito empresas a ganhar licitações consideradas
irregulares por auditores para obras de pavimentação.
O TCU deve retomar a
análise do caso nesta quarta-feira. No caso da Liga, esses R$ 18 milhões devem
ser bancados por transferências feitas pelo ministério para a Codevasf por
indicações do senador Fernando Bezerra Coelho e do seu filho, deputado Fernando
Filho (DEM-PE), bem como do presidente da Câmara, Arthur Lira
(Progressistas-AL).
Procurada, a Codevasf disse que "relações sociais ou familiares de sócios
de empresas participantes desses procedimentos são desconhecidas e não integram
o rol de critérios de classificação ou desclassificação". Procurados, os
parlamentares e a empresa não deram retorno.
Ética. No bolo de R$ 2 bilhões do orçamento secreto destinados às empresas há
ainda outras firmas ligadas à políticos. Uma delas é a empreiteira Ética
Construtora, sediada em Goiânia (GO) e que pertence à família do ex-deputado
federal Marcos Abrão (Cidadania-GO).
A Ética foi contratada pela Codevasf para realizar serviços no Piauí com
recursos direciona- dos pelo presidente nacional do PP, o senador Ciro Nogueira
(PI), e pelo governador de Brasília, Ibaneis Rocha (MDB). O dinheiro empenhado
(isto é, reservado pelo governo) para a firma chega a R$ 22 milhões. Ciro
Nogueira também está relacionado à outra empresa que recebeu recursos do
orçamentos secreto. A agência de viagens Open Tour, de Teresina (PI), pertence
a Ermelinda Jacob. Ela é casada com Roberto Théophile Jacob, padrinho de
casamento do senador. Questionado pela reportagem, Ciro Nogueira não respondeu.
A Open-Tour recebeu em 2020 R$ 104 mil da Companhia Brasileira de Trens Urbanos
(CBTU), empresa pública ligada ao Desenvolvimento Regional.
Ao Estadão, a CBTU disse que a firma venceu uma licitação em agosto de 2019, da qual participaram 23 empresas.
Construtoras que já foram investigadas na Lava Jato também receberam do
orçamento secreto. É o caso da Queiroz Galvão e da Ferreira Guedes SA. O
Ministério do Desenvolvimento Regional
afirma que "realiza processos licitatórios que são submetidos às normas e leis brasileiras". E que não
pode impedir as empresas de participar de licitações por terem sido alvo de investigação, sem que
tenham sido proibidas pela Justiça.
? Ações e reações "É óbvio que nem todas as empresas tenham atuado de
forma ilícita na obtenção dos contratos. Cabe, contudo, ao controle externo, identificar padrões
de atuação e, conforme o caso, decidir pela abertura do devido contraditório a
cada uma das empresas." Lucas Furtado SUBPROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
"O ministério realiza processos licitatórios com diversas empresas
privadas que são submetidas as normas e leis brasileiras, em que são exigidas uma série de documentos
e certidões para sua habilitação e participação no certame."
NOTA DO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL PARA ENTENDER
Esquema deu R$ 3 bi em 2020 O orçamento secreto é um esquema montado por Jair
Bolsonaro em 2020 para ganhar apoio político. Deputados e senadores fecharam
acordos com o governo para escolher, naquele ano, o destino de ao menos R$ 3
bilhões do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Ao contrário das emendas individuais, nas quais o dinheiro é dividido de forma
equânime, nas emendas RP 9 o valor de cada político é decidido pelo Planalto.
As informações sobre qual político indicou o quê não são públicas.
O Ministério Público do TCU investiga se Bolsonaro
cometeu crime de responsabilidade por desrespeito à Lei Orçamentária, que
impede o Congresso de impor como gastar esses recursos.
Por André Shalders e Breno Pires Vinícius Valfré, em O
Estado de S. Paulo
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