A falta que a
política não faz. O tribunal que zela pelas contas do Rio de Janeiro funciona
só com servidores e endurece com o governo
Na expectativa do
nascimento da filha, o carioca Rodrigo Nascimento decidiu que era hora de
voltar para o Rio de Janeiro, nem que para isso tivesse de abandonar o emprego
de auditor no Tribunal de Contas da União (TCU) em Brasília. Decidido a
permanecer no ramo – bom salário, jornada de sete horas diárias, bom plano de
saúde, estabilidade, aposentadoria integral –, Nascimento prestou concurso para
o Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Rio. Era um funil estreito demais, no
qual se amontoavam mais de 700 candidatos para três vagas de conselheiro
substituto. Depois de algumas provas, sobraram 16 concorrentes. O último degrau
era a sustentação oral de cinco temas ante bancadas diferentes, com notas
divulgadas a cada rodada de avaliação. Nascimento ficou em segundo lugar, mas
foi alçado a líder porque o primeiro colocado descumpriu a regra de ter pelo
menos 35 anos.
Era para ser uma
vida tranquila. Porém, em pouco mais de um ano, Nascimento não só atuou como
conselheiro titular, como comandou sessões plenárias, aquelas nas quais os
conselheiros examinam e julgam processos. “Um conselheiro substituto presidir
uma sessão foi algo inédito”, diz Nascimento, um servidor comum em
circunstâncias inéditas. Em 29 de março, a Polícia Federal prendeu cinco dos
sete conselheiros titulares do tribunal fluminense. Por decisão do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), Aloysio Neves, Domingos Brazão, José Gomes Graciosa,
Marco Antonio Alencar e José Maurício Nolasco foram afastados por 180 dias,
suspeitos de receber propina. No dia 15 de setembro, o prazo foi prorrogado por
mais 180. Todos estão proibidos de ir à sede do tribunal e de manter qualquer
contato com funcionários. Só a conselheira Marianna Montebello Willeman escapou
ilesa.
À semelhança do
Tribunal de Contas da União, os tribunais de contas estaduais fiscalizam os gastos
e julgam as contas do governo estadual. O que uma investigação derivada da
Operação Lava Jato mostrou é que os conselheiros no Rio recebiam propina
justamente para não fazer seu trabalho direito. Preso, o ex-presidente do
tribunal Jonas Lopes e seu filho fizeram um acordo de colaboração com o
Ministério Público Federal. Lopes confessou que ele e os colegas recebiam
dinheiro sujo para permitir que a Corrupção corresse solta em obras da Copa e
da Olimpíada, entre outras. Segundo Lopes, ele e os colegas receberam propina
de 1% do valor de obras executadas pelo governo do Rio entre 2007 e 2014. Os
mais afoitos recebiam dinheiro no próprio tribunal e até reclamavam dos valores
e do atraso na mesada. Lopes disse que apenas a conselheira Marianna Montebello
ficava fora desses acertos.
Desde o afastamento
dessa turma, o tribunal vive a situação inusitada, para os padrões de tribunais
brasileiros com a mesma função, de funcionar exclusivamente com conselheiros
sem ligações políticas. Assim, coisas raras – para o mundo político –
acontecem. No dia 30 de maio, os conselheiros decidiram por unanimidade seguir
a recomendação do corpo técnico e rejeitaram as contas de 2016 do governo de
Luiz Fernando Pezão. Por coincidência, a relatora foi a conselheira Marianna,
que apontou 25 “impropriedades” e quatro “Irregularidades” – a mais grave delas
o Repasse para a saúde inferior a 12% da arrecadação de impostos, como manda a
Constituição. Foi a segunda vez que o tribunal rejeitou as contas de um
governador do Rio. O caso anterior ocorreu em 2002, na administração de Anthony
Garotinho e Benedita da Silva.
Pela lei, cinco dos
sete conselheiros dos tribunais de contas são escolhidos pelo governador ou
pela Assembleia Legislativa –
uma vaga fica com
auditores do tribunal e outra com o Ministério Público de Contas. Desse modo, a
maioria dos conselheiros são expolíticos ou apadrinhados deles – no caso dos
afastados do Rio, Brazão, Graciosa e Alencar eram deputados estaduais e Nolasco
foi escolhido pelos deputados. Eles ganham um cargo vitalício, muito bem
remunerado e cheio de regalias. Por isso, muitos demonstram uma tendência
irresistível a ser dóceis e benevolentes com governadores, secretários e o
governo em geral em suas análises. Na maioria das vezes, contrariam dados do
corpo técnico para evitar embaraços ao poder, recorrem a raciocínios enviesados
para justificar atos indefensáveis. No julgamento das contas da gestão de Pezão
e Sérgio Cabral em 2014, o conselheiro Aloysio Neves – um dos afastados
acusados de receber propina – contrariou os técnicos ao sugerir a aprovação das
contas com 20 “ressalvas”. Uma delas mostrava que o governador descumprira o
mínimo constitucional de gastar 12% da arrecadação de impostos com a saúde.
