A ideia do biohacking é democratizar o acesso à ciência | Foto: JVisentin |
A paranoia sobre a origem da proteína animal é frequente, mas,
nessa turma, a conversa não fica só na teoria conspiratória: reunidas em um
laboratório de garagem, as amigas estão testando protocolos para fazer um teste
de procedência da carne. Isso mesmo: checar se o DNA daquela amostra é
realmente bovino.
Bem-vindo ao mundo do biohacking: um universo onde entusiastas fazem uso da
biologia de maneira amadora em resposta a uma curiosidade científica, uma
dúvida pessoal ou um problema coletivo.
A palavra hacking não é
novidade. No Brasil, costuma ser associada à ideia de hackers que
invadem computadores e roubam dados, os "piratas de computadores".
Mas o conceito de hacking na verdade é muito mais amplo – e não está
necessariamente ligado à ações maliciosas. Em seu sentido original, significa
fazer modificações em sistemas ou programas para obter um recurso que antes não
estava disponível, encontrar uma melhoria ou corrigir um problema.
Existe inclusive a chamada "cultura hacker", uma
ideologia que prega amplo acesso à tecnologia, livre circulação de informação,
descentralização de conhecimento e inovação.
O hacking também não precisa
estar restrito ao mundo da informática: o biohacking une o universo da
biologia com a cultura hacker, formando a Biologia DIY, que quer dizer
"do it yourself", ou "faça você mesmo".
"A ideia é democratizar a tecnologia, mostrar que a ciência
não precisa se restringir à área da universidade. É ampliar o número de
experiências possíveis com menos recursos", diz o colombiano Andres Ochoa,
consultor de tecnologia e criador da rede SynTechBio, que reúne biohackers da América Latina.
A rede tem como membros pelo menos 14 grupos espalhados pelo continente, três
deles no Brasil.
O biohacking é essencialmente interdisciplinar, ou
seja, atrai pessoas de áreas como Física, Design, Artes, Computação e
Matemática. "Elas juntam seus conhecimentos à Biologia para desenvolver
projetos", diz Ochoa.
Claro que, assim como hackers de computadores, os interessados precisam
ter um bom conhecimento no assunto para poder se aventurar em ações mais
inovadoras. Mas isso não significa ter doutorado em Biotecnologia, diz a
professora Liza Felicori, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"A Biologia é bastante
acessível, é possível fazer o conhecimento se popularizar. Tanto que às vezes a
gente faz experimentos com alunos de ensino médio e eles entendem, fazem bem.
Conseguem tranquilamente extrair o DNA de um morango, por exemplo", afirma
ela, que está montando um laboratório aberto para pessoas de fora da
universidade.
"Muitas vezes, a universidade
fica fechada demais em si mesma. Os jovens não têm os bloqueios de quem lida
com as dificuldades da ciência há anos e acabam trazendo novas soluções."
Chips
e DNA
Há três principais subdivisões na
Biologia DIY. Grupos focados em fazer experimentos para encontrar soluções;
pessoas interessadas em desenvolver e baratear equipamentos e em montar
laboratórios coletivos que possibilitem esses experimentos; e uma terceira
vertente, interessada em modificações corporais tecnológicas.
Nessa última área estão, por
exemplo, pessoas que injetam chips e ímãs sob a pele e fazem experimentações colocando substâncias e
até mesmo circuitos eletrônicos no próprio corpo. Essa é a vertente do biohacking que
acaba chamando mais atenção, mas também atrai críticas dentro do movimento.
"É um grupo muito pequeno que faz isso. Chamam atenção, mas
são minoria. Estamos falando de tecnologias que estão evoluindo cada vez mais
rápido. Não faz sentido você colocar em seu corpo um negócio que em pouco tempo
vai ficar obsoleto", diz Andres Ochoa.
Ele argumenta que a grande tendência são as tecnologias
"usáveis", como relógios inteligentes e circuitos que podem ser
colados sobre a pele e removidos com facilidade.
"Em geral, quem faz isso
na verdade está fazendo uma declaração, é mais um ato simbólico do que uma
coisa que tenha uma grande função prática", diz o biohacker Otto
Heringer, de São Paulo, que começou a fazer experimentos como distração e
acabou criando uma pequena empresa para criar um novo defensivo agrícola
através do desligamento de um gene de pragas.
Um de seus sócios, Erico Perrella, implantou um chip RFID na mão
em 2014 - sua intenção era usar o mecanismo para dar partida em sua kombi, mas
o carro acabou vendido, e o chip, que ainda está em sua mão, hoje não tem mais
utilidade para ele.
Já dentro do campo das
experimentações, as possibilidades trazidas pela Biologia DIY são inúmeras. A
ideia de analisar a origem de alimentos, por exemplo, se baseia em uma técnica
chamada DNA Barcoding (Codigo de Barras de DNA, em tradução
livre).
Todo segundo sábado do mês o centro Genspace, em Nova York, abre seu laboratório
para que as pessoas levem suas próprias amostras de alimentos e façam testes do
tipo. Há quem invista na divulgação científica e nas possibilidades
educacionais da Biologia DIY.
É o caso do carioca Filipe Oliviera, um dos criadores do
Conector Ciência, iniciativa que visa colocar em contato escolas com métodos de
ensino de baixo custo e fazer os próprios alunos construírem os equipamentos.
Dá para descobrir a biodiversidade com um microscópio de papel, fazer a
automação de luzes com sensores de luminosidade, entre outros usos.
Outro caminho comum é o desenvolvimento de novos materiais, como
fez o estudante de Biotecnologia baiano Geisel Alves, que ajudou uma ONG a
criar um mecanismo que converte fibra do coco verde em papel reciclável usando
métodos caseiros e materiais acessíveis.
"É um material fibroso
genérico que você mistura com outros materiais para fazer várias coisas. Além
do papel, dá pra fazer telha, piso, tijolo", explica Alves. "Aqui, o
alto consumo de coco é um problema grande, porque eles acabam empilhados nas
praias. Atrai ratos, mosquito da dengue."
"Novos materiais são um nicho", diz Andres Ochoa.
"No Brasil já se trabalha com produção de um tecido ecológico que parece
com couro a partir dos micro-oganismos que fazem kombucha (uma bebida
fermentada)."
Manipular micro-organismos também é muito útil para tornar
alguns tipos de fármacos mais acessíveis. Andrés Ochoa participou da fase
inicial do projeto Open Insulin, em que um grupo de 16 biohackers se
uniu para criar um protocolo open source (aberto) de insulina - espécie de
instrução que serve de base para a produção da substância, usada no tratamento
de diabetes, de maneira mais barata e acessível. O projeto conseguiu arrecadar
U$ 16 mil ( R$ 50 mil) no Experiment, uma plataforma de financiamento
coletivo para pesquisas científicas.
No Brasil, não há legislação específica para "laboratórios
de garagem", no entanto, tudo o que é produzido fica sujeitos à legislação
específica para aquele produto. Remédios, por exemplo, terão de passar por
aprovação da Anvisa antes de serem distribuídos.
Por isso, os biohackers acabam criando empresas e muitas vezes
profissionalizando o que era um hobby. A engenheira química Clarissa Lopes, o
estudante de Engenharia Aeroespacial Lucas Milagres e o estudante de
Bioinformática Carlos Gonçalves criaram uma empresa para tocar seu projeto de
usar bactérias na produção de calcitriol, um medicamento usado no tratamento de
insuficiência crônica renal.
"A indústria farmacêutica usa
hoje outro processo, de bem mais difícil acesso. Não há nenhum produtor local",
afirma Gonçalves, que evita divulgar mais detalhes do projeto por ainda não ter
registrado uma patente. Sua expectativa é chegar a um forma de produção mais
barata do remédio.
Laboratórios
O Brasil já tem diversos laboratórios
"de garagem" abertos, com impressoras 3D e outros materiais para quem
é adepto do faça-você-mesmo — como o Olabi, no Rio de Janeiro, e o Garoa
Hackerspace e os FabLabs da Prefeitura de São Paulo.
Para trabalhar com "Biologia de
Garagem", no entanto, é preciso um pouco mais: áreas separadas, estéreis,
com equipamentos específicos e protocolos de biossegurança. São os
chamados wetlabs, laboratórios "molhados", porque
lidam com componentes vivos.
