Nesta segunda-feira (23/10), foram divulgadas as conclusões da
CPI da Previdência. Conforme se esperava, suas conclusões, com ares de
evidência científica, sustentam que não há déficit na seguridade social e que,
portanto, não haveria necessidade de reforma da previdência.
Não obstante as boas intenções dos integrantes da CPI, o
relatório é um desserviço ao país ao vender à sociedade brasileira uma ilusão.
Muito pior que as ilusões eleitorais, que prometem o céu na terra, cenários
paradisíacos, sem correspondência com a prática governamental implementada por
quem vence as eleições, é a negação de problemas graves reais, que já
comprometem o presente e irão comprometer ainda mais o futuro. Como bem ensina
a sabedoria popular, o pior cego é o que não quer ver, o que nega seus
problemas e com isso tem o dom de agravá-los.
O relatório repete o que já vinha sendo divulgado em vídeos
produzidos por sindicatos e que circulam pela internet. Tirando o foco da
previdência do setor privado, que é deficitária, tanto a urbana, como a rural,
concentra sua atenção na seguridade social, que engloba saúde, assistência
social e previdência.
Somando-se todas as fontes de receitas previstas para a
seguridade social e desconsiderando-se a DRU (desvinculação de receitas da
União), vista como um desvio indevido de recursos da seguridade, e os gastos
com previdência do setor público (servidores e militares), haveria uma sobra de
recursos, um superávit e disso adviria a conclusão panglossiana de que não
haveria necessidade de reforma alguma.
Há um conjunto de erros graves na construção desse raciocínio.
Primeiro, evitar o foco apenas na questão previdenciária, claramente
deficitária. Alegam que não seria possível ou correto fazer isso, uma vez que
há receitas destinadas à seguridade como um todo e que, por isso, a análise
teria de ser global.
O que estão dizendo, em verdade, é que pouco se importam se a
previdência do setor privado é deficitária e tem de ser coberta por recursos
que poderiam ir para a saúde e para assistência social. Quanto maior o déficit
da previdência do setor privado, menos recursos estarão disponívels para a
saúde e assistência social. É curioso que pessoas que defendem mais recursos
para a saúde não percebam que ela concorre de forma desigual com a previdência,
que, pelas regras atuais, tem crescimento vegetativo superior ao crescimento do
PIB e da arrecadação. É uma escolha alocativa errada priorizar gastos com
previdência em detrimento de gastos com saúde.
O segundo erro crasso é desconsiderar a DRU dos cálculos, como
se ela fosse um golpe contra a seguridade, um desvio de recursos, que pudesse
ser corrigido com facilidade e simplicidade. Ignoram que a DRU serve
fundamentalmente para custear o gasto com a previdência do setor público
federal.
Do ponto de vista meramente jurídico, os gastos com inativos do
setor público federal, civis e militares, não integram o orçamento da
seguridade social, mas o orçamento fiscal. Trata-se de uma distinção jurídica,
mas que não tem, no âmbito da discussão previdenciária, nenhum sentido
econômico, uma vez que esse déficit tem de ser coberto onde quer que esteja ele
classificado, seja na seguridade social, seja no orçamento fiscal. Dizer que o
gasto com inativos do setor público, civis e militares, é o não é seguridade,
não muda em nada a gravidade do problema e a necessidade de seu reparo.
Para o contribuinte brasileiro, que já arca com carga tributária
de país rico, mas tem serviço público de país atrasado, pouco importa se o seu
dinheiro foi usado para pagar a aposentadoria do empregado do setor privado ou
a do servidor público federal. É dinheiro gasto com previdência, que requer
cada vez mais dinheiro desse contribuinte, deixando os serviços públicos com
cada vez menos dinheiro.
Ignorar, portanto, a DRU e sua principal finalidade, é fingir
que um rombo previdenciário bilionário não existe ou que ele possa ser
facilmente coberto por uma outra fonte de recursos que ninguém sabe qual seria.
O terceiro erro grave é não olhar para o futuro próximo e para o
médio e longo prazo. O que deve determinar as regras de um regime
previdenciário, para que esteja em equilíbrio e não drene recursos que poderiam
ser usados em outras finalidades, são as projeções demográficas. Manter uma
adequada relação entre trabalhadores ativos e aposentados e pensionistas é
fundamental para esse equilíbrio.
Mesmo que a previdência atual fosse equilibrada, o que está
longe de ser verdade, bastaria olhar as projeções demográficas da sociedade
brasileira para constatar a necessidade de uma reforma que assegure a
sustentabilidade do sistema. O aumento da expectativa de vida e as quedas das
taxas de natalidade resultam em rápido envelhecimento da população brasileira.
Estima-se que teremos no Brasil em menos de cinquenta anos uma transição
demográfica já em curso que países ricos levaram mais de cem anos para
experimentar. O déficit atual da previdência, tanto do setor privado como do
público, são apenas reveladores do quão atrasada já está esta reforma. Deveria
ter sido feita antes que déficit houvesse.
Falta ao relatório da CPI não apenas essa visão prospectiva, mas
também um olhar horizontal sobre como funciona a previdência no mundo todo. Se
países tão ricos como Alemanha, Japão, França, EUA e Inglaterra aposentam os
trabalhadores com idades em torno de 67 anos, porque nós, que somos pobres,
deveríamos conceder aposentadorias para trabalhadores de 55 anos, em média? Se
um país rico e envelhecido como o Japão gasta 8% do seu PIB com aposentadorias,
tem sentido um país ainda não tão envelhecido e de renda média como o Brasil
gastar 10% com previdência?
Aposentadorias precoces vão ajudar ou atrapalhar nosso
desenvolvimento? Vão agravar ou minorar nossa desigualdade social? Cada pessoa
aposentada significa uma despesa obrigatória de caráter continuado que será
custeada pelo resto da sociedade sem nenhuma contrapartida em termos de
serviços públicos. Se o modelo é deficitário, significa que recursos que
poderiam ir para saúde, educação, segurança e infraestrutura serão destinados
ao pagamento de aposentadorias. Quanto maior o déficit, menos serviços
públicos.
Por incrível que pareça, o gasto social do Brasil em percentual
do PIB (24,5%) é superior ao do Canadá (21,3%) e do Reino Unido (24,0%) e
próximo ao da Alemanha (27,3%). Ocorre que mais da metade desse gasto (12,4%) é
feito com previdência e assistência social. Gastamos apenas 6% com educação
pública e 4,8% com saúde pública, 0,5% com Bolsa-Família e 0,8% com Seguro
Desemprego e Abono Salarial.
Os números são eloquentes, assim como o é nosso atraso econômico
e social. Ao negar a necessidade de reforma da previdência, o que a CPI da
Previdência nos diz é que está bom gastarmos cada vez mais com aposentadorias
em vez de aumentarmos os gastos com saúde e educação. Um verdadeiro tiro no pé.
Por Júlio Marcelo de Oliveira, no Consultor Jurídico
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