Luiz Gama foi figura-chave no movimento abolicionista brasileiro |
Em um dia do mês junho de 1869, uma nota no jornal chamou a atenção de Luiz Gama, advogado considerado um herói nacional por seu ativismo abolicionista no século 19. A notícia relatava que a família do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, um dos homens mais ricos do Império, estava brigando na Justiça pelo espólio do patriarca, morto repentinamente em Portugal.
Ferreira Netto tinha uma grande fortuna: 3 mil contos
de réis (cerca de R$ 400 milhões em valores atuais), distribuídos em inúmeras fazendas,
armazéns comerciais, sociedade em empresas lucrativas, e centenas de pessoas
negras escravizadas em suas propriedades.
Em uma linha de seu testamento, publicado em um jornal
um ano antes, o comendador fez um pedido comum entre grandes proprietários de
escravos da época: depois de sua morte, ele gostaria que todos fossem
libertados. A "alforria post mortem" era vista como uma espécie de
"redenção moral e de consciência", pois, ao final da vida, os
escravocratas também queriam garantir um espacinho no céu.
Ao ler a notícia, Luiz Gama procurou saber se a
vontade do morto havia sido cumprida: as 217 pessoas escravizadas pelo
comendador tinham sido libertadas como determinava o testamento? Logo descobriu
que não, como ocorria com frequência em documentos do tipo. A família e alguns
sócios brigavam pelos bens, mas os cativos continuaram na mesma situação.
O advogado, em início de carreira, decidiu acionar a
Justiça para que a liberdade e a vontade do empresário fossem respeitadas. O
processo judicial que se seguiu, conhecido nos jornais da época como
"Questão Netto", é apontado por historiadores consultados pela BBC
News Brasil como a maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida
nas Américas. Por ora, não há registro de processo que envolva mais pessoas,
segundo eles.
Essa ação de Luiz Gama foi encontrada recentemente
pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História e Teoria do
Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha.
A peça de mais de mil páginas - toda escrita à mão -
estava armazenada no Arquivo Nacional e não há registros de que ela tenha sido
analisada em profundidade. "Não há grandes registros desse processo na
historiografia sobre Luiz Gama. Encontrei citações nas décadas seguintes ao
processo e uma uma nota de rodapé num livro dos anos 1990", diz Lima, que
há mais de uma década pesquisa a vida e a obra do abolicionista.
Lima fez uma cópia do processo e a levou para a
Alemanha, onde passou meses decifrando as várias caligrafias presentes no calhamaço.
"Logo identifiquei a letra de Gama, que era de mais fácil leitura. Mas
havia várias outras, como a de escrivães, promotores e juízes", explica.
A análise do processo agora fará parte da tese de
doutorado que o historiador vai apresentar ao final deste ano sobre a obra
jurídica do abolicionista. Além desse, a tese contará com dezenas de outros
processos ainda desconhecidos, diz.
A
'Questão Netto'
Lima conta que o processo passou a correr em Santos,
litoral sul de São Paulo, por causa de uma pendenga judicial do comendador
Ferreira Netto com um sócio da cidade. Inicialmente, Luiz Gama se apresentou ao
juiz da comarca apenas como um interessado no caso.
"Ele fez uma petição ao juiz de maneira bastante
escorregadia, porque ele não era parte naquela briga judicial pela herança. Ele
entra no processo como um cidadão que queria saber o que aconteceu com os
escravizados. O juiz respondeu que eles precisavam de um representante",
diz.
A princípio, Gama não foi nomeado "curador"
dos interesses do grupo, mas, depois de outros cidadãos se recusarem a
participar da ação, ele foi indicado pelo próprio juiz para assumir a tarefa.
O abolicionista não sabia quem estava representando de
fato, mas mandou emissários para descobrir os nomes, idades e há quanto tempo
pertenciam ao comendador.
No total, havia 217 escravizados nas propriedades do
fidalgo - gente de Angola, Moçambique, Congo, entre outras nações africanas.
"Gama recebe informações com nome, idade, naturalidade, histórias de vida.
Havia famílias inteiras nas fazendas", diz Lima.
Mas como garantir que o direito à liberdade,
recém-conquistado com a morte do comendador, fosse garantido? Lima acredita que
a "Questão Netto" tenha sido o primeiro grande processo de liberdade
de Luiz Gama, que, na época, havia sido demitido de um cargo na polícia.
Quem
era Luiz Gama?
Nascido em 1830 em Salvador, Luiz Gama teve de lidar
com a escravidão desde cedo. Sua mãe era uma mulher negra e seu pai, um fidalgo
de origem portuguesa.
"A vida dele foi singular em todos os aspectos.
Muitos historiadores acreditam que ele era filho de Luiza Mahin, uma guerreira
que participou de várias revoltas negras na Bahia", diz Zulu Araújo,
presidente da Fundação Pedro Calmon e ex-presidente da Fundação Palmares
durante o governo Lula.
"Mas não há certeza de que Mahin era sua mãe
mesmo ou se foi uma história inventada por Gama. O fato é que a mãe dele
desapareceu, e ele foi criado pelo pai."