O espaço aberto pela professora Liza
Felicori, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é um deles. Ele já
recebeu os equipamentos e deve abrir até o fim do ano. Há microscópios, estufa,
pipetas, uma centrífuga (para separar componentes de soluções), uma impressora
3D, uma máquina de PCR (para reproduzir DNA em grandes quantidades) e um nanodrop (que mede a concentração de moléculas).
A estudante Carol Gonzaga
também montou um desses espaços, o Hub, com outros cinco biohackers no
Rio de Janeiro. O laboratório fica atualmente em um local improvisado, mas será
levado para um galpão de 320 m².
"Terá um espaço de fabricação digital, uma cozinha
experimental, laboratório de biohacking e um laboratório de mídia para lidar
com eletrônica e comunicação", explica ela, que conseguiu apoio do parque
tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Interessado em baratear equipamentos para esses laboratórios, o
brasileiro André Maia Chagas desenvolveu projetos nesse sentido e acabou
lançando a start-up[empresa iniciante de tecnologia] Prometheus
Science, na Alemanha.
Sua empresa é parte da enorme comunidade criando equipamentos
baratos e mais acessíveis. "Possibilitando que um experimento que custa
100 euros possa ser feito por 3, você quebra um das principais barreiras da
ciência, que é a dificuldade de acesso por causa de dinheiro", diz ele.
Nós
e eles
Nos Estados Unidos e na Europa, o
movimento Biologia DIY foi surgindo conforme tecnologias biológicas, como
sequenciamento de DNA, foram ficando mais acessíveis. Já no Brasil e em países
como Índia e África do Sul, contam os biohackers, o movimento surgiu da
necessidade.
"Nos Estados Unidos, o acesso é
tão fácil, tudo é tão barato que a galera consegue montar laboratórios na
própria garagem. Aqui em São Paulo, não tem como fazer isso. Para começar, a
gente nem tem garagem", diz Otto Heringer, que faz especialização na
Universidade de São Paulo (USP).
Há mais de 80 espaços de Biologia DIY
pelo mundo, de acordo com o site DIYBio. A maioria é em cidades do hemisfério
norte como Amsterdã (Holanda), Berlim (Alemanha), Paris (França), Nova York e
São Francisco (Estados Unidos).
"Não posso reclamar da USP, mas
muitas universidades federais não têm os laboratórios que os caras na Europa
têm em casa", afirma o Heringer. Nos Estados Unidos, por exemplo, é possível comprar kitsprontos de engenharia genética pela internet.
No Brasil, por conta dos
preços e das dificuldades, a maioria dos laboratórios abertos na área de biologia
ainda são, de algum modo, ligados às universidades - ocupando espaços ou
reaproveitando equipamentos.
"Mesmo a ciência 'oficial' que fazemos muitas vezes é em
uma salinha minúscula, com material improvisado, com muita dificuldade. A gente
está acostumado com a gambiarra. Sair dos muros da universidade ou dos
laboratórios das grandes indústrias é quase uma questão de sobrevivência pra
gente. O biohacking faz muito mais sentido para nós do que
para eles", afirma.
Ele também aponta a diferença nos tipos de iniciativas: enquanto
no Brasil os projetos tendem a ser voltados para resolver problemas reais, nos
Estados Unidos e na Europa, muitos deles são mais recreativos ou tem um quê de
hobby excêntrico.
Nos locais onde o movimento é
mais desenvolvido, já começaram as surgir as preocupações com possíveis riscos
– laboratórios amadores não poderiam criar organismos nocivos? O FBI, a polícia
federal americana, monitora o movimento, mas não há regulamentação específica.
Os entusiastas dizem que todos os locais seguem protocolos de
biossegurança e cartilhas de bom funcionamento. O cientista francês Thomas
Landrain, que estuda o movimento, diz em sua pesquisa que os espaços ainda não
têm sofisticação suficiente para gerar problemas.
Mas, apesar da relativa limitação técnica, os biohackers seguem
entusiasmados. "Tornar a ciência mais acessível tem um enorme potencial
transformador", diz André Maia Chagas, do Prometheus Science.
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