"O
momento de Clementina foi aquele, surpreendendo todo mundo, já uma pessoa com
mais de 60 anos de idade, fazendo sucesso. Não conheço ninguém que tenha feito
isso, mas o que gostaria mesmo é que Clementina tivesse sido descoberta há mais
tempo".
As
palavras são do poeta Hermínio Bello de Carvalho, que lançou a cantora
Clementina de Jesus , aos 64 anos, no espetáculo Rosa de Ouro, em
1965. O produtor conta que, naquela época, encontrou Clementina cantando em uma
taberna, em um momento de descontração. Até então, ela trabalhava como
empregada doméstica de uma família no Rio de Janeiro. Este ano, 2017, a morte
da cantora completa três décadas e em fevereiro, se viva, ela teria completado
116 anos.
Guardiã e
herdeira da cultura musical afro-brasileira, dona de uma voz potente,
Clementina gravou 12 discos de sucesso nos tempos da bossa nova e o do
iê-iê-iê. Esteve em programas de TV, rádios, fez show pelo
país e fora dele. Na França, cantou no Festival de Cannes e, no Senegal, teve
de voltar ao palco quatro vezes, muito aplaudida. O jornalista Sérgio Cabral,
que testemunhou a cena, no Festival Internacional de Arte Negra relembra
relembra que as pessoas queriam tocá-la.
A força de
Clementina e a empatia que conquistava plateias vinha de suas cordas vocais,
mas também do repertório que acumulou ao longo de toda sua vida. Ela era
síntese da mistura entre a herança africana e a cultura religiosa cristã.
Gravou canções que sabia de memória, versos que ouvia desde criança, misturando
cantos africanos, jongos, aos sambas de partido alto.
Nascida no
interior do estado do Rio, em Valença, no Vale do Paraíba, filha da primeira
geração de descendentes de africanos libertados da escravidão, Clementina desde
pequena ouvia a mãe cantar saberes ancestrais da cultura banto enquanto lavava
roupas. O pai, um grande violeiro e capoeirista, completava a formação musical
da filha. "O meu pai e minha mãe gostavam muito de cantar. Meu pai, então,
era um dos primeiros violeiros de Valença, cantava muito bem, e minha mãe
cantava a moda dela, aí, eu aprendi", disse Clementina em entrevista
à Rádio MEC.
Clementina,
ou Quelé, apelido que ganhou na infância, cantou desde pequena, na igreja, em
festas religiosas, onde chegou a treinar pastoras, na casa das tias do samba,
já no Rio, e nos corsos que deram origem às escolas de samba. Foi portelense,
antes de entrar na Mangueira para nunca mais sair, por causa do amor ao marido
que lhe acompanhou por 30 anos.
Referência
no mundo do samba
Foi
apresentada profissionalmente ao lado de Paulinho da Viola, na época, com 22
anos, no programa Rosa de Ouro, e tornou-se referência para
artistas como Milton Nascimento -- que gravou com ela Escravos de Jó,
em 1973 -- Clara Nunes, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho."Tomei a decisão de
ser cantora de samba depois que ouvi Clementina. Quando a avistei no palco, a
entendi perfeitamente, entendi o que ela representava", contou Beth, que
lhe dedicou seu primeiro disco.
Percussionista
pernambucano Naná Vasconcelos, que morava na França e passava um curta
temporada no Brasil no início da década de 1970 e participou do LP Marinheiro
Só, de Clementina. disse que "ela é a prova que a África é a espinha
dorsal da nossa cultura", antes de falecer em 2016, vítima de um câncer de
pulmão, aos 71 anos. Para os críticos dos jornais, a importância dela para o
Brasil foi a mesma que a das cantoras de jazz e blues norte-americanas.
Todas
essas histórias em mais detalhes sobre os bastidores do mundo do samba entre
1960 e 1987 são apresentadas a novas gerações no recém-lançado livro "Quelé,
a voz da cor - biografia de Clementina de Jesus, dos jovens
jornalistas Janaína Marquesini, Luana Costa, Raquel Munhoz e Felipe Castro. A
pesquisa deles sobre a artista, com várias lacunas em suas biografias, começou
com um trabalho de conclusão de curso na faculdade e depois de muitas idas e
vindas ao Rio -- um esforço de pesquisa que levou seis anos-- terminou em uma
publicação de 363 páginas, incluindo vasta bibliografia e índice onomástico,
pela editora Civilização Brasileira.
"A
turma que fez este trabalho não escreveu apenas uma biografia", diz, em um
trecho da orelha do livro, o escritor e historiador Luiz Antonio Simas. "O
que estas páginas apresentam é um relato fundamental para se contar a história
da nossa música e dos saberes africanos redimensionados no Brasil",
completa, um dos principais estudiosos da cultura do samba.
Clementina
de Jesus terminou a carreira aos 86 anos, depois das gravações de o Cantos
Escravos, em 1982, junto com outros músicos. Apesar da fama, morreu pobre
como tantos artistas negros tão importantes para à música brasileira, como
Pinxiguinha e Heitor dos Prazeres.
Por Isabela Vieira - Repórter Agência Brasil