No desespero da autodefesa, o sistema político-partidário não hesita em
pôr em risco a própria democracia
Os idos de 64 já vão longe, embora existam algumas semelhanças com o
presente. Hoje a situação internacional é favorável à democracia, o Brasil está
mais ligado ao mundo. E a tese fundamental é de que sociedade tem a capacidade
de resolver por si a grande crise em que está metida.
Essa tese é também a razão da nossa esperança, não há a mínima condição
de abandoná-la. No entanto, ela sofreu um golpe no processo que envolveu o
Supremo e o Senado, culminando com a suspensão das medidas cautelares aplicadas
ao senador Aécio Neves.
Já é grande o número de pessoas que não acreditam em solução democrática
para a crise. Quem observar o discutido discurso do general Mourão, que admitiu
a possibilidade de intervenção militar, verá que ele coloca como um dos fatores
que a justificariam a incapacidade da Justiça de punir a corrupção no mundo
político. E a melhor maneira de negar essa perspectiva sombria é, precisamente,
demonstrar o contrário: que a Justiça cumprirá o seu papel, restando à
sociedade completar a tarefa com mudanças em 2018.
O Supremo ia nesse caminho quando esteve prestes a derrubar o foro
privilegiado. Quem assistiu às discussões teve a impressão de que venceria a
expectativa da sociedade de que a lei vale para todos. Mas o mesmo Supremo que
mostrava tendência a derrubar o foro privilegiado suspendeu a decisão e, em seguida,
deu um passo no sentido oposto: ampliou a blindagem dos políticos, submetendo
medidas cautelares ao crivo do Parlamento.
Quem ouviu o discurso da ministra Cármen Lúcia num primeiro momento teve
a impressão de que sua posição era contrária ao foro privilegiado. Na votação
posterior, porém, recuou. Titubeando, mas recuou.
O Supremo decidiu abrir mão de uma prerrogativa. Afastar do mandato ou
determinar recolhimento noturno não é o mesmo que prisão. É uma contingência
das investigações.
Claro que, ao entregar a decisão ao Senado, as medidas cautelares seriam
derrubadas. Entre todos os discursos, o mais cristalino foi o do senador
Roberto Rocha. Ele citou um poema que dizia mais ou menos isto: se deixarem
levar alguém hoje, amanhã levarão outro e o último estará sozinho quando vierem
buscá-lo. É uma ideia interessante no contexto de países totalitários, a prisão
é ameaça válida para todos os indivíduos. Mas Rocha não estava falando de um
país, e sim do próprio Senado, uma Casa cheia de investigados pela Lava Jato
cavando a última trincheira na areia movediça.
Outro passo atrás está a caminho no Supremo: recuar da prisão após
sentença em segunda instância. Isso significa a possibilidade ser preso só
depois de morto, no caixão!
Não sei como esses recuos serão metabolizados. Certamente, tornam mais
difícil o caminho de uma solução democrática. Provocam indiferença enojada em
muitas pessoas, em outras apenas reforçam o desejo de uma saída autoritária.
Apesar de tudo, não se pode dizer que todo o Supremo e todo o Senado
tenham cavado mais um fosso de decepção. Tanto num como no outro há vozes
discordantes.
No Supremo deu empate, resolvido com um hesitante voto de Minerva. No
Senado, pouquíssimos entre os que votaram contra Aécio defendem a tese de que o
Supremo deveria ter a decisão final, retomar o poder de definir medidas
cautelares sem consultar o Congresso.
Isso significa que a maioria, incluído o PT, já considera como uma
conquista irreversível o poder de dar a palavra final. Ganharam um escudo e vão
usá-lo quando quiserem.
Imagino que o STF tenha tomado a decisão de abrir mão da palavra final
na expectativa de evitar uma crise entre instituições, num momento de
desemprego, tensões políticas. Mas certas crises têm de ser enfrentadas e
vencidas. O Congresso está de costas para a sociedade. Se a Justiça, no caso de
Aécio, não se impõe e, no caso de Temer, não consegue permissão para
investigá-lo, acaba transmitindo a impressão de que é impossível a lei valer
para todos.
O Supremo, penso eu, poderia voltar a dar um passo adiante, retomando a
votação do foro privilegiado. O ministro Alexandre de Moraes pediu vista. É
estranho que um ministro não tenha ainda posição sobre o tema. Ele tem
concedido entrevistas sobre revisar a prisão em segunda instância, o que
significa caminhar no sentido inverso.
Moraes transmite a impressão de que está pronto para dar um passo atrás
e precisa estudar muito ainda para votar um passo à frente. “Which side are you on?”,
pergunta a canção de Dropkick Murphys.
O caminho que reforça o velho sistema político-partidário e fortalece a
impunidade acaba sendo um grande obstáculo à democracia, embora se revista de
uma retórica democrática, sempre defendendo a Constituição, o direito dos
acusados, a liberdade. Mas algumas belas abstrações se revelam, na prática,
apenas uma forma de proteger um sistema poderoso e sofisticado de corrupção.
A versão poética do senador Roberto Rocha é mais próxima da realidade.
Se deixarem levar um a um, acabam levando todos. É uma variante dramática do
verso “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”. Mas apenas próxima da
realidade: alguns votaram com naturalidade contra a blindagem não só de Aécio,
mas do conjunto dos parlamentares.
Essas batalhas, contudo, não se resolvem apenas dentro das instituições.
Elas dependem da sociedade, ou pelo menos de quem compreende que e a solução
autoritária é um trágico passo atrás. Um passo razoável seria acionar mais o
que resta de apoio nas instituições e travar um amplo diálogo sobre como evitar
o pior. No desespero da autodefesa, o sistema político-partidário não hesita em
pôr em risco a própria democracia.
Gostaria de estar dramatizando. Sei que 64 está distante, todavia a
conjuntura externa favorável e o nível de informação ampliado na era digital
são fatores que não bastam para garantir uma saída democrática. Ela precisa de
uma pequena ajuda dos amigos.
Para se defender, o sistema político não hesita em pôr a democracia em
risco.
Por Fernando Gabeira, no
Estadão
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