Em junho de 2020, a Agência Nacional de Cinema -
Ancine divulgou uma lista com 168 projetos cujas prestações de contas haviam
sido analisadas por ela. Destes, 102 tiveram as contas reprovadas, ou seja,
mais de 60%.
Na lista, a Agência divulgou o nome tanto da produtora quanto do projeto cujas
contas foram reprovadas, mas, estranhamente, não dava a mesma publicidade aos
motivos da reprovação.
Mais estranho ainda seria o fato de que diversas das obras reprovadas foram
produzidas há quase 20 anos, como o filme 'Madame Satã', que é de 2002, cujos
documentos financeiros, apresentados à época, foram agora 'desenterrados' para
serem avaliados sob a luz de regras e entendimentos de hoje.
Mas, afinal, o que teria motivado essa movimentação tão 'instantânea' da
Ancine, que ainda conta com um passivo de mais de quatro mil projetos sem
análise?
Tudo parece ter começado no Tribunal
de Contas da União - TCU,
com o processo nº 017.413/2017-6 que tinha por objetivo verificar se a
metodologia para análise das prestações de contas utilizada até então pela
Agência era adequada - a denominada metodologia 'Ancine + Simples', prevista na
Instrução Normativa 124.
Segundo o TCU, essa
metodologia que autorizava a análise financeira por amostragem - quando apenas
projetos com determinadas características ou problemas têm seus documentos
financeiros avaliados - e aceitava informações de cunho meramente
declaratórios, ofenderia a regra geral de prestação de contas dos recursos
públicos.
Em conclusão, o TCU, no
Acórdão 721/2019, de 27 de março de 2019, determinou que a ANCINE reavaliasse
todos os projetos cujas prestações de contas tivessem sido apreciadas por
amostragem, ou seja, sem a análise orçamentária/financeira detalhada, bem como
determinou a conferência de todos os documentos comprobatórios de despesas
realizadas e a criação de uma nova norma regulamentadora da prestação de
contas, em substituição à 'Ancine + Simples'.
Em resposta ao TCU, a
Agência tomou diversas medidas para tentar amenizar os problemas apontados,
tais como a elaboração da Instrução Normativa nº 125/2020 (que revogou a 124),
que acaba com a análise da prestação de contas financeira por amostragem e traz
diversas outras regras, inclusive bastante questionadas pelas produtoras
audiovisuais por serem extremamente rígidas e não compreenderem a lógica de
funcionamento do setor.
A criação da Superintendência de Prestação de Contas, com o deslocamento de
cerca de 70 servidores para a função sob a direção de um capitão de mar e
guerra da Marinha do Brasil, também foi uma das medidas tomadas pela Agência
para 'prestar contas' ao TCU.
É nesse contexto, então, que surge a fatídica lista de projetos reprovados.
Acontece que a 'mão de ferro' imposta pela Ancine às produtoras culturais, na
ânsia de atender às determinações do TCU, acaba ofendendo direitos básicos dos envolvidos, agentes
culturais que apresentaram suas contas à Agência de acordo com a regra da época
e agora são surpreendidos com essa análise de documentos quase 20 anos depois,
com base em outras regras e sem qualquer aviso prévio.
É certo que nenhum de nós, cidadãos, pode ficar eternamente sob o poder
persecutório do Estado. Daí surge, inclusive, a ideia de prescrição, quando
alguém perde o direito de agir contra outro.
E isso é ainda mais importante para proteger o indivíduo contra o arbítrio
estatal, sob pena de ofensa direta ao devido processo legal e à segurança
jurídica, conforme recentemente reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal, no
Recurso Extraordinário 636.886. É uma regra básica de Direito.
A segurança jurídica parte do pressuposto básico no Estado de Direito: a
confiança, que todo indivíduo tem, de que os atos do Poder Público (inclusive suas
normas) são legítimos e legais, ou seja, foram emitidos por quem tem
competência para tanto e que seguiram devidamente o previsto na lei.
Portanto, se havia uma norma, da própria Ancine, que previa a análise por
amostragem na prestação de contas financeira (Instrução Normativa 124), é
presumido, por óbvio, que essa metodologia fosse legítima e legal.
Como poderia então, uma produtora audiovisual, que é obrigada a seguir as
regras da Ancine, e assim o fez na época, ser punida, agora, pelos 'erros' do próprio
Poder Público?
No efeito dominó, o lado mais fraco dessa cadeia, as produtoras audiovisuais,
sofrem os prejuízos e consequências da ineficiência estatal. Uma nítida
contradição ao papel primordial do Estado de Direito: a proteção dos direitos
básicos do indivíduo contra as 'mudanças de humor' do arbítrio estatal.
Por Cecilia Rabêlo, no Jornal do
Brasil
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