Ligado ao PMDB, ex-chefe de gabinete da presidência da Assembleia Legislativa
nas gestões de Sérgio Cabral e do atual presidente da Casa, Jorge Picciani,
Neves ignorou ainda o parecer que o governo havia deixado de contabilizar uma
dívida de R$ 1 bilhão. Neves está entre os presos por se beneficiar de propina
para liberar obras do governo Cabral.
Por ser a única
conselheira remanescente, Marianna Montebello tornou-se – se não de direito,
mas de fato – a presidente interina da instituição nestes novos tempos. Para
evitar a interrupção dos trabalhos, ela conseguiu que o Supremo Tribunal
Federal (STF) referendasse a decisão de incorporar os três conselheiros
substitutos ao plenário da Casa, que, assim, passou a atuar com quatro
integrantes. Ela ainda determinou que os gabinetes dos investigados fossem
lacrados e que todos os 1.120 servidores assinassem um termo em que se
comprometiam a não ter nenhum contato com o sexteto afastado. Nos dois meses
seguintes à detenção dos conselheiros, 81 servidores pediram exoneração. Os
imponentes gabinetes dos conselheiros titulares, cada um situado em um andar
diferente do prédio, exibem algum movimento por parte dos funcionários que não
foram realocados. O restaurante exclusivo dos figurões está deserto. Bem mais
acanhadas que os latifúndios dos conselheiros titulares são as salas dos três
substitutos, que ficam lado a lado. Andrea Siqueira Martins, Rodrigo Nascimento
e Marcelo Verdini Maia costumam almoçar por ali mesmo. Além dos processos de
que são relatores, eles herdaram o acervo de ações dos afastados.
No ranking nacional
da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA),
vinculado ao Ministério da Justiça, o tribunal fluminense ficou na
antepenúltima posição em termos de transparência em 2016, à frente apenas de
Amapá e Alagoas. Em 2012, a Procuradoria da República acusou os conselheiros do
Rio de embolsar uma “verba secreta” de R$ 4 milhões por ano. “Os tribunais de
contas são capturados pelo que há de pior no cenário brasileiro”, afirma Diogo
Ringenberg, procurador do Ministério Público de Contas de Santa Catarina e
ex-presidente da Associação Nacional do Ministério Público de Contas. Algumas
coisas mudaram desde março. As sessões plenárias passaram a ser transmitidas ao
vivo on-line e os relatórios elaborados pelos auditores são publicados no site
do tribunal – assim, é possível saber se a resolução de um conselheiro ou do
plenário contraria a recomendação dos técnicos. De abril para cá, houve ainda
uma economia de R$ 8 milhões em custeio do próprio tribunal, quase nada em um
orçamento anual de R$ 671 milhões. Ficou mais fácil também pesquisar no site a
remuneração dos funcionários, que antes era labiríntica. “Meus colegas do corpo
técnico dizem que agora há mais debate em plenário”, afirma a conselheira
substituta Andrea Siqueira Martins. O tribunal ameaça tornar inelegível o
Prefeito que fizer a velha jogada de errar editais para poder contratar
empresas de coleta de lixo de forma emergencial, sempre muito suspeita. Em
agosto, o tribunal cancelou a Licitação para a contratação de uma empresa de
táxi-aéreo para o governador Pezão. A economia de R$ 2,5 milhões foi simbólica
para um estado com um déficit de US$ 17 bilhões.
Há episódios de
afastamento de conselheiros em outros tribunais de contas, como São Paulo e
Amapá. Uma radiografia feita pela ONG Transparência Brasil, no ano passado,
mostra que um em cada quatro dos 233 conselheiros dos 34 tribunais de contas do
país é processado ou já foi punido pela Justiça ou pelas próprias Cortes
contábeis. Como aconteceu no Rio, no mês passado o ministro Luiz Fux, do
Supremo Tribunal Federal, afastou do cargo cinco dos sete conselheiros do
Tribunal de Contas de Mato Grosso acusados de receber R$ 53 milhões de propina
em 2013 e 2014.
Preso por Corrupção
desde 2015, o exgovernador Silval Barbosa disse em sua delação premiada que o
então presidente do tribunal, José Carlos Novelli, pediu propina para liberar o
andamento de uma série de obras, incluindo as que envolviam a Copa do Mundo.
Pelo relato de Silval, os conselheiros eram rigorosos na Prestação de contas do
dinheiro sujo, não da verba pública. Novelli exigiu que Silval assinasse 36
notas promissórias que lhe seriam devolvidas à medida que a propina fosse
quitada em parcelas. Segundo Silval, Novelli chegou a cobrá-lo para que zelasse
melhor pelas contas da propina. Silval recebeu de volta 32 das 36 promissórias
de propina que assinou. Um assombro.
Enquanto a
investigação está em andamento, cada conselheiro do Rio segue recebendo
vencimentos que beiram os R$ 50 mil mensais sem precisar sair de casa. Na falta
da ajuda deles, os deputados estaduais socorreram o governo Pezão na última
etapa: em 13 de setembro, contrariaram a decisão do tribunal e aprovaram as
contas de 2016 do governo por 43 votos a 21.
Por Sérgio Garcia e Hudson Corrêa, na Revista Época
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