Vídeo do tratamento humilhante da jovem mostra como o ambiente machista da Justiça costuma tratar mulheres que buscam reparo contra essa violência
No fim dos
anos 70, o julgamento do assassinato da socialite mineira Ângela Diniz marcou
época pela linha de defesa adotada pelo advogado Evandro Lins e Silva e se
transformou em um divisor de águas no tratamento dado pela Justiça às mulheres.
Silva era defensor do empresário paulista e assassino confesso Raul Fernando do
Amaral, o Doca Street. Motivado por ciúme, ele matou Ângela com quatro tiros,
três deles no rosto da namorada. Para justificar o crime bárbaro, o advogado
gastou grande parte do tempo destruindo a honra da vítima, a quem chamou de
“Vênus lasciva”, “prostituta de alto luxo da Babilônia” e “pantera que, com
suas garras, arranhava os corações dos homens”. Graças à estratégia, ele
inverteu os papéis e transformou Doca Street em vítima de uma mulher fatal que
o havia ofendido em sua dignidade masculina. O réu saiu do tribunal aplaudido e
com uma pena modesta de dois anos. Somente dois anos depois, e em meio a uma
gigantesca mobilização feminina apoiada na campanha “Quem ama não mata”, a
Justiça enfim seria feita. Um segundo julgamento resultaria em uma condenação
maior (veja o quadro na pág. 64).
Passadas quase
quatro décadas e, guardadas as devidas proporções, ecos do caso Ângela Diniz
ressurgiram no país, mostrando que os tribunais não se livraram do ranço
machista que costuma vilanizar mulheres vítimas de violências justamente quando
elas procuram reparação na Justiça. O episódio que trouxe à tona a triste
lembrança de um julgamento moral refere-se a uma denúncia de estupro em uma
boate de luxo em Florianópolis, o Cafe de La Musique. A acusadora, a influencer
Mariana Ferrer, diz que, depois de ser drogada, acabou violentada pelo
empresário André de Camargo em um camarim privado da casa noturna. A agressão
ocorreu em dezembro de 2018. Nas roupas dela, a perícia encontrou sêmen do
empresário. O inquérito policial concluiu que Camargo cometeu estupro de
vulnerável, definição jurídica para os casos em que a vítima não tem condições
de oferecer resistência. Em sentença publicada no dia 9 de setembro, porém,
seguindo a percepção do Ministério
Público, o juiz Rudson Marcos absolveu o empresário sob o argumento de
que não haveria “provas contendentes nos autos a corroborar a versão
acusatória”.
Depois da
sentença, protestos feministas chamaram a atenção ao desfecho da história, mas
ela parecia destinada a cair na vala comum de processos de estupro que são
engavetados deixando no ar uma incômoda sensação de que não se fez justiça à
vítima. Na semana passada, no entanto, o episódio voltou ao noticiário graças a
uma reportagem do site The Intercept Brasil, que revelou um degradante vídeo
dos bastidores do julgamento de Mariana. Nele, o advogado de defesa insurge-se
contra a influencer, ofendendo-a e a acusando-a de publicar fotos provocativas
nas redes sociais, como se isso, de alguma maneira, justificasse o avanço de
alguém sobre o corpo dela. Em dado momento, o defensor Cláudio Gastão da Rosa
diz, dirigindo-se a Mariana, que “jamais teria uma filha de seu nível”.
Enquanto isso, o juiz assiste impassível às barbaridades.
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As imagens com
cenas explícitas de um absurdo linchamento moral que nada tinha a ver com o
mérito do caso provocaram reações fortes entre a sociedade e as autoridades. A
história viralizou nas redes sociais com ajuda da expressão “estupro culposo”.
Ela não consta nem na decisão do MP nem na do juiz, mas foi publicada pelo
Intercept para tentar resumir a tese de que o criminoso não deveria ser
condenado porque, em teoria, não tinha como saber que a vítima não estava
totalmente consciente. A infame audiência provocou imediata reação de Gilmar
Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, que publicou em seu Twitter que o
tratamento dado a Mariana Ferrer na ocasião era estarrecedor. “O sistema de
Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação”,
escreveu. Pouco depois, a Ordem dos Advogados de Santa Catarina convocou Gastão
a prestar esclarecimentos. Celebridades também se manifestaram sobre o assunto.
Com a hashtag #justicapormariferrer, nomes como Bruna Marquezine, Iza, Deborah
Secco e Rafa Kalimann declararam apoio a ela.
