Estão documentados 436 casos de esterelização de crianças fruto de relações inter-raciais, mas o número real deve ser bem mais alto
A partir de 1937 foram esterilizadas compulsoriamenrte
centenas de filhos de alemãs com soldados das colônias francesas. Uma história
que começa com o Tratado de Versalhes e desemboca no desvario racista dos
nazistas.
Josef Kaiser tinha 16 anos de idade em 1937, quando dois
homens da Gestapo o agarraram e levaram ao Hospital Municipal de Ludwigshafen.
Lá ele foi esterilizado contra a vontade. Sua irmã teve o mesmo destino, assim
como centenas de jovens cujo único defeito era serem filhos de uma alemã com um
soldado das colônias francesas.
Essa brutal ingerência era o clímax de uma dinâmica
iniciada 17 anos antes, com a ocupação aliada na Renânia, imposta à Alemanha
pelo Tratado de Versalhes, após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Dos 100
mil soldados enviados em janeiro de 1920 pela França para a região, cerca de um
quinto provinha dos territórios coloniais. Como o pai de Josef, natural de
Madagascar.
No clima político inflamado da República de Weimar, sua
presença logo gerou tensões. Após a perda de suas próprias colônias, os alemães
percebiam essa imposição como uma monstruosa humilhação.
"A
Vergonha Negra"
Com entusiástica participação de organizações estatais e
civis, iniciou-se uma campanha de propaganda racista, sob o título "A
Vergonha Negra". Em panfletos e artigos, os soldados coloniais eram
apresentados como "feras selvagens", que se lançavam sobre a
população alemã, estuprando e assassinando.
Não só círculos nacionalistas ou conservadores avançavam
essa campanha: racismo e eugenia estavam profundamente arraigados na sociedade
alemã. Políticos social-democratas, como o presidente do Reich Friedrich Ebert
ou o ministro do Exterior Adolf Köster, tachavam a mobilização de tropas
francesas "da mais baixa camada cultural" como um "crime
espiritual" contra o povo alemão.
A estratégia política contava que esse racismo também
fosse comunicável no estrangeiro, para ao mesmo tempo desacreditar as
estipulações do Tratado de Versalhes: com base em preconceitos comuns,
pretendia-se restabelecer a solidariedade internacional com a Alemanha.
Respaldados pelo material de propaganda do Ministério do
Exterior, publicaram-se por todo o mundo artigos difamadores sobre os soldados
coloniais. Como o do deputado trabalhista britânico Edmund Dene Morel, acusando
a França de soltar contra a população alemã "negros selvagens" e
"bárbaros primitivos", cuja "incontrolável bestialidade" já
resultara em numerosos estupros. Mas, embora a propaganda tenha persistido por
bastante tempo, o pretendido "sucesso" de política externa não se
concretizou.
Da
difamação às esterilizações forçadas
Apesar dos intensos esforços de difamação, houve
numerosas relações amorosas entre soldados coloniais e alemãs. Para os
nacionalistas, isso era uma afronta, já que um de seus mantras principais era a
"violação da mulher alemã".
Na campanha de agitação, o corpo feminino simbolizava o
"corpo do povo", a meta era manter ambos "puros". A
propaganda oficial não tardou a reagir: a conduta das mulheres foi condenada
como "vergonha branca". A partir daí, os frutos dessas relações
passaram a ser chamados simplesmente de "bastardos da Renânia".
Estes cresceram com a vivência da exclusão: sua mera
existência e a cor escura de sua pele permaneceram para os nacionalistas e
revanchistas uma lembrança constante da derrota bélica, e de sua impotência
diante das determinações do Tratado de Versalhes.
Já em 1923 as autoridades da República de Weimar
começaram com o cadastramento sistemático das crianças. Em 1927, um funcionário
governamental requeria a seus superiores no Ministério da Saúde que estudassem
a possibilidade de esterilização "através de uma intervenção totalmente
indolor". A solicitação foi rejeitada: a legislação impossibilitava
medidas compulsórias, até pelo fato de, enquanto filhos de alemãs, as crianças
também serem integrantes do Reich.
Tratava-se apenas de um adiamento, contudo: com a tomada
de poder pelos nacional-socialistas, o cadastramento dos menores foi ampliado.
Alguns foram medidos e fotografados para a pérfida ideologia racial nazista. Em
1937, uma ordem secreta de Adolf Hitler fundou a "Comissão 3" da
Gestapo, que acabou por organizar a esterilização ilegal dos jovens. Estão
documentados 436 casos, mas o número real deve ser bem mais alto.
Crime
sem castigo
Em 1947, dois anos após o fim do domínio nazista, o cruel
episódio foi objeto de um processo. Os réus eram três médicos responsáveis,
todos membros da Associação Médica Nacional-Socialista (NSDÄB), acusados de
lesões corporais intencionais com consequente perda da fertilidade.
Durante o julgamento, nenhum deles mostrou consciência de
ter agido errado. Como defesa, alegaram simplesmente ter agido "por ordem
do Führer". Não é de espantar que a persecução criminal tenha sido
primeiro suspensa, e mais tarde definitivamente encerrada.
Os três acusados encontaram sem problema seu caminho na
sociedade alemã do pós-guerra, um deles chegou a ser eleito, poucos anos mais
tarde, presidente da Câmara dos Médicos do estado do Sarre.
Para suas vítimas, ficou até o fim da vida a sensação de
serem uma indesejada mancha de vergonha. "Eu não tive juventude e, por
causa dessa operação, também nenhum futuro mais", desabafou certa vez
Josef Kaiser.
Por Stefan Neumann, na Deutsche Welle
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