Aos 10 anos, Gama foi vendido pelo próprio pai a um
contrabandista do Rio de Janeiro, que logo o repassou a um fazendeiro paulista.
O dinheiro da venda serviria para o pai saldar uma dívida de jogo. Na
adolescência, ele foi escravizado, mas, com 18 anos, conseguiu provas de sua
liberdade e fugiu do cativeiro.
Aprendeu a ler e escrever, foi poeta e trabalhou como
jornalista, tipógrafo e escrivão de polícia, onde passou a lidar diariamente
com a legislação. Autodidata, o jovem tentou cursar Direito na tradicional
Faculdade do Largo São Francisco, mas foi rejeitado pela elite que comandava a
instituição. Ele só ganharia o título oficial de advogado, dado pela OAB, em
2015, quando sua morte completou 133 anos.
"Gama era uma pessoa 'improvável' para a época,
porque era negro e pobre. Ele aprende o Direito na prática, trabalhando na
polícia e frequentando a biblioteca particular de Furtado de Mendonça, chefe da
polícia e amigo que o protegia", explica Tâmis Parron, professor de
História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Commun
(Núcleo de Estudos de História Comparada Mundial).
"A grande sacada dele foi perceber a centralidade
do Direito na luta abolicionista e como estratégia para destruir a escravidão.
O ativismo jurídico tinha sido muito importante para o abolicionismo na
Inglaterra e nos Estados Unidos. Ele o trouxe para o Brasil. Gama percebeu que
a própria legislação podia ser usada contra os senhores", diz Parron.
Estima-se que o advogado tenha conseguido libertar
centenas de escravizados com ações na Justiça - há centenas de processos de
liberdade com seu nome no arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, material
em boa parte desconhecido da historiografia. Muitas vezes, ele trabalhava de
graça.
Mas
como ele conseguia libertar tantas pessoas?
Primeiro, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 7 de
novembro de 1831, pressionado pela Inglaterra, o Império brasileiro assinou uma
lei que proibia o tráfico de africanos ao Brasil. Ou seja, a partir daquele
momento, qualquer africano trazido ao país deveria ser libertado imediatamente.
Mas isso não aconteceu na prática. Embora embarcações
inglesas patrulhassem a costa brasileira em busca de navios negreiros, o
contrabando era bastante comum no país - essa discrepância entre o que estava
na lei e a vida real fez com que a norma ganhasse o apelido de "lei para
inglês ver".
Estima-se que mais de 700 mil africanos foram trazidos
ilegalmente para o Brasil entre 1831 e 13 de maio de 1888, quando a escravidão
foi finalmente abolida pela Lei Áurea. Em todo o período de escravidão, foram
cerca cinco milhões de pessoas.
Luiz Gama passou a atuar em casos de pessoas contrabandeadas
ao país depois dessa legislação. "Ele reunia provas para demonstrar que,
se a pessoa tinha nascido na África e foi trazida ao Brasil depois de 1831, ela
fatalmente foi traficada e sua condição de escravizada era ilegal. Esse foi um
dos argumentos que ele utilizou para conseguir libertar centenas de
pessoas", conta Bruno Lima.
Segundo Tâmis Parron, o tráfico negreiro ocorria com o
consentimento e a participação do Império, que dependia da economia escravista.
"Para existir e atuar, o crime organizado precisa da participação ou da
anuência de alguma esfera da burocracia estatal", diz.
"O que Gama fez com seu ativismo foi escancarar
que o Estado e o escravismo brasileiros, além de roubarem os direitos naturais
e inalienáveis do homem, eram literalmente ladrões e criminosos, pois burlavam
a lei que eles próprios criaram", completa Parron.
Liberdade,
vidas perdidas
Luiz Gama apresentou uma tese jurídica bastante
simples, porém inédita, para tentar ganhar a ação contra a família e os sócios
do comendador Ferreira Netto, que queriam manter a propriedade de seus 217
cativos.
"Ele teve a sacada de usar a voz do senhor de
escravos como argumento jurídico contra ele próprio. O testamento havia sido
publicado em vida na imprensa. Então, a estratégia dele foi a seguinte: se o
próprio comendador escreveu que gostaria que os escravizados fossem libertados,
por que eles ainda não estavam livres?", conta Bruno Lima.
Ou seja, o advogado argumentou que, quando Ferreira
Netto morreu, os cativos ficaram livres imediatamente, pois o testamento assim
o pregava. Para Gama, o papel da Justiça no caso não seria conceder a liberdade
aos escravizados, mas devolvê-la a eles.
"Ele para de usar a palavra 'escravo' no
processo, chama-os de libertandos. Na época, havia o crime de redução de uma
pessoa livre à condição de escravizado. Isso não era permitido pela lei. Então,
Gama inverte o jogo, mostrando ao juiz que a família do comendador estava
cometendo um crime ao escravizar pessoas que já eram declaradas livres. É um
argumento meticuloso e muito bem pensado", explica Lima.
