Valentina
de Botas: Palavras quebradiças
Há uma maneira quase infalível de diminuir a
população carcerária: os cidadãos se inspirarem no cumprimento da lei, não
cometendo crimes
Por Augusto Nunes, na veja.com
O que nos resta depois da constatação desoladora de impotência, se as
palavras se quebram no tempo ou contra o muro onde se plasmou num grafite a
“realidade”? Talvez fazer uma escolha. Apesar e porque desolada, eu escolho
emendar, pedaço por pedaço, cada palavra, como quem restaura a força estranha
que nos faz cantar, e vou sobrepondo a necessária esperança cotidiana àquele
grafite, cicatrizada na potência possível do meu zelo.
Foi dentro desse zelo que se quebraram as palavras da minha filha me
dizendo que lhe ofereceram maconha e crack na escola e no condomínio onde
moramos. Me falou desassombrada e generosamente preocupada com o mesmo jovem de
15 anos, um ano mais velho do que ela, já manjado nas paradas. Claro, falamos
com os pais dele que desabafaram conosco desesperançados: não sabiam mais o que
fazer com o rapaz que levava “aquela vida há 2 anos”, que todo dia perdiam um
pouco, até que, temiam, perdessem de uma vez pelas mãos da polícia ou dos
traficantes. Pude ajudá-los e a família acabou se mudando para o interior de
S.Paulo. Essa desgraça tocaia as famílias brasileiras e não apenas por ser
crime, portanto a descriminalização não diminui a ameaça à integridade física e
mental do jovem, mas também por deteriorar suas relações e seu desenvolvimento.
De dentro das minhas esperanças remendadas, não receei que minha filha
se tornasse traficante e/ou usuária de drogas, mas também não tenho a ilusão de
que só o meu zelo e a formação que ela teve até aqui bastam para protegê-la,
pois, ainda que ela siga fazendo as escolhas corretas, pode, como qualquer
cidadão brasileiro, estar no caminho de quem fez as piores. Há algum tempo,
todos os pais somos como a mãe da música “Trem das 11”, que não dorme enquanto
o filho não chegar, único ou não, pois, na nossa alma, cada um dos nossos
filhos é único, sejam quantos forem, nesse amor que se multiplica quanto mais o
dividimos, multiplicando a angústia inerente. Sei que minha experiência não
esgota a realidade, mas ela é mostra real das realidades do ponto de vista da
sociedade.
Como ele parece irrelevante e as angústias dos brasileiros que estão do
lado da lei não são notícia, o debate que nos exclui da realidade se aperfeiçoa
com a sugestão de Roberto Barroso, ministro do STF, para quem a
descriminalização da maconha ajudaria a aliviar a superpopulação carcerária,
contribuindo para a melhora do inferno. Barroso parece se esquecer de que há
uma maneira quase infalível de diminuir a população carcerária: os cidadãos se
inspirarem no cumprimento da lei, não cometendo crimes e, assim, evitar ir para
a cadeia. Outra coisa de que se esquece é que há uma forma de melhorar as
masmorras brasileiras: a sociedade, ele incluso, exigir do Estado que retome o
controle dos presídios, que os reforme e tudo o mais que se tem discutido há
semanas.
A decência e o interesse da própria sociedade brasileira nos obrigam à
reforma do nosso sistema penitenciário. Mas se eu sei, e eu sei, Barroso também
sabe que ninguém mais é preso por porte de maconha até o limite que a lei
estabelece como consumo pessoal. Portanto, ele advoga a liberação da produção,
da distribuição e do consumo da maconha.
Barroso e os demais adeptos desse desatino apostam que eliminar o
tráfico elimina traficantes, talvez; mas não elimina criminosos: trocaremos a
superlotação penitenciária decorrente da prisão de traficantes de maconha pela
superlotação penitenciária decorrente da prisão de ex-traficantes de maconha
que passarão à prática de outros crimes ou ao tráfico de outra coisa ainda não
descriminalizada. Ele diz que, “se der certo”, podemos fazer o mesmo com a
cocaína. Desculpe, mas a ideia é de uma estupidez esplendorosa.
Sonhemos: e se os juízes, especialistas, jornalistas, legisladores,
padres, artistas, intelectuais olhassem para os brasileiros oprimidos pela
criminalidade como se fôssemos reais, como se fôssemos o muro real contra o
qual essas palavras se quebram? Não há povo de manual fora dos manuais, não há
criminosos de manual fora dos manuais e o Brasil é grande, complicado e
diversificado demais para ser tratado como um parque temático de fetiches ditos
progressistas, sobretudo daqueles cuja perspectiva é a da criminalidade que, no
limite, estabeleceriam a sociedade perfeita mediante a descriminalização de
todos os crimes. Se a perspectiva fosse a da sociedade, as propostas
reforçariam o combate ao crime, e não sua apócope penal.
Por favor, a comparação com as experiências de resultados discutíveis em
Portugal e Uruguai é risível, não somente porque as populações somadas empatam
com a da Grande São Paulo, mas porque nossas realidades são dramaticamente
específicas, além de sermos um país com 17.000 km de fronteiras terrestres, dos
quais apenas 4% são monitorados por radares, satélites ou outros dispositivos.
Os defensores da liberação do consumo costumam dizer que o álcool faz
mais mal do que a maconha, sugerindo, então, que os malefícios do álcool
melhoram a maconha. Quanto ao impacto na saúde da população, o consumo de
maconha pode potencializar doenças ou distúrbios mentais eventualmente não
diagnosticados, sobrecarregando o serviço de saúde pública, e há sempre o risco
da dependência química. No Annual Revew of Medicine, de 2016, os especialistas
S.T. Wilkinson, S. Yarnell e R. Radhakrishan reforçam, num artigo científico
disponível na internet, os alertas para o impacto na saúde pública da
legalização da maconha, equivocada e espertamente apelidada de “droga leve”
pelos fetichistas da liberação.
O uso medicinal, que o Ministério liberou para algumas doenças no
ano passado (mas não do cigarro da maconha, é claro, e sim do respectivo
princípio ativo canabidiol ou do tetra-hidrocanabidiol, o THC), tem evidências de
sucesso ainda limitadas a um pequeno número de doenças como caquexia causada
pelo vírus HIV/Aids, as náuseas e vômitos relacionados à quimioterapia, a dor
neuropática e a espasticidade na esclerose múltipla.
Ah, mas o FHC é a favor, Valentina, e você gosta dele. De fato, tenho
admiração, respeito e gratidão por FHC, e muitas críticas, porque essas coisas
não se excluem. Ou, por outra, não consigo gostar de ninguém que não tenha
defeitos – os perfeitos me humilham e os santos me aborrecem. Reafirmo que o que
impediu a devastação lulopetista ser mais extensa, duradoura e profunda foi a
gestão anterior que promoveu a institucionalização do país e nos mostrou o
século 21 logo ali, agora recuado.
O legado de FHC ultrapassa a esfera econômica do Plano Real e só foi
borrado na narrativa recente porque o PSDB, com seus nojinhos e medinhos de
fazer oposição ao PT, não quis, sei lá, transpirar no suéter. Entre os
equívocos do nosso único estadista vivo está a defesa da descriminalização da
maconha.
Ele, Barroso, e demais adeptos da descriminalização (liberação,
descriminação, legalização ou como queiram chamar) conhecem as realidades de
que falo aqui. Mas, com esse discurso, parecem conhecê-las como quem, acordado
por uma sede súbita no meio da noite, esbarra nos móveis, no escuro, dentro de
casa, entre o quarto e a cozinha.
Tropeçam, não reconhecem o que conhecem porque pregam na escuridão ao
excluir o cidadão de bem dessas soluções cheias de palavras quebradiças no
impacto com as realidades que ele habita.
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