A rede jamais foi
neutra. A norma revogada na semana passada nos Estados Unidos não disciplinava
os mastodontes digitais
A expressão
“neutralidade de rede” foi criada pelo jurista Tim Wu num artigo de 2002, para
definir um tipo de tráfego na internet. Mas poderia ter sido criada por George
Orwell no romance 1984. A tal “neutralidade” é tudo, menos neutra.
Até a semana passada,
vigorava nos Estados Unidos uma norma baixada pela Comissão Federal de
Comunicações (FCC) em 2015 estabelecendo obrigações claras às empresas que
fornecem a infra-estrutura de roteadores, centrais, cabos e antenas por onde
circula a informação da rede. E apenas a elas.
Ficavam proibidas
de discriminar o tráfego de acordo com origem, conteúdo ou destino. Como uma
transportadora ou correio, lhes cabia entregar sem alteração nem inspeção os
“pacotes de dados” – o termo técnico é
esse mesmo, e não é coincidência.
Mas não eram
proibidas, como insistiam os defensores da norma, de vender mais caro o acesso
a diferentes tipos de conteúdo (desde que sem discriminação entre as empresas
fornecedoras), nem de bloquear sites ou aplicações inadequados ou criminosos.
Uma decisão da Justiça de 2016 lhes garantiu, em nome da liberdade de
expressão, o direito de usar critérios “editoriais” na entrega do conteúdo.
O que a norma
criava era um constrangimento tácito. Ao classificar os provedores de
infra-estrutura na categoria conhecida como “transportadora comum”, ela dava ao
governo o poder (jamais usado) de regular as tarifas ou de intervir em caso de
violação de regras criadas em 1934 para disciplinar o monopólio telefônico da
AT&T.
Faz sentido aplicar
essas mesmas regras, cujo objetivo era coibir cobranças abusivas na telefonia,
a um setor dinâmico, sujeito variáveis tecnológicas e econômicas distintas?
Em certa medida,
sim. Várias das obrigações das “transportadoras comuns”, vigentes para
ferrovias, navios, caminhões, correios e telefones, são obviamente aplicáveis
também à internet. Não deve, em tese, haver discriminação com base na
mercadoria transportada ou em quem paga. Os preços por transportes equivalentes
devem ser públicos. Para determiná-los, as variáveis avaliadas devem ser
objetivas (como peso ou espaço ocupado).
Mas a rede digital
tem características próprias. As transportadoras da internet adotaram como
modelo cobrar um preço fixo pelo tráfego de dados, até um limite. Isso vale
tanto para tecnologias em que o investimento acarreta uma capacidade fixa de
transmissão (como a fibra óptica) quanto para aquelas em que há gargalos
independentes de quanto se invista (como redes sem fio).
Tal modelo embute
uma distorção evidente. Alguns pagam mais do que usam na prática. Outros,
sobretudo usuários de serviços como vídeo, precisariam de mais qualidade de
transmissão e não podem pagar para garanti-la. Se uma fornecedora de água ou
energia cobrasse um preço fixo independente do consumo, haveria incentivo para
uso (e abuso) do recurso até o limite.
Qual a diferença na
internet? Por que não cobrar pelo tráfego de acordo com o uso? “Preços
transmitiriam um sinal sobre as aplicações mais sujeitas a congestionamento e
alocariam a elas mais banda durante esse período – assim como os preços alocam
recursos escassos na maioria das partes da economia capitalista”, escreve
Daniel Lyons em estudo para a Free State Foundation.
Defensores da norma
revogada argumentam que, sem neutralidade na circulação das informações,
empresas jovens e inovadoras perderiam a competição com gigantes capazes de
pagar por tráfego prioritário. As empresas de transporte sufocariam tudo o que
ameaçasse seus negócios – um desincentivo à inovação. Poderiam, no limite,
funcionar como censoras do conteúdo bloquado.
“Alguém acredita
que haveria Netflix ou YouTube se os donos de cabos de TV usados para banda
larga pudessem bloquear ou tornar mais lento seu conteúdo?”, diz em texto no
Medium o advogado Larry Lessig, um dos pioneiros na defesa da neutralidade de
rede. “Ou que haveria Skype se as redes telefônicas pudesse bloquear aplicações
de que não gostam? As maiores inovações da internet surgiram porque a
plataforma em si era independente delas.”
Mas há exagero
nessa visão. Enquanto as provedoras da infra-estrutura da internet ainda não
eram classificadas como “transportadoras comuns”, houve nos Estados Unidos
apenas dois casos de abuso de monopólio. No primeiro, em 2005, a Madison RIver
foi multada por bloquear serviços de voz que competiam com suas ofertas de
telefonia. Três anos depois, a Comcast também foi multada por diminuir a
velocidade dos dados usados pelo programa BitTorrent.
Inovações como
YouTube e Skype surgiram antes da classificação de 2015. A dificuldade de
estabelecer prioridade no tráfego da rede dificulta o desenvolvimento de várias
outras aplicações que precisam de garantia de qualidade de serviço, como
tratamento médico ou ensino à distância. As próprias experiências com novas tecnologia
de banda larga acabam desencorajadas se as empresas não puderem experimentar
novos modelos de negócio.
As “transportadoras
comuns” de outros setores podem cobrar mais por serviços como entrega expressa,
segurada, com aviso de recebimento etc. Mesmo a monopolista AT&T cobrava
tarifas distintas por ligações de longa e curta distância. Aqui no Brasil, é
comum o uso gratuito das redes de telefonia celular por aplicativos de bancos
ou redes sociais, serviço que viola o princípio da neutralidade.
A maior falácia dos
partidários da norma revogada é acreditar que a classificação dos provedores
como “transportadoras comum” se traduzisse em neutralidade de fato. Ela trazia
apenas desequilíbrio regulatório, ao sujeitar um tipo de empresa (de
infra-estrutura), mas isentar as demais (de software, hospedagem, conteúdo e
redes sociais).
Quando há
cerceamento à expressão dos usuários, ele é em geral resultado da ação de
empresas de hospedagem ou redes sociais. A pretensa neutralidade na transmissão
não impediu o surgimento de mastodontes capazes de regular o discurso sem
nenhum tipo de mandato para isso, nem muita preocupação com o espírito cívico.
“Nossa experiência da internet é cada vez mais controlada por um punhado de
empresas, mais especialmente Google e Facebook”, afirma Megan McArdle na
Bloomberg.
Várias ofertas na
internet não são neutras. Basta lembrar o uso gratuito de aplicativos bancários
ou de redes sociais no celular (privilégio que nem serviços públicos podem
desfrutar) ou o Kindle, que só permite a navegação para download de livros da
Amazon. A verdade é que existe demanda por serviços não neutros – e, com
regulação menos draconiana, a oferta se encarregará de atendê-la.
“Você pode
acreditar que racionar com base na quantidade ou acesso será mais justo ou
eficiente que com base no preço. É possível”, diz economista Tyler Cowen em seu
blog, Marginal Revolution. “Mas quando leio os defensores da neutralidade de
rede, tenho mais chance de ver uma pancadaria violenta nos incentivos
comerciais, ou empresas de cabo, do que uma avaliação equilibrada. A
neutralidade não é neutra, passou da hora de superar esse mito.”
Por Por Helio Gurovitz, no G1.com
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