Independentemente
do desfecho do julgamento (a defesa da influencer recorre para tentar reverter
a decisão que absolveu o empresário), o caso mostra como o ambiente dos
tribunais ainda é um terreno hostil às mulheres que, de forma corajosa, se
dispõem a tentar alguma reparação depois de sofrer uma experiência traumática.
Na audiência do caso Mariana, promotor, advogado de defesa, réu e juiz eram do
sexo masculino. Eles seguiram regras de um tribunal liderado por homens e se
ancoraram em uma legislação cuja espinha dorsal tem quase um século de idade.
“Note-se que o tratamento ao réu é bastante diferente daquele direcionado à
vítima”, diz a socióloga Eva Blay. “O rosto dele aparece escondido e é tratado
sempre como empresário, enquanto mal se fala que Mariana estava trabalhando mas
foi demitida após denunciar o estupro.”
A cena da
humilhação sofrida pela influencer está longe de ser uma exceção, assim como a
linha de atuação de Gastão da Rosa não é um caso isolado no direito brasileiro.
“Essa é uma tendência e uma estratégia de defesa que está ancorada num viés
cultural muito forte, notadamente machista e que põe em suspeição a palavra da
vítima”, afirma o advogado Fernando Castelo Branco. “É uma estrutura que impõe
à vítima a condição de investigada e uma forma de inibir o surgimento de outras
denúncias.” Castelo Branco defende as mulheres que foram abusadas por um famoso
nutrólogo de São Paulo, Abib Maldaun Neto, condenado a dois anos e oito meses
de prisão em regime semiaberto por violação sexual mediante fraude. O advogado lembra que a
primeira denúncia apresentada contra o médico foi rejeitada por uma juíza.
Segundo ela, uma mulher de 30 anos era madura o suficiente para não sofrer um
abuso como o que foi cometido por Maldaun Neto. No caso em questão, o nutrólogo
aproveitava-se das consultas para introduzir os dedos na vagina das pacientes.
No processo, a advogada do nutrólogo chegou a afirmar que as mulheres abusadas
por ele estavam em conluio para obter alguma vantagem e até requisitou que uma
delas fizesse um exame psiquiátrico. “O que se viu na audiência da Mariana
Ferrer é abominável. Aquilo não é a celebração do direito, mas uma execração
pública”, diz Castelo Branco.
Esse cenário é
ainda mais preocupante em um país onde crescem as estatísticas de violência
contra a mulher. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve 11?958 estupros registrados oficialmente
no país em 2007. No ano passado, o número foi de 66?123, um salto indigesto de
mais de 400%. Os dados mostram que, a cada oito minutos, uma mulher é
estuprada, mas esses números certamente são muito maiores — e humilhações
impostas a vítimas como a influencer Mariana Ferrer certamente desencorajam
mulheres a prestar queixa contra seus agressores. Tratadas como vilãs,
exatamente como Ângela Diniz quatro décadas atrás, as vítimas escondem-se no
anonimato, preferindo guardar a tragédia para si em vez de correr o risco de
ser expostas ao escrutínio de homens inclinados a acusá-las.
Diversos
estudos reforçam a tese da subnotificação. Segundo uma pesquisa realizada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 58,5% dos entrevistados
colocaram a culpa na vítima do estupro. A justificativa não poderia ser mais torpe:
eles dizem que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros.
“É como se a palavra da mulher fosse posta em jogo toda vez que ela fala”,
afirma Gabriela Manssur, promotora conhecida por suas lutas a favor dos
direitos da mulher. Outra pesquisa, também realizada pelo Ipea, estima que
somente 10% dos casos são registrados, o que escancara o abismo entre a
violência sofrida pelas mulheres e o que de fato está demarcado nos dados
oficiais brasileiros.
As mulheres
enfrentam a agravante de o Brasil ser uma sociedade notadamente conservadora. O
primeiro código penal da República, que vigorou de 1890 a 1940, criou a ilusão
da legítima defesa da honra — um recurso usado por hábeis advogados toda vez
que seu cliente era acusado de bater na esposa. Os juristas do código penal
seguinte, promulgado em 1940 e em vigor até hoje, eliminaram do texto a
esdrúxula distinção entre mulher “honesta” e “pública” e até aumentaram as
penas para até dez anos de reclusão, mas incluíram outro artigo que só complicaria
mesmo a vida do perpetrador se a vítima fosse menor de idade. “A história do
Brasil está marcada pelo abuso contra o sexo feminino”, diz Maria Arminda do
Nascimento Arruda, socióloga e coordenadora do escritório USP Mulheres, que
estuda temas ligados à violência e à igualdade de gênero. Outros avanços
ocorreram nas últimas décadas, como a criação das delegacias da mulher, mas
reproduzir essa lógica dentro do Judiciário é muito mais complexo. Segundo
especialistas, não há uma legislação que obrigue um magistrado a impedir uma
argumentação depreciativa e a solução seria investir mais na formação
humanitária nas escolas de direito para além dos pontos técnicos e jurídicos.
Como mostram
as imagens do caso Mariana Ferrer, ainda há um longo caminho a percorrer nesse
aspecto. Após a divulgação das cenas, o Ministério
Público de Santa Catarina publicou uma nota garantindo que o promotor de
Justiça interveio quando o advogado do réu teve atitudes desrespeitosas com a
jovem. O defensor do réu, por sua vez, também por meio de uma nota, justificou
sua atitude da seguinte forma: “Acredito ter atuado dentro dos limites legais e
profissionais, considerando-se a exaltação de ânimos que costuma ocorrer em
audiências como aquela”. Atual advogado de Mariana, Julio César Ferreira da
Fonseca apresentou em outubro um termo de apelação para tentar reverter a
sentença. Menos de três meses após denunciar o estupro, Mariana se mudou para
outro estado. Foi com a mãe, Luciane Aparecida Borges, e a irmã de 16 anos,
morar em Uberaba, Minas Gerais. Ela parou com o trabalho de influencer. Hoje, posta em suas redes sociais,
basicamente, assuntos relacionados ao caso de estupro. A mãe, que tinha uma
loja de acessórios em Florianópolis, fechou o negócio e atualmente faz comida
natural para vender. Segundo uma amiga da família, Mariana passa o dia no
quarto, lendo e relendo o processo. Faz tratamento para síndrome do pânico e,
por isso, sai pelo menos uma vez por semana para ir à psicóloga. Nessas
ocasiões, usa um boné e fica o tempo todo olhando para o chão para não ser
reconhecida. Até aqui, só a vítima foi punida.
Quatro tiros em nome da honra
A véspera de
um réveillon na Praia dos Ossos, em Búzios, Rio de Janeiro, terminou com um
crime que deixaria a sociedade perplexa em um primeiro momento e revoltada três
anos depois. Ângela Diniz era uma linda mulher desquitada (o divórcio só seria
instituído no Brasil no ano seguinte), prestes a completar 32 anos, quando
conheceu Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca, apelido de
infância. Ângela e Doca, que era casado, se apaixonaram. Ele largou a família,
ela o acolheu em sua casa de praia. Ângela, porém, tinha um temperamento
indomável e gostava de todo tipo de experiência. O comportamento iria lhe
custar não só a vida como também a completa destruição de sua reputação após a
morte. Na tarde de 30 de dezembro de 1976, depois de uma briga na qual ela
anunciou o fim do relacionamento, Doca disparou três tiros no rosto e um na
nuca da mulher que dizia amar. Até hoje é lembrada, no julgamento de 1979, a
defesa do advogado Evandro Lins e Silva, profissional renomado no meio
jurídico. Ele desmantelou a promotoria jogando toda a responsabilidade do crime
na vítima. Ângela Diniz foi descrita como uma “mulher fatal”, capaz de levar um
homem à loucura. O abuso de álcool e drogas foi entregue de bandeja ao júri.
Quem assistiu à audiência talvez tenha tido a impressão de que era a vítima que
estava sentada no banco do réu. O homem que havia “matado por amor” foi
condenado a apenas dois anos de prisão, que nem sequer precisou cumprir.
Parecia o fim da história, mas não foi. A sentença fez a sociedade despertar
para os crimes de estupro e violência doméstica. Houve mobilização,
especialmente entre as mulheres. Dois anos depois, Doca foi levado a novo
julgamento e condenado a quinze anos por homicídio. Ficou preso por menos de
quatro, progrediu para o regime semiaberto e foi solto em 1987. Em uma das
poucas entrevistas que concedeu depois da libertação, falou sobre o segundo
julgamento, que aumentou sua pena: “As feministas fizeram um bom trabalho”.
Por Amauri Segalla e Sabrina Brito, com Edoardo
Ghirotto e Sérgio Figueiredo, na Revista Veja
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