Congresso muda eleição e perdoa dívidas rápido como
se furta e discreto como se foge
De
quarta-feira 4 a sexta-feira 6 de outubro de 2017. Anote em sua agenda com o
próprio sangue esses três dias nos quais os congressistas — que se proclamam
seus representantes na Câmara dos Deputados e no Senado da República — bateram
sua carteira esvaziada pela crise e perdoaram as próprias dívidas à União. Tudo
foi “rápido como se furta” e “discreto como se foge”. Houve tumulto, mas tudo
saiu como manda o figurino do cinismo mais deslavado: Suas Excrescências
insolentíssimas não precisaram sequer votar pessoalmente, comprometendo seus
nomes nada limpos na falcatrua. A votação foi simbólica, ou seja, os líderes
votaram pelas bancadas e o resto da manada escondeu-se debaixo da saia ampla e
generosa da República, essa prostituta sem lingerie nem pudor.
Tudo começou
com uma mentira. Sob a égide de um cartola mal afamado e sempre disposto a dar
a própria cara para assumir o furto coletivo — Vicente (imagine!) Cândido —,
proclamado relator de uma reforma política que, há algum tempo, seu grupo, o
dito, mas sempre incapaz de honrar a própria denominação, Partido dos
Trabalhadores (PT), vem pregando. A arenga foi usada na tentativa de aplacar o
povo que se reuniu, empunhou faixas e bandeiras e protestou nas ruas das
cidades brasileiras com população significativa, contra os governos
delinquentes e o Estado complacente. O papo de Dilma Rousseff, a porta-voz do
socialismo cínico, era convocar uma Constituinte exclusiva para fazer uma
reforma política que abrigasse propostas caras a seus militantes e milicianos,
como financiamento público de campanha e censura à imprensa rebelde e aos
institutos de pesquisa que não fizessem o jogo dos que se dizem progressistas,
mas são apenas pró eles mesmos.
Deposta
madame, assumiu em seu lugar o vice, que não apenas foi eleito com ela, mas na
prática a elegeu com os votos da máquina partidária fundada para derrubar a
ditadura e, depois, afundada no lamaçal dos novos sócios; Estes, o PT e a
cambada de ladrões que a ele se associaram na depena completa dos cofres da
viúva, aplicaram o golpe da venda do bonde. Sob o pretexto, avalizado por
Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que a
proibição do financiamento de campanhas por empresas, que não votam, impede que
seja pago o alto custo da democracia, assumiram a defesa do financiamento
público para a farra privada. Ou seja: eles gastam e nós, os tontos da
patuleia, pagamos.
Assim foi
feito. Após intensas e acaloradas tentativas derrotadas de impor um saque de R$
3,7 bilhões para garantir campanhas à tripa forra com champanhota, votações
simbólicas garantiram a criação de um Fundo para Financiamento de Campanha,
extirpando a falseta do uso abusivo e amoral da palavra Democracia na
denominação. A toque de caixa, senadores e deputados aprovaram a punga. O mostrengo
nasceu sem teto, mas com piso. E, segundo notícia desta semana publicada neste
Estadão, com um rombo inicial de R$ 300 milhões. Olhe-se no espelho mais
próximo e perceba quem vai tapar esse rombo.
No mesmo
tríduo e sob a égide do mesmo bezerro de ouro, Senado e Câmara, revezando-se no
furto, providenciaram escândalo de dimensões similares ao aprovarem um chamado
Refis no qual tentaram perdoar as dívidas com o Fisco de parlamentares
suspeitos de corrupção. A pressão popular impediu que se fizesse a ignomínia.
Mas, como ninguém é de ferro, aproveitaram a iniciativa do governo esmoler no
comando da União para perdoar sonegadores que não acrescentavam à denominação
degradante a de corrupto, que, aliás, cada vez mais se beneficia da
complacência de políticos antes tidos como dignos e juízes assumidos como
chicaneiros.
