A migração do estado brasileiro para a era digital patina
em problemas que vão além dos recentes apagão no Lattes e vazamento de dados de
cidadãos. Questões ligadas à falta de planejamento e de gestão de riscos (como
ataques cibernéticos) e um avanço da transformação que gera exclusão digital
foram flagradas pelo TCU, que publicou um acórdão com base em auditoria
feita por técnicos do órgão.
Em uma longa apuração, os auditores expõem um cenário recheado de
problemas. Eles citam que o Brasil caiu 10 posições em ranking da ONU
(Organizações das Nações Unidas) sobre implementação de governo digital, e as
causas, diz o órgão, estão relacionadas à ausência de visão sistêmica da governança da
transformação digital.
Um dos focos principais foi avaliar como anda o cumprimento do decreto
10.332/2020, que instituiu a EGD (Estratégia de Governo Digital 2020-2022). Ele
é considerado o principal normativo da transformação digital do poder executivo
federal focado na desburocratização dos serviços públicos prestados pelo estado.
A ideia do governo era oferecer serviços públicos digitais simples e
intuitivos, em plataforma única, com acesso amplo à informação e aos dados
abertos governamentais. Mas, na prática, as coisas não estão funcionando assim.
O avaliação do TCU foi feita em 4 pontos:
Formulação da estratégia e planos de transformação digital, incluindo as
diretrizes, objetivos, metas, priorização, responsáveis, prazos e a orientação
estratégica a que os esforços estão alinhados;
Sistema de monitoramento e avaliação;
Gestão de riscos;
Articulação entre as estruturas de governança.
Em todos os quesitos, o TCU viu falhas e fez recomendações de melhoria.
Uma dessas dificuldades, diz o TCU, está relacionada à imprecisão na
definição de iniciativas do governo. Um exemplo é a migração dos sítios
(endereço eletrônico) dos órgãos e entidades para o portal 'gov.br', criado
para centralizar em uma única plataforma serviços para o cidadão e informações
sobre as atuações de áreas governamentais.
"Foi prevista a migração de aproximadamente 1.200 sítios, mas algumas URLs
foram descartadas, outras aglutinadas, e havia sítios dentro de sítios, de modo
que não se migrou exatamente 1.200 sítios. Ao final, foram consolidados entre
650 e 700 sítios efetivos, de modo que houve erro de dimensionamento do projeto
em função do desconhecimento da realidade", aponta.
Os auditores também constataram deficiências em elementos considerados
fundamentais para que os usuários "desfrutem dos resultados decorrentes
dos esforços de transformação digital."
A preocupação está na possibilidade clara de exclusão digital de serviços
online. Isso inclui, segundo o TCU, "o desenvolvimento da
infraestrutura de telecomunicações do país e a capacidade dos usuários de usar
os serviços públicos digitais, potencializadas pela ausência de visão sistêmica
da governança da transformação digital, podem limitar e até excluir
parcelas da população brasileira do uso desses serviços."
Falta de estratégias de gestão de riscos
A gestão de riscos também é problemática, segundo o relatório. No caso, diz o TCU,
análises prévias devem levar em conta a possibilidade de serviços digitais
apresentarem problemas, inclusive ataques cibernéticos. Mas essa busca pela
segurança não estaria sendo feita.
"De um total de 12 PTDs [planos de transformação digital] enviados pela
Secretaria de Governo Digital da Secretaria Especial de Desburocratização,
Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, somente um apresentava
seção específica sobre gestão de riscos (PTD do Ministério da Justiça e Segurança
Pública), sendo que, esse único plano trazia somente riscos genéricos",
alega o TCU.
Exemplos de riscos não faltam. "Caso se materializem, como no caso dos
serviços do INSS e em diversos ataques cibernéticos ocorridos em 2020, podem
gerar enormes prejuízos à população brasileira", alega.
Em suas recomendações, o TCU pediu que o governo "promova a
identificação dos principais riscos comuns aos quais os esforços de
transformação digital comumente estão expostos, inclusive os riscos de ataque
cibernético."
Os alertas são graves
Segundo especialistas os problemas listados pelo TCU são graves.
"A situação levantada é bastante crítica e merece ter toda a
atenção", afirma André Lucas Fernandes, diretor do IP.rec (Instituto de
Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife).
Para ele, as questões de acesso e governança são fundamentais no caso
das aplicações governamentais na Internet. Fernandes alerta que um dos pontos
importantes citados pelo TCU é que não há cuidado com as questões
infraestruturais dos sistemas. "Elas ainda aparecem como ônus público do
governo", diz.
O melhor exemplo recente disso é o "apagão" da plataforma Lattes, que
veio pela de investimento em manutenção das estruturas digitais. "A gente
pode fazer um paralelo com os incêndios em museus pelo Brasil. É um
contrassenso a fala do Executivo de falta de recursos e a tentativa de impedir
o fluxo de recursos conforme princípios legais e aprovação pelo Congresso
Nacional", afirma.
Ele defende que é preciso pensar, antes de mais nada, na falta de acesso que os
processos estão impondo às pessoas mais pobres.
O investimento simbólico em desburocratização pela digitalização é uma prática
equivocada, pois uma política de governo digital sem garantia de acesso e
conectividade aumenta o corpo de cidadãos excluídos digitalmente, por ausência
de uma contrapartida não digital de serviços fundamentais André Lucas
Fernandes, diretor do IP.rec
O problema também passa pela não compreensão dos desafios impostos na era
digital. "O que o relatório do TCU aponta é que o governo
brasileiro atual não compreende essa complexidade e não tem um plano
efetivo", afirma Sivaldo Pereira da Silva, professor e coordenador do
Centro de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Política da UnB (Universidade de
Brasília).
"A transformação digital não deve ser confundida com a mera digitalização
de serviços. Trata-se de um processo complexo que envolve planejamento, a
reestruturação do funcionamento de órgãos e a criação de uma política de longo
prazo que leve em conta as diversas dimensões que isso implica", diz Silva.
Outro quesito citado pelo TCU que o professor destaca é a falta de
planejamento do programa de Transformação Digital do governo.
Esse programa é marcado por problemas de articulação, com muita fragmentação e
sombreamento de funções entre os órgãos responsáveis por este processo Sivaldo
Pereira da Silva, professor da UnB
O docente alega que o resultado da auditoria do TCU era previsível.
"Não chega a ser uma surpresa, pois a política digital do governo
brasileiro com um todo, que engloba o processo de Transformação Digital, tem
sido extremamente lenta, frágil e mal planejada. Por exemplo, a criação de
canais de participação do cidadão na construção de políticas públicas,
considerado um ponto importante no processo de legitimação e educação do
público, praticamente inexiste. O que existia foi descontinuado", conta.
O outro lado
Tilt questionou os dois órgãos citados pelo TCU como responsáveis
pelas atividades ligadas à governança da transformação digital no
governo federal.
A Secretaria Especial de Modernização do Estado da Secretaria-Geral da Presidência
da República informou que não iria se pronunciar porque não havia sido
oficiada do relatório do TCU.
A Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do
Ministério da Economia alegou que "as evidências e os exames feitos pelo
Tribunal demonstraram que os esforços de governança sobre a
transformação digital, ao menos sob os aspectos formais e organizacionais, têm
sido bem conduzidos."
A pasta ainda diz não entender os apontamentos do relatório como falhas.
"O que vemos são oportunidades de melhorias naturais de qualquer projeto
em acelerada evolução. Nesse sentido, os Planos de Transformação Digital estão
sendo revisados para que constem com um novo eixo de ações, especificamente
para diagnóstico de riscos e implementação de controles, em conformidade com a
Estratégia Nacional de Segurança Cibernética e a Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD)", afirma.
Ainda segundo o órgão, "a rápida transição da oferta de serviços do
governo federal para o meio digital potencializou o aumento do público usuário
- havia 1,8 milhão de brasileiros cadastrados na plataforma gov.br em janeiro
de 2019; hoje, apenas 30 meses depois, são 110 milhões, mais da metade da
população do país."
"Há alinhamento entre as Estratégia de Governo Digital e a Estratégia
Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital), principais instrumentos
que norteiam a atuação da administração no assunto. Além disso, existem
acompanhamentos técnicos e estratégicos sobre os Planos de Transformação
Digital", finaliza.
Por Carlos Madeiro, UOL
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