Já antes da pandemia, Brasil já tinha problemas no aprendizado de matemática, segundo o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) |
A atual corrida presidencial tem sido dominada pela economia e por temas como religião e pauta de costumes. A educação, sempre mencionada como vital para o desenvolvimento do país, tem ficado como coadjuvante no debate, justamente depois de um difícil período sob os fortes efeitos da pandemia de coronavírus e da inconstância no cargo de ministro da área.
Para o estatístico alemão Andreas Schleicher, diretor de
educação e competências na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) e criador do Pisa, avaliação internacional de aprendizagem que
se tornou referência, é impossível pensar o futuro econômico do país sem
conceber um plano para o ensino e a formação de habilidades para os próximos
anos.
Schleicher afirma que há pela frente o desafio de
modificar o sistema educacional diante das grandes mudanças tecnológicas e das
novas demandas do mercado de trabalho. E isso, afirma ele, é especialmente
importante para as pessoas das camadas mais pobres.
"Se você vem de uma família desfavorecida, só há uma
única chance em sua vida, e é uma educação de qualidade. Se você perde esse
trem no Brasil, não há uma segunda chance."
Na última edição do Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), realizada em 2018, os dados trouxeram
cenários de preocupação para o país: dois terços dos brasileiros de 15 anos
sabem menos que o básico em matemática e os alunos estagnaram em leitura e
compreensão de textos.
Veja abaixo trechos da entrevista com o diretor da OCDE:
BBC News Brasil - A educação é mencionada aqui e ali nos
debates e na corrida eleitoral, mas é difícil dizer que é a protagonista da
atual campanha presidencial. Isso é um sinal de que o Brasil não dá a devida
importância à área ou é compreensível que não tenha tanto espaço quanto a
economia, por exemplo, dado que o país está em crise?
Andreas Schleicher - A educação de hoje será a economia
de amanhã. E se você tem desigualdades na educação, você vai ter desigualdades
na sociedade. E com isso, desemprego. Dessa forma, qualquer candidato
presidencial que não enxerga a ligação entre as duas coisas ou não acredita
nisso, não está fazendo um favor ao futuro do país. Sim, existem muitos
problemas urgentes, mas se você ignorar os desafios de amanhã a situação será
ainda mais difícil.
Na década de 2000, o Brasil avançou muito na educação. A
educação era prioridade. Lembro que em 2000, depois de saírem os resultados do
Pisa, surgiram muitas iniciativas no Brasil. O país tem todos os recursos e os
meios para construir um sistema educacional melhor.
BBC News Brasil - Como você avalia esses quatro anos de
governo Bolsonaro na educação?
Schleicher - É difícil dizer porque os dados que temos do
Pisa só vão até 2018. Então não temos uma boa avaliação do que aconteceu nos
últimos anos, que também foram muito difíceis por causa da pandemia. O Brasil
enfrentou um dos mais longos períodos de escolas fechadas no mundo. Acho que
foi uma das coisas mais devastadoras que aconteceram. Na minha opinião foi
desnecessariamente longo. Não no sentido de que se considerasse que as crianças
fossem menos vulneráveis ao coronavírus, mas elas foram punidas pelas respostas
das políticas públicas à pandemia.
Acho que o governo colocou foco na alfabetização, algo
muito importante porque linguagem é essencial para acessar, gerenciar,
integrar, avaliar, transmitir informações, ou seja, para viver na sociedade de
hoje. É bom ter o foco nisso, mas no geral, não tenho certeza que a educação
tem sido uma grande prioridade no Brasil.
BBC News Brasil - Quais são os principais desafios para o
país considerando os efeitos da pandemia e o fato de que tivemos cinco
ministros da Educação — quatro efetivamente — em menos de quatro anos de
governo Bolsonaro?
Schleicher - Olha, há diversos "Brasis". Se
você olha para o quadro geral, talvez falte um pouco de dinamismo. Mas os dados
mostram que alguns Estados brasileiros observaram um enorme progresso em sua
educação. Se o Brasil soubesse mais sobre o que funciona na educação de algumas
partes do Brasil, vocês teriam um sistema educacional diferente.
Há muitos sinais promissores, mas várias coisas precisam
acontecer. Uma delas é que, sem uma visão clara do que representa uma educação
de qualidade, você não terá um bom sistema educacional. Quando eu examino os
dados sobre Brasil que vêm dos resultados do Pisa, a conclusão é que os
estudantes brasileiros aprendem muitas coisas, muito conteúdo, mas não são
muito bons em extrapolar o que adquiriram e assim aplicar seus conhecimentos em
ambientes reais.
O problema é que, no mundo moderno, você não é mais
recompensado apenas pelo que você sabe. O Google já sabe de tudo. O mundo
recompensa pelo que você consegue fazer com o que sabe. Você consegue realmente
pensar fora da caixa? Pensar com sua própria cabeça? Você consegue imaginar,
construir, criar, resolver tensões e dilemas?
