Em seus delírios
persecutórios, o presidente Jair Bolsonaro recorrentemente vê nas críticas
internacionais à defesa do meio ambiente do Brasil ambições escusas que ameaçam
a "soberania nacional". Mais realistas são as apreensões em relação
àqueles que se valem das queimadas e desmatamentos como pretextos para
alavancar seus interesses, como os setores protecionistas do agronegócio
internacional e os políticos demagógicos ávidos por excitar o eleitorado
sensível à pauta ambiental. Mas o problema é que o governo lhes entrega esses
pretextos de mão beijada. Se a lei ambiental brasileira, que é uma das mais
avançadas do mundo, fosse cumprida, esses pretextos evaporariam.
Contudo, não há como impor a lei sem mecanismos de punição. Um levantamento
feito pelo Observatório do Clima a partir de dados fornecidos pela Lei de
Acesso à Informação revela que desde outubro do ano passado até pelo menos
agosto deste ano praticamente nenhuma multa ambiental foi aplicada.
Historicamente, o pagamento de multas no Brasil já é baixo. Nos três anos
anteriores à gestão Bolsonaro, foram aplicadas cerca de 15 mil autuações por
ano, totalizando mais de R$ 3 bilhões em multas. Mas somente 5% foram
efetivamente cobrados, depois de longos e tortuosos recursos judiciais.
Em outubro do ano passado, o Decreto 9.760 suspendeu a cobrança de multas até a
realização de audiência de conciliação. Em tese, a ideia seria fazer com que os
órgãos fiscalizadores chegassem a um acordo, sem necessidade de contestação
judicial, acelerando a aplicação das sanções. Mas na prática o Ibama realizou
apenas 5 audiências de um total de 7.205 agendadas. O ICMBio não fez nenhuma.
As únicas multas pagas foram as aplicadas antes de a conciliação vigorar.
"A autuação é só o início de um processo sancionador. O autuado tem
direito de fazer sua defesa, o processo vai ser julgado. A cobrança só ocorre
quando a multa é considerada devida", explicou Suely Araújo, do
Observatório do Clima. "Mas o que vimos é que esse processo não está nem
sendo iniciado. A conciliação não está ocorrendo."
Além disso, os crimes e infrações não tiveram seu prazo de prescrição suspenso,
o que pode fazer com que as autuações sejam extintas sem que os infratores
sofram qualquer punição.
Há suficientes indícios - muito além da já folclórica conclamação do ministro
do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para "passar a boiada" (i.e.,
alterar as normas ambientais) em meio ao pânico da pandemia - de que o
desmantelamento dos mecanismos de repressão aos crimes ambientais não é mera
incúria, mas uma ação concertada.
A hostilidade de Jair Bolsonaro em relação à causa ambiental é confessa. Já na
campanha de 2018, o então candidato disse que havia excesso de multas
ambientais.
Em março passado, o governo eliminou a exigência de autorização específica para
a exportação de madeira, facilitando a exportação ilegal. Recentemente, uma
auditoria do Tribunal de Contas da
União apontou que a distribuição de cargos de chefia do Ibama a
militares desrespeitou exigências legais de contratação impostas pelo próprio
governo, com nomeações irregulares, que não atendem aos critérios mínimos de
experiências profissional e acadêmica previstos por lei.
O resultado é catastrófico. As queimadas e desmatamentos em biomas como o
Pantanal e a Amazônia estão batendo recordes; a reputação do agronegócio
nacional está sendo dizimada; os investidores estão fugindo do Brasil; e
autoridades internacionais ameaçam, entre outras retaliações, barrar acordos
como o que foi concertado entre o Mercosul e a União Europeia.
Nunca é demais lembrar: a lei brasileira, com destaque para o Código Florestal,
é exemplar e rigorosa. Bastaria a sua aplicação para pôr o Brasil numa posição
incomparável em todo o mundo no campo ambiental.
Nullum crimen sine lege - não há crime sem lei, diz o adágio jurídico. Os
crimes existem as árvores e animais carbonizados na Amazônia e no Pantanal
estão aí para prová-lo - e as leis também. Mas sem sanções as leis são inúteis,
e os crimes aumentarão dia após dia.
Há suficientes indícios de que desmantelamento de mecanismos de repressão não é
mera incúria
O Estado de S.
Paulo
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