Os herdeiros da herança, temendo perder um bem tão
valioso, contrataram um advogado renomado para representá-los no tribunal: José
Bonifácio, poeta romântico, professor de Direito no Largo São Francisco,
conhecido como "o Moço".
Segundo o historiador, a ideia da família era ter como
defensor um advogado que não fosse identificado com a escravidão. Bonifácio era
um político liberal e abolicionista. De fato, anos depois do caso, ele
participaria como senador da campanha pelo fim do regime. No processo do
comendador, porém, defendeu os escravocratas.
Curiosamente, o argumento jurídico de Bonifácio, que
contestou o trecho do testamento que libertava os cativos, começava de maneira
um pouco culpada: "Sem opor-me à liberdade, mas…".
Para Lima, ao longo do processo, Bonifácio "jogou
sua imagem de abolicionista no lixo". "Se ele começou escrevendo que
não se opunha à liberdade, no restante da ação agiu como um escravocrata
confesso, defendendo de maneira ensandecida a família do comendador",
aponta o historiador.
No auge do processo, quando a causa ganhou repercussão
em jornais da corte, Luiz Gama contou estar sofrendo ameaças de morte.
Mencionou o fato em dois textos escritos em uma mesma semana de setembro de
1870, quando houve uma audiência importante do caso:
Ao jornal Correio Paulistano, revelou uma trama da
chefia da polícia para matá-lo. Já em uma carta ao filho, que tinha apenas 11
anos na época, escreveu o seguinte: "Lembra-te de escrevi essas linhas em
momento supremo, sob ameaça de assassinato."
Porém, apesar da pressão da elite escravocrata, o juiz
de Santos deu ganho de causa ao argumento de Gama, em tese libertando os 217
cativos. Mas Bonifácio apelou a outras instâncias no interior de São Paulo,
numa chicana jurídica que prolongou o processo e adiou a libertação das
vítimas.
Em 1872, o julgamento do mérito finalmente chegou ao
Supremo Tribunal de Justiça, a última instância, no Rio de Janeiro. No
tribunal, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois
a corte não aceitava sua atuação fora de São Paulo. O abolicionista escreveu a
sustentação final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no
palácio da Justiça.
Os ministros concordaram com a tese de Gama, mas a
vitória não foi completa. Eles determinaram um prazo de 12 anos para a
libertação dos 217 escravizados a partir da feitura do testamento, de 1866. Ou
seja, os cativos tiveram que prestar serviços forçados para os herdeiros do
comendador até 1878, quando finalmente foram libertados.
Para Lima, ao longo do processo, Bonifácio "jogou
sua imagem de abolicionista no lixo". "Se ele começou escrevendo que
não se opunha à liberdade, no restante da ação agiu como um escravocrata
confesso, defendendo de maneira ensandecida a família do comendador",
aponta o historiador.
No auge do processo, quando a causa ganhou repercussão
em jornais da corte, Luiz Gama contou estar sofrendo ameaças de morte.
Mencionou o fato em dois textos escritos em uma mesma semana de setembro de
1870, quando houve uma audiência importante do caso:
Ao jornal Correio Paulistano, revelou uma trama da
chefia da polícia para matá-lo. Já em uma carta ao filho, que tinha apenas 11
anos na época, escreveu o seguinte: "Lembra-te de escrevi essas linhas em
momento supremo, sob ameaça de assassinato."
Porém, apesar da pressão da elite escravocrata, o juiz
de Santos deu ganho de causa ao argumento de Gama, em tese libertando os 217
cativos. Mas Bonifácio apelou a outras instâncias no interior de São Paulo,
numa chicana jurídica que prolongou o processo e adiou a libertação das
vítimas.
Em 1872, o julgamento do mérito finalmente chegou ao
Supremo Tribunal de Justiça, a última instância, no Rio de Janeiro. No
tribunal, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois
a corte não aceitava sua atuação fora de São Paulo. O abolicionista escreveu a
sustentação final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no
palácio da Justiça.
Os ministros concordaram com a tese de Gama, mas a
vitória não foi completa. Eles determinaram um prazo de 12 anos para a
libertação dos 217 escravizados a partir da feitura do testamento, de 1866. Ou
seja, os cativos tiveram que prestar serviços forçados para os herdeiros do
comendador até 1878, quando finalmente foram libertados.
Por
Leandro Machado, na BBC News
- - - -
No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Coleção As mais belas lendas dos índios da Amazônia” e acesse os 24 livros da coleção. Ou clique aqui.
No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Antônio Carlos dos Santos" e acesse dezenas de obras do autor. Ou clique aqui.
Clique aqui para acessar os livros em inglês. |
-----------
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |
Coleção Greco-romana com 4 livros; saiba aqui. |
Coleção Educação e Democracia com 4 livros, saiba aqui. |
Coleção Educação e História com 4 livros, saiba mais. |
Para saber sobre a Coleção do Ratinho Lélis, clique aqui. |
Para saber sobre a "Coleção Cidadania para crianças", clique aqui. |
Para saber sobre esta Coleção, clique aqui. |
Clique aqui para saber mais. |
Click here to learn more. |
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |