O cerco começa a apertar para Vladimir Vladimirovich Putin. Com uma situação económica cada vez mais difícil, uma lista cada vez maior de derrotas militares e um processo de mobilização, no mínimo, caótico, multiplicam-se as vozes críticas no interior da cúpula do poder russo.
Outrora antigos aliados, agora a
expressam publicamente a sua dessatisfação com o decorrer da "operação
militar especial". Donos de exércitos privados e governadores de
Repúblicas com historial separatista ameaçam fazer tremer os alicerces do
regime. Os especialistas alertam que este é o momento mais sensível da vida
política do presidente russo.
Para se manter no poder, Vladimir
Putin, precisa de manter o apoio inegável das elites que o suportam. Este
núcleo duro que sustenta o regime russo é maioritariamente composto por três
grupos. Um desses grupos domina os serviços secretos, as várias polícias e até
o próprio exército. O segundo grupo é considerado como a falange moderada do
regime, composta pelos mais importantes homens de negócios, que beneficiaram da
abertura da Rússia aos mercados, depois do colapso da União Soviética, e
amealharam enormes fortunas com a bênção do próprio presidente. E a terceira é
o grupo ligado à propaganda do regime.
Neste momento, com base no que é dito
publicamente pelos principais membros destes grupos, é possível presumir que
nenhum deles está satisfeito. Por um lado, a elite económica, mesmo que
concorde com o conflito, quer que a guerra termine o mais depressa possível,
uma vez que é má para o negócio e as sanções estão a colocar a Rússia num
caminho que a pode fazer recuar economicamente até o final dos anos 90. Oleg
Deripaska, aliado de Vladimir Putin e um dos mais importantes oligarcas russos,
chegou mesmo a classificar a invasão russa como “um erro colossal” que “deita a
perder” tudo aquilo que foi conquistado após o colapso do gigante soviético.
Por outro lado, a elite militar
também já começou a expressar o seu desagrado para com o presidente russo pela
forma como a guerra está a decorrer. Só que, ao contrário da elite empresarial,
os “siloviki”, o grupo de homens próximos de Putin que mandam nos vários ramos
da defesa, consideram que a resposta russa tem sido excessivamente branda e que
a Rússia deve multiplicar os seus esforços para ganhar “a guerra contra o
Ocidente” na Ucrânia.
“É uma situação preocupante para o
presidente russo. Quando as críticas surgem por parte do "siloviki",
membros da elite ligados aos serviços secretos e de defesa, é preocupante, uma
vez que são pessoas que lhe são próximas e têm meios para o afastar. Mas não é
só esse eixo que tem expressado críticas.”, considera a especialista em
relações internacionais Helena Ferro Gouveia.
Mobilização - solução ou desastre?
Esta situação agravou-se bastante
depois do anúncio público do presidente de que o país iria iniciar uma
"mobilização parcial".
Para a Ucrânia, esta guerra é um
conflito existencial. Se as forças armadas falharem em travar e recuperar o
território perdido, a Ucrânia corre um sério risco de deixar de existir.
Conscientes da importância da batalha que está a ser travada, o governo de Kiev
foi rápido a agir: proibiu todos os homens com idades entre os 18 e os 65 anos
de sair do país, ofereceu armamento aos cidadãos que se quisessem juntar aos
grupos de defesa territorial, uma milícia capaz de assegurar a segurança na
retaguarda e em alguns pontos da frente de batalha, e começou um longo processo
de recruta por vagas. Como resultado, um exército que começou a guerra com
pouco mais de 200 mil soldados, tem agora mais de 800 mil e o número continua a
aumentar.
Este é um grande problema para o
exército russo que se encontra agora em desvantagem numérica, num território
que o seu inimigo conhece bem e está determinado em defender. Para acabar com
ele, Putin decretou a mobilização parcial dos cidadãos russos que se encontram
na reserva, abrindo a porta para a recruta de 300 mil novos soldados, embora o
decreto assinado abra a porta para uma mobilização muito mais vasta.
Mas a chegada destes novos soldados
pode não ter o efeito desejado. Multiplicam-se os relatos de que muitos destes
recrutas foram enviados para a frente de batalha sem qualquer treino, sugerindo
que existe um grave problema no que toca à falta de soldados na frente de
batalha russa. “Foi-nos dito que não haveria qualquer treino antes de sermos
enviados para a zona de combate. O comandante do regimento confirmou-o, vamos
ser enviados para Kherson”, lamenta um recruta, num vídeo partilhado nas redes
sociais russas.
O Institue for the Study of War
alertava para isso mesmo. Desmotivados, sem condição física, mal equipados, sem
treino e sem oficiais preparados para liderar: esta é uma combinação explosiva
que “é pouco provável que tenha qualquer efeito significativo no reforço das
posições russas”. Sem preparação, é muito provável que a taxa de mortalidade
destes homens seja muito superior à de um grupo de militares treinados.
Como se isso não fosse suficiente, a
notícia da mobilização desencadeou uma vaga de migração, com centenas de
milhares de pessoas a tentar fugir para algum dos poucos países vizinhos que
permitem a entrada de cidadãos russos, como a Georgia, a Arménia, o Cazaquistão
e a Finlândia. Os números variam, mas, de acordo com um relatório
independentemente verificado e publicado pelo jornal dissidente russo Novaya
Gazeta, pelos menos, 261 mil homens já fugiram do país desde que foi decretada
a mobilização. Já a Forbes Rússia aponta para um número bem mais alto, a rondar
as 700 mil pessoas.
A verdade é que o número de bilhetes
de avião só de ida subiu 27%, com o preço das viagens para alguns dos
principais destinos, como a Turquia ou a Georgia, a chegarem a custar cinco mil
euros por pessoa. E estes valores continuam a disparar sempre que surgem
rumores de que as autoridades russas podem vir a fechar as fronteiras ou a
convocar uma nova ronda de mobilização.
Mas todo este esforço causa enormes
atritos sociais no seio da Rússia. Por um lado, todos os homens mobilizados
representam a perda de trabalhadores em várias indústrias, já por si bastante
fragilizadas pelas sanções impostas pelo ocidente. Por outra, o próprio
processo pode não colher os resultados esperados no campo de batalha e ser
visto pelos membros mais extremistas do núcleo duro de Putin como um sinal de
fraqueza do líder.
“A mobilização foi, do ponto de vista
genérico, a abertura de um problema social interno que não existia. Vamos ver
de que forma é que a abertura deste problema não acaba por ter consequências de
natureza política”, afirmou o major-general Arnaut Moreira.
Perigo vem de cima ou debaixo?
Mas é provável que a queda de Putin
venha de cima e não debaixo. Após a libertação ucraniana da cidade de Lyman, na
região de Donetsk, apenas 24 horas depois de Vladimir Putin ter decretado
aquela província como parte integral da Rússia, um coro de vozes do topo do
regime veio a público expressar o desagrado para com a chefia militar russa,
particularmente para com o ministro da Defesa, Serguei Shoigu. A principal voz
de descontentamento é a de Ramzan Kadyrov, líder da República da Chechénia, e
“proprietário” de um exército autónomo que conta com mais de 70 mil soldados.
“Se hoje ou amanhã não houver
mudanças na estratégia, serei obrigado a falar com a liderança do ministério da
Defesa e a liderança do país para explicar a situação real no terreno”, afirmou,
para dias depois, sugerir mesmo a utilização de armas nucleares táticas no
terreno, de forma a reconquistar a vantagem.
Mas Kadyrov não foi o único membro da
elite russa – e dono de um exército privado com milhares de soldados – a tecer
duras críticas ao exército russo. O empresário de São Petersburgo, Yevgeny
Prigozhin, fundador da famosa empresa privada militar Wagner, também expressou
o seu apoio às palavras do checheno e classificou as tropas russas como
"montes de lixo". Ambos têm um grande número de soldados a combater
no terreno e o seu descontentamento pode representar um perigo para as elites
militares.
“Na atual onda de patriotismo,
[Prigozhin] quer posicionar-se como um feroz defensor da pátria, criador de uma
organização militar profissional. Ele quer mostrar que pode lutar melhor do que
o exército regular. Sempre tivemos tensões com o Ministério da Defesa”, alerta
Marat Gabidullin, antigo mercenário do grupo Wagner, em declarações ao The
Guardian.
Um dia depois, começou a circular um
vídeo em várias contas de bloggers militares russos, que mostravam o que diziam
ser um grupo de soldados recém mobilizados, que se queixavam das condições em
que se encontravam, da falta de munições, equipamento, e apontavam sérias
críticas ao ministério da Defesa. Porém, algo não batia certo. Os homens desse
vídeo utilizavam máscaras a tapar a cara – uma marca característica dos
mercenários do grupo Wagner – e pelo menos um utilizava uma insígnia do grupo,
levantando questões entre os próprios russos sobre o vídeo não seria da autoria
do próprio Prigozhin.
A verdade é que, dois dias depois
Aleksey Slobodenyuk, funcionário do grupo de comunicação Patriot, do qual
Prigozhin faz parte do conselho de administração, foi detido pela polícia
russa, após os canais de Telegram que gere terem feito vários ataque a Shoigu e
outros membros do exército.
“Um dos pontos de ataque contra o
decorrer da guerra tem vindo também do eixo propagandístico, que são sobretudo
os bloggers militares e pessoas ligadas à propaganda. Eles próprios têm sido
vocais nas queixas contra as derrotas militares russas. Tudo isto erode o poder
do presidente Vladimir Putin”, explica Helena Ferro Gouveia.
Mas Vladimir Putin conta com aliados
bastante poderosos. Além do controlo quase total que exerce nas forças armadas,
depois de ter colocado dois homens da sua confiança no poder, Serguei Shoigu e
Valery Gerasimov, o presidente russo conta com parceiros em alguns dos lugares
mais importantes do país, quase todos antigos membros dos serviços secretos
soviéticos. Entre eles está Alexander Bortnikov, líder do FSB, a agência que
sucedeu ao KGB, e que conta com mais de 160 mil funcionários encarregues de
proteger o país e travar qualquer tentativa de insurreição contra a elite
russa.
O controlo de Putin sobre a sociedade
russa é tão profundo que a única forma do presidente ser afastado é por alguém
próximo de si. E o líder russo sabe disso. Por isso, mesmo depois de ter
criticado as mais altas chefias militares russas e ter colocado em causa a
competência dos seus chefes, Kadyrov foi promovido pelo próprio presidente ao
cargo de coronel-general.
Para Helena Ferro Gouveia, esta é uma
“tentativa de apaziguamento” de um homem “que tem um peso grande no regime
russo” e pode ressuscitar problemas como o separatismo checheno.
Um recente relatório dos serviços
secretos norte-americano, publicado esta sexta-feira, confirma que os problemas
de Putin podem estar mais próximos do que o que se pensa. O documento, que
chegou mesmo ao livro do briefing diário do presidente americano, revela que
Putin foi confrontado por uma pessoa próxima pelo que considera ser uma “má
gestão do esforço de guerra e os erros cometidos por aqueles que executam a
campanha militar”.
“Desde o início da ocupação, temos
testemunhado um alarmismo crescente por parte de pessoas do círculo próximo de
Putin. As nossas avaliações sugerem que são particularmente exercidas devido às
recentes perdas russas”, revelou ao jornal Washington Post uma fonte dos
serviços secretos.
O presidente conhece a história da
Rússia. Tanto a queda do Czar, em 1917, como a queda da União Soviética, em
1991, vieram das ruas. Por isso, tanto para Putin como para os restantes
membros dos membros dos siloviki, a segurança interna foi sempre a maior das
prioridades. Por isso, protestos populares contra o regime e a mobilização pode
“galvanizar a oposição” ao líder, mesmo dentro da “fação de falcões” que o
apoia e representam um dos maiores perigos para o sistema criado por Putin.
“Os protestos populares podem
galvanizar a oposição a Putin, levando eventualmente a um golpe. A ser alvo de
um afastamento, esse golpe teria de vir de pessoas próximas do aparelho de
segurança. É muito difícil haver um golpe de pessoas que não sejam próximas do
presidente. Parece-me muito difícil que seja de uma outra forma”, conclui
Helena Ferro Gouveia.
TVI
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