E isso só vai acontecer com um ambiente de ensino muito
diferente, onde os professores não são apenas instrutores, mas se tornam bons
coaches, mentores, facilitadores e, às vezes, bons assistentes sociais. Para
isso é preciso valorizar a força de trabalho educacional. Além de melhorar os
salários, é preciso tornar o ensino intelectualmente mais atraente, prestigiar
o ensino como profissão e construir uma cultura de ensino mais colaborativa.
E acho que é importante alinhar melhor os recursos com as
necessidades que o Brasil tem como país. O país gasta um dinheiro considerável
com educação e os alunos passam longas horas na escola. Mas você sabe que esses
recursos nem sempre são usados de forma mais eficaz.
Se você vem de uma família rica no Brasil, você sempre
encontrará portas abertas, mesmo que não tenha um grande desempenho escolar.
Mas se você vem de uma família desfavorecida, só há uma única chance em sua
vida, e é uma educação de qualidade. Se você perde esse trem, no Brasil não há
uma segunda chance.
BBC News Brasil - No próximo ano a expectativa é que o
governo encontre um quadro fiscal e econômico com dificuldades. Como é possível
trabalhar com um orçamento mais limitado?
Schleicher - Dinheiro é importante, mas não é tudo. Além
da questão de saber como usar os recursos eu também acredito que é necessário
repensar como eles são distribuídos entre os níveis de ensino. O Brasil gasta
cinco vezes mais para um graduado universitário do que para alguém na escola
primária. Ou seja, para aqueles que sobrevivem até o fim do sistema escolar,
você dá tudo. E para aqueles que não conseguem chegar lá sobra pouco de apoio.
E, bom, se há recursos limitados, você tem que quebrar a
cabeça sobre como gastá-los melhor. Eu gostaria que o Brasil investisse mais em
educação, mas não acho que mais dinheiro seja a resposta. Eu realmente acho que
a resposta é reconfigurar espaço, tempo, pessoas, tecnologia, relacionamentos
na educação. Não apenas para melhorar, mas para fazer de uma forma realmente
diferente.
BBC News Brasil - E por que o senhor acha que é mais importante
privilegiar a educação básica do que a superior?
Schleicher - É uma questão difícil. Minha resposta seria
apenas que a sociedade deveria investir nas crianças mais novas por que é dessa
forma que você lança as bases para todo o resto. Se você perder o trem nos
primeiros anos de educação, não há chance de você recuperar esse atraso mais
tarde para a universidade. E eu não acho que o governo precisa pagar por tudo
isso. Na verdade, acho que é possível fazer empréstimos aos alunos dependendo
da renda e, mais tarde, quando você começa a ganhar dinheiro, paga isso de
volta.
Acho que existem bons modelos para que nossa sociedade
possa realmente compartilhar os custos e benefícios da educação universitária
de forma mais justa. Só não tenho certeza se tudo precisa estar nos ombros do
governo. Mas quando se trata dos primeiros anos da educação primária, a
construção de uma base sólida, eu acho que é extremamente importante. E é
claramente aí que o Brasil está subinvestido. Os gastos atuais são muito
concentrados em uma fase posterior do ensino.
BBC News Brasil - O Brasil voltou a conviver com o
problema da fome. E a escola representa muitas vezes a oportunidade de fazer
uma ou duas refeições por dia para algumas crianças, ou seja essa é a principal
razão para estar lá. Como isso deve ser considerado quando se pensa em educação
no Brasil?
Schleicher - Devemos olhar para as escolas como
instituições sociais, não apenas como uma fábrica de diplomas. Devemos olhar
para as necessidades das crianças: as cognitivas, sociais, físicas e
emocionais. Saber lidar com a raiva que, por exemplo, uma criança está
sentindo. Então, é preciso encarar as escolas mais como centros comunitários
que realmente dão aos jovens um lar onde eles possam crescer fisicamente,
intelectualmente, emocionalmente, principalmente em bairros desfavorecidos.
É por isso que acho importante reforçar nos professores a
ideia de alguém que tem alguém que tenha um interesse genuíno em se perguntar:
quem são meus alunos? Quem eles querem se tornar? Como posso acompanhá-los em
sua jornada ao invés de apenas ensinar o que está na cartilha?
Então eu acho que esse interesse dos professores pelos
alunos, esse entendimento de que todo aluno pode aprender, que eles aprendem de
forma diferente, e que eu preciso encontrar é o futuro do ensino. A maior
ameaça à educação não é apenas sua ineficiência, é a perda de relevância.
Muitos jovens hoje pensam que a educação não diz respeito a eles, à vida e ao
futuro deles. E isso é muito, muito perigoso.
BBC News Brasil - Qual país em desenvolvimento, sem
tantos recursos, que está indo numa direção correta em sua visão?
