A crise da covid-19 aumentou o muro entre as políticas de acesso a universidades e as escolas públicas. Falta de informação limita escolhas dos alunos e evidencia falha de todo o processo de democratização do ensino.
Logo no início da pandemia, em 2020, as escolas
públicas brasileiras precisaram migrar para um tipo de ensino para o qual nunca
haviam sido preparadas: o remoto. Com ele, nossa desigualdade educacional ficou
clara como água: nem a rede pública nem seus alunos estavam preparados ou
tinham os recursos necessários para essa transição, diferentemente da rede
privada.
Fora das escolas, a crise econômica teve efeito direto
sobre as famílias e, por consequência, sobre os estudantes. Os impactos
negativos que esse contexto trará ainda estão sendo acumulados, mas podemos
inferir com segurança que serão grandes e, possivelmente, acompanhados de uma
diminuição, ou retrocesso, de grandes avanços que vínhamos, ainda que lentamente,
conquistando no contexto pré-pandemia.
A democratização do acesso ao ensino superior para os
alunos da rede pública foi um dos maiores avanços afetados pela crise do
coronavírus. Ela intensificou algumas das variáveis que as políticas visavam
trabalhar e aumentou a distância entre elas e o público-alvo, os alunos da rede
pública.
Neste texto, farei uma análise sobre o processo de
democratização do ensino e, para isso, contei com a perspectiva de um grande
time: mais de 50 pessoas, entre alunos da rede pública e universitários de
universidades públicas, de mais de 15 estados.
Longe da equidade
Cada vez mais universidades públicas vêm adotando
políticas para garantir que alunos oriundos da rede pública estejam nas salas
de aula dos cursos de graduação que oferecem. Há as políticas de cotas,
bonificação extra em notas do vestibular, incentivo à criação de cursinhos
populares e reserva de vagas. Algumas universidades, inclusive, já asseguram
que 50% das vagas sejam reservadas para esses estudantes.
Fico muito feliz com esses avanços, mas preciso
registrar também que ainda não estamos próximos de uma situação de equidade.
Para fazer essa provocação, irei partir do Censo
escolar de 2020, que mostra que no Brasil temos quatro vezes mais alunos na
rede pública de ensino médio do que na rede privada. Então, ainda que as salas
de nossas universidades sejam preenchidas com 50% de alunos oriundos da rede
pública, a proporção deles que não continuaram os estudos após o fim do ensino
médio será muito maior do que a dos da rede privada.
Quais variáveis podem explicar essa desproporção?
Todas as vezes que falo sobre isso com professores, coordenadores, estudantes e
universitários, as respostas giram em torno de um certo padrão de razões: falta
de informação sobre os meios de ingresso e auxílios de permanência que as
universidades oferecem; necessidade de trabalhar para auxiliar em casa ou até
mesmo para ter acesso a lazer e objetivos de interesse; dificuldade de
conciliar trabalho e estudo; falta de apoio familiar; medo e insegurança por
não se acharem capazes; discrepância entre o conteúdo visto na escola e o
cobrado nos vestibulares; e a falta de perspectiva sobre o retorno financeiro
oriundo do diploma universitário.
Todas essas variáveis foram acentuadas pela pandemia.
Constatei, particularmente, um crescimento da última variável citada acima.
Duas alunas me citaram que fazem o ensino técnico e que estudam com pessoas que
têm o diploma superior, mas que ainda assim precisaram procurar um técnico
depois e provavelmente irão ganhar tanto quanto elas. É uma fala recorrente
entre estudantes.
Muro entre políticas de acesso e alunos
Além disso, a crise sanitária aumentou o muro entre as
políticas de acesso e as escolas públicas. Antes da pandemia, visitando salas
de aula, eu já notava que a maioria dos alunos não sabiam desses instrumentos.
Pode parecer mentira, mas outros nem sabiam que havia universidades públicas e
que poderiam ter a formação superior sem pagar mensalidade, pois toda a
sociedade contribui com os impostos que ajudam a manter essas instituições de
ensino.
Na pandemia, especialmente pela questão tecnológica,
as próprias escolas tiveram dificuldades no contato com uma parcela de seus
alunos. Dessa forma, é seguro pensarmos que uma quantidade ainda menor de
alunos teve acesso às informações que poderiam culminar em seu ingresso no
ensino superior e que a chance de receberem essas informações em outros locais
é quase nula.
Em algum nível eu interpreto a falta de informação
como falha de todo o processo de democratização, pois, da forma atual, muitas
vezes as políticas de ingresso nem chegam ao conhecimento de quem mais precisa
delas.
É preciso que, no pacote de políticas, também haja
instrumentos que criem pontes entre elas e todas as salas de aula da rede
pública brasileira. Só assim nós poderemos dizer que o estudante da rede
pública decidiu o que fazer após o fim da escola. Sem isso, quase sempre é uma
escolha limitada pela falta de informação.
Vinícius De Andrade, DW
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