O Refis é uma
excrescência assumida como norma há vários governos e sob vários regimes nesta
nossa República, que não respeita quem paga em dia nem incentiva quem se dispõe
a honrar noturna e diuturnamente, como diria a Rainha do Não Sabe, Dilma
Rousseff. Ou seja, a grande maioria da população brasileira, que não se humilha
ao ser tratada como otária, só para não ter o desprazer de ser perseguida pelos
publicanos de plantão em qualquer gestão ou indigestão. “Devo, não nego, não
preciso pagar” — este é o lema sempre renovado da cambada que segue o rastro do
deputado Newton Cardoso Júnior, que, ao palmilhar a trilha do pápi, o
ex-governador Newtão Cardoso, reformula de vez o velho “deitado” que assegurava:
“quem sai aos seus não degenera”. Para não comprometer a herança familiar, o
bom Newtinho exercita o “quem sai aos seus não regenera”. Os degenerados ocupam
o Éden dos que se endividam não pagando os impostos de praxe, porque sabem que
sempre serão indultados.
O Refis é uma
vergonha que se renova sempre que o Estado gasta demais, o que é uma rotina, e
precisa socorrer-se de instrumentos como a repatriação de recursos exportados
sem a devida autorização das autoridades monetárias, o que já constitui uma
efeméride. Cada vez que isso acontece o governo faz uma campanha subliminar que
pode ser traduzida como um alerta: “Não seja tolo, não pague imposto”. Mas à
tradição desavergonhada implantada por seus antecessores, inclusive sua
ex-parça dona Dilma, o dr. Michel Miguel, jurisconsulto renomado e especialista
respeitável em Direito Constitucional, extrapolou ao permitir que os associados
ao clube dos que se endividam porque passaram a ter poder de não pagar mesmo
não se incomodem mais com a pecha de sonegadores. O dr. Meirelles inspirou o
Refis para reduzir o rombo do déficit público do ano em R$ 12 bilhões,
contentou-se com meros R$ 9 bilhões até descobrir, tadinho, que, se pegar R$ 4
milhões, deve dar graças a Deus e a Santo Expedito, o padroeiro das causas
impossíveis. Newtinho, o rebento de quem pápi Newtão deve orgulhar-se muito,
permitiu a radicalização do slogan sub-reptício dos sonegadores empoderados:
“Só um completo idiota paga imposto. Sai dessa, imbecil!”
Mas, por
incrível que pareça, o episódio do Congresso punguista ainda é mais grave, pois
desmoraliza o Estado de Direito no que tem de mais sagrado: a soberania popular
por meio do voto. As campanhas bilionárias — a última das quais teve as duas
chapas concorrentes comprometidas e maculadas com o financiamento
majoritariamente feito por dois tipos de crime, ambos abomináveis, a caixa 2 e
a propina — interferem na sagrada vontade política do eleitor. Os democratas de
verdade, aqueles que têm vergonha na cara, condição de brasilidade na
Constituição de Capistrano de Abreu, o colega de seminário de padre Cícero
Romão Batista, não procuram fórmulas de atender ao gasto excessivo de partidos
e candidatos. Esforçam-se, ao contrário, para reduzir drasticamente os custos
absurdos, abusivos e amorais do reino de marafonas dos marqueteiros políticos.
O financiamento público é tão escuso — talvez até mais — do que a submissão dos
palanques à propina e ao caixa 2. Pois transfere o custo pesado do furto e do
marketing para o bolso de quem arca com todas as despesas do Estado estroina. O
cidadão financia a farra dos candidatos nos quais não pretende votar e também a
de quem sufragará. Em ambos os casos é um vilipêndio, que não merece
misericórdia nem passiva aceitação.
O mais grave
de tudo é que quem faz da Constituição uma Bíblia Sagrada não atenta para o
óbvio: mudanças no sistema eleitoral não podem ser feitas por maiorias simples
no Congresso. Nem sequer por maiorias de três quintos ou dois terços do total
dos que só fingem representar o povo. Na verdade, só o próprio povo, em
plebiscito, pode reformar graves assuntos como o sistema proporcional e os
métodos de financiamento de campanha. Ao não dar um sinal de que vai exigir
isso dos congressistas, com os quais vive arengando à toa por motivos
insignificantes, o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) dá mostras
inequívocas e permanentes de que não é um poder popular, mas discricionário. Ou
seja, serve não aos cidadãos, aos quais não deve a indicação de cada membro,
mas aos grupos que comandam o Executivo, cujo chefe indica, e do Legislativo,
cuja casta sempre aprova cada um, transformando-se na única Corte do amém na
história da democracia em qualquer canto do planeta em que ela funcione, seja
bem, seja precariamente.
Por José Nêumanne,
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A arte de escrever bem
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