Schleicher - O Vietnã. Dez anos atrás o Vietnã poderia
alcançar o Brasil só nos sonhos. Hoje os resultados são o que vemos na Europa,
um forte conjunto de resultados de aprendizagem. E eles não pensaram que a
ideia era superar cada estágio de desenvolvimento. Foi de transformar
radicalmente nosso ambiente de aprendizado. Em vez de avaliar a formação de
professores, eles mostram se estão aptos a ensinar e aí sim vão para a sala de
aula. Eles procuraram a pessoa mais inteligente da aldeia e ela se tornava a
professora daquela comunidade. Vamos ter os melhores professores do país e
ainda fazê-los professores ainda melhores
Os vietnamitas foram muito criativos, muito imaginativos,
usaram recursos de sua comunidade e fizeram da educação uma prioridade. Eu acho
que isso também é muito, muito importante. Nenhum país terá um sistema
educacional de primeira classe se isso não estiver no topo da sua agenda.
BBC News Brasil - Quais desafios mais característicos do
século 21 devem ser encarados?
Schleicher - Não devemos pensar apenas no futuro da
educação que mais provavelmente vai se materializar ou o futuro que desejamos.
Na verdade, deveríamos ser muito melhores em imaginar futuros diferentes para a
educação. E sob as dificuldades atuais, há uma diferença entre reformar a
educação e transformá-la. Reformar é mudar os instrumentos, os meios, as
ferramentas para melhorar o quadro. Transformar é mudar os objetivos. É sobre
reconfigurar espaço, tempo, pessoas, relacionamentos de novas maneiras?
Nesse momento de grandes dificuldades, temos que pensar
no futuro e em um mundo mais bem integrado entre aprendizagem e o mundo do
trabalho. Nós costumávamos aprender a trabalhar e, de repente, aprender se
tornou o trabalho. Basicamente, devemos pensar, como podemos tornar o
aprendizado interessante, relevante?
É dar aos jovens do Brasil oportunidades de trabalhar em
projetos de verdade com pessoas de verdade. No Brasil educação vocacional,
pensar o desenvolvimento dos estudantes de forma individual, é quase sempre o
último recurso. Precisa ser mais a primeira escolha para ajudar as pessoas a
terem um acesso melhor ao seu próprio futuro. Então não dá para simplesmente
dizer "ah, vamos consertar o nosso sistema atual e aí sim começamos a
pensar no século 21".
Vamos ter que usar esse espaço, esse momento, essa crise
para reimaginar a educação. A mudança real geralmente nasce em uma crise
profunda.
BBC News Brasil - E há sempre a expectativa após a
conclusão dos estudos de acessar o mercado de trabalho, uma área também que
está em profunda transformação atualmente.
Schleicher - Nós devemos nos tornar melhores para
antecipar quais são os conhecimentos, as habilidades, as atitudes e os valores
que importarão para o futuro. Na matemática, aprender fórmulas e equações pode
ser menos importante hoje, mas ser capaz de pensar como um matemático e
entender o conceito de probabilidade ou risco são elementos que ajudarão a
moldar o futuro.
A mesma coisa na ciência: você pode ensinar física e
química e conhecimento é muito importante, mas você não ensina os alunos a
pensar como um cientista. A fazer experimentos e a distinguir questões quais
questões podem ser exploradas cientificamente e questões que não são.
É assim que nós criamos o futuro. Não conseguimos saber
ao certo quais são os empregos do futuro, mas temos que desenvolver as
capacidades humanas de como é possível moldar o futuro.
E isso tem a ver com a sua capacidade de transformar seu
pensamento, de resolver problemas complexos, gerenciar tensões e resolver
dilemas. O mundo não é mais preto e branco, e é possível desenvolver essas
novas técnicas não apenas em sala de aula, mas em ambientes de aprendizado
autênticos, baseados em problemas, baseados em projeto e de cocriação entre
alunos e professores.
BBC News Brasil - Numa era de uma crise de saúde mental
gigantesca, que atinge especialmente os jovens, como escola e professores podem
ajudar?
Schleicher - Os professores precisam ter tempo suficiente
para trabalhar com os alunos como indivíduos. Para serem bons coaches, bons
mentores, para passar tempo fora da sala de aula com os alunos. A gente tem uma
sociedade que foi organizada e dividida em professores, assistentes sociais,
psicólogos, mas precisamos criar um conjunto mais amplo de responsabilidades e
habilidades para lidar com questões relacionadas ao bem-estar mental.
Se você como estudante não sente que é escutado, não
sente significado no que você faz, é aí que a crise domina. Os professores
precisam colocar esse tipo de coisa em seu radar e que a responsabilidade não é
apenas de ensinar algo, mas de entender quem são seus alunos e encontrar tempo
e espaço para trabalhar com eles.
Há mais espaço para a escola cuidar da saúde mental e do
bem-estar dos alunos. As escolas costumam dizer que não podemos resolver todos
os problemas da sociedade, mas eu acho que a escola foi inventada para resolver
os problemas da sociedade.
BBC, Shin Suzuki
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