Com a atual crise
política e econômica, tornouse lugar comum dizer que o Brasil tem de
implementar as 'reformas estruturais' para crescer de forma sustentável e
realizar o seu potencial. A agenda de reformas engloba praticamente todos os
campos – político, fiscal, previdenciário, tributário, trabalhista,
administrativo. Uma área essencial para a modernização do País, porém, tem
ficado à margem do debate – a sindical.
Diante dos graves
problemas que o País tem pela frente, a reforma sindical pode parecer uma
questão menor. Entre autoridades de Brasília, economistas, cientistas políticos
e até analistas de botequim, parece predominar a visão de que ela pode
atrapalhar a tramitação da reforma trabalhista, encaminhada ao Congresso
Nacional pelo governo, no final do ano. É possível. Mas, pelo que representa
nas relações entre o capital e o trabalho, a reforma sindical merece um espaço
mais nobre na pauta oficial. Se o governo pode atacar em tantas frentes ao
mesmo tempo, para tirar o País do atoleiro em que se encontra, não há razão
para discriminá- la e deixá-la para as calendas. 'A reforma trabalhista exige
uma reforma sindical', diz José Marcio Camargo, professor da PUC do Rio de
Janeiro e economista da Opus, uma empresa de gestão de recursos. 'A questão
sindical precisa ter seus acertos também', afirma o consultor José Pastore,
professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e presidente do
Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio do Estado
de São Paulo (Fecomercio-SP).
Nesta reportagem
especial, a 15.ª da série 'A reconstrução do Brasil', o Estado discute as
distorções existentes na área sindical e apresenta as principais propostas para
reformá- la. A reportagem encerra a série lançada pelo jornal em setembro, como
uma contribuição ao debate sobre os grandes desafios do País depois do
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Para produzi-la, o Estado realizou
mais de 50 entrevistas com algumas das figuras mais respeitáveis da vida
política e econômica nacional, ouviu consultores e acadêmicos do exterior e
levantou dados exclusivos sobre os principais gargalos que travam o
desenvolvimento do País.
Desde os tempos de
Getúlio Vargas, quase nada mudou na área sindical. Mesmo a Constituição de 1988
preservou a estrutura básica da legislação corporativista criada por Vargas nos
anos 1930, centrada na vinculação das entidades sindicais ao Ministério do
Trabalho, na sindicalização por categoria profissional e no monopólio da
representação de empregados e empregadores. Também manteve o imposto sindical,
que drena um dia de trabalho dos 39 milhões de brasileiros com carteira
assinada, sem contar empresários, profissionais liberais e autônomos, filiados
a entidades próprias, para financiar centrais sindicais, confederações, federações
e sindicatos.
Embora o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha sido um defensor aguerrido da
reforma sindical, para libertar os sindicatos do jugo do Estado, no final dos
anos 1970, quando surgiu como líder metalúrgico na região do ABC paulista, ele
acabou abandonando a ideia, com o apoio do PT, durante o seu governo. Em vez de
sepultar de vez a herança corporativista de Vargas, Lula não só manteve o
imposto sindical, que garante o ganha-pão do que ele costumava chamar de
'pelego' nos tempos de sindicalista, como estendeu a distribuição do dinheiro
às centrais sindicais, como a CUT, ligada ao PT, UGT, Força Sindical e outras.
De quebra, Lula ainda liberou as entidades de prestar informações sobre seus
gastos aoTribunal de Contas da União(TCU), ao vetar um dispositivo aprovado
pelo Congresso Nacional para estabelecer tal controle, sob a alegação de que
feria a autonomia sindical.
Hoje, se o dinheiro
do imposto sindical for usado para comprar sanduíche de mortadela, transportar
manifestantes para atos de protesto contra o governo e para invadir prédios
públicos, a sociedade não tem como saber, ainda que a conta seja bancada, em
última instância, pelos trabalhadores. Tampouco é possível conhecer eventuais
gastos de dirigentes sindicais, tanto de entidades de empregados como de
empregadores, em hospedagens em hotéis cinco estrelas ou em almoços nababescos
nos melhores restaurantes. 'A Constituição de 1988 sacramentou o princípio de
não intervenção do Estado na organização sindical – e isso deve ser assim mesmo',
diz o advogado Almir Pazzianotto, ex-presidente do Tribunal Superior do
Trabalho (TST) e ex-ministro do Trabalho. 'Agora, se as entidades usam o
dinheiro do imposto sindical, que é pago compulsoriamente, tem de haver
prestação de contas. O que não pode é as entidades sindicais serem consideradas
privadas para algumas coisas, ficando imunes à interferência do governo, e
serem consideradas públicas na hora de receber o dinheiro do imposto sindical e
do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).'
Os sinais de que o
sindicalismo brasileiro está enfermo e tem de passar por uma profunda reforma
se multiplicam. Talvez o mais evidente seja a 'fábrica de sindicatos' criada no
País desde a Constituição de 1988. Segundo dados oficiais, só no ano passado
326 novos sindicatos conseguiram o registro no Ministério do Trabalho, uma
média de quase um por dia. Nada menos que 2.603 sindicatos, de empregadores e
empregados, conseguiram o aval do governo para funcionar desde 2007. No total,
de acordo com os números oficiais, existem hoje 16.429 entidades sindicais – um
salto de quase 50% desde 2001 –, fora os três mil pedidos que estão na fila de
espera para obter o registro. No Reino Unido, onde predomina o pluralismo
sindical, existem 168 entidades sindicais. Na Dinamarca, 164. Na Argentina, 91.
Na Alemanha, 11. 'Hoje, qualquer um pode fundar um sindicato', afirma
Pazzianotto. Segundo ele, em Capivari, sua cidade natal, localizada no interior
de São Paulo, existe um sindicato rural há cerca de 40 anos, embora não existam
mais trabalhadores rurais no município. 'Há mais sindicatos em Capivari, que
tem 50 mil habitantes, do que em toda a Alemanha – e em Capivari não tem
indústria.'
Boa parte dos novos
sindicatos criados no País é apenas de fachada. Tem pouquíssimos associados. As
diferenças, muitas vezes, estão apenas em sutilezas no nome das entidades. Como
o sindicato deve ter uma base territorial definida e representar uma
determinada categoria profissional, as disputas pelo mesmo quinhão são
frequentes. Em geral, o principal motivo dos conflitos é o mesmo que leva à
proliferação de sindicatos: o apetite por uma cota do imposto sindical, que
arrecadou um total R$ 3,4 bilhões em 2015 e desde 2007 movimentou quase R$ 28
bilhões – um valor equivalente ao orçamento anual do Bolsa Família, com seus
13,9 milhões de beneficiários. Quem tem mais trabalhadores em sua base
territorial e profissional fica com a maior fatia do bolo, independentemente do
número de associados da entidade. Nesse cenário, quem acaba definindo a
'legítima' liderança sindical é um magistrado da Justiça do Trabalho. 'Os três
melhores negócios no Brasil hoje são fundar uma igreja, um partido e um
sindicato', afirma Pazzianotto. 'Igreja não paga imposto, partido tem o Fundo
Partidário para cobrir suas despesas e os sindicatos recebem o imposto sindical
e têm participação no FAT, sem ter de prestar contas pelos seus gastos.'
Não é de estranhar
que a representatividade dos sindicatos e demais entidades sindicais não pare
de cair. Depois de a taxa de sindicalização no País atingir um pico de mais de
20% dos trabalhadores ocupados no final da década passada, de acordo com o
IBGE, ela caiu hoje a menos de 16%. A queda na sindicalização é um fenômeno
mundial, decorrente da evolução do trabalho e da tecnologia, mas, no Brasil,
ela parece potencializada, em razão do abismo existente entre a ação dos
sindicalistas e as demandas dos trabalhadores. 'Os trabalhadores não querem se
filiar aos sindicatos, porque eles não servem para nada', diz o economista José
Marcio Camargo. 'O Brasil deve ser um dos poucos países do mundo em que os
sindicatos não querem ir atrás de novos filiados. Como eles vivem do imposto
sindical, filiado só incomoda.'
Sem ter de se
preocupar em arrecadar recursos para financiar as atividades das entidades e sem
ter de justificar seus gastos, é natural que muitos dirigentes sindicais se
perpetuem nos cargos e não queiram 'largar o osso'. Uma pesquisa realizada em
2013 com base em dados do Ministério do Trabalho apontou que 8.500 dirigentes
estavam há mais de dez anos no comando. Transformaram-se, na prática, em
sindicalistas profissionais, que controlam as entidades como feudos. Isso vale
tanto para as entidades de empregados como de empregadores. No caso de
entidades de trabalhadores, há um agravante, porque os dirigentes sindicais
gozam de estabilidade nas empresas em que trabalham desde o momento da
candidatura até um ano depois do mandato.
Para reverter o
quadro, na opinião de Pazzianotto, só há uma solução: acabar com o registro das
entidades sindicais no Ministério do Trabalho, 'que se tornou um grande
negócio', e desligá-las totalmente do Estado. Também seria preciso, na
avaliação de Pazzianotto, extinguir o imposto sindical e os repasses do FAT aos
sindicatos. O País passaria a seguir as regras da Convenção 87 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o pluralismo sindical. Cada entidade
viveria apenas das contribuições de seus associados, tanto no caso de
empregados como de empregadores. As negociações coletivas poderiam ser feitas
por empresas ou por grupos de empresas de portes semelhantes. 'As eleições
sindicais são uma fraude, porque a participação da categoria é mínima. As
mensalidades são irrisórias e mesmo assim ninguém se sindicaliza', afirma.
'Hoje, no Brasil, poucos são tão privilegiados quanto a elite sindical.'
Apesar de a reforma
sindical não ser uma prioridade do governo no momento, tramita na Comissão de
Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle do Senado um
projeto do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), de 2016, relacionado ao tema. O
objetivo é obrigar as entidades sindicais a abrir a 'caixa preta' do imposto
sindical e a prestar contas aoTCUsobre o uso dos recursos que recebem. O
senador Paulo Paim (PT-RS) tem procurado retardar a tramitação do projeto e
protocolou um requerimento, ainda não avaliado pela comissão, cujo relator é o
senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), para levar a questão para a Comissão de
Assuntos Sociais (CAS), dominada pelo PT e outras agremiações de esquerda. Há,
também, um projeto do senador Sérgio Petecão (PSD-AC) que retira de vez a
obrigatoriedade de recolhimento do imposto sindical. A proposta, que está em
análise na CAS, a mesma para a qual Paim quer levar o projeto de Ferraço, prevê
a cobrança do imposto sindical apenas dos trabalhadores sindicalizados.
Se o governo
mobilizar a base aliada e conseguir aprovar os projetos de Petecão e Ferraço,
ainda faltaria acabar com a exigência de aprovação dos sindicatos pelo
Ministério do Trabalho e com a unicidade sindical. Também seria preciso liberar
a criação de sindicatos sem vínculos com categorias profissionais e atividades
empresariais. Talvez, tendo de correr atrás de dinheiro para sobreviver, os
sindicalistas se preocupem mais em defender o real interesse dos trabalhadores
e empresários do que em se perpetuar no poder e usar seus cargos como trampolim
político.
Por José Fucs, em O
Estado de S. Paulo
_________________
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |