terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Ajuda rejeitada: o cerrado desmatado


Falta de recursos ameaça monitoramento do desmatamento no Cerrado neste ano

 

Diante da iminência de o sistema de monitoramento de desmate do Cerrado ser cancelado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) por falta de recursos, um grupo de cientistas articulou um plano para salvar o projeto. Na iniciativa privada, os pesquisadores encontraram fundações dispostas a ajudar no programa em 2022. A diretoria do Inpe, porém, rejeitou os recursos.

Por trás da recusa há um conflito entre o atual chefe do instituto, Clézio de Nardin, e um grupo de pesquisadores sêniores da instituição, incluindo o ex-diretor Gilberto Câmara. Entre os dois se interpôs, ainda, o chefe da Advocacia-Geral da União em São José dos Campos, Carlos Freire Longato, que tem um histórico de conflito com o Inpe e já tentou (sem sucesso) colocar fim ao programa CBERS, parceria que o instituto tem com a China para produzir elançar satélites.

Desde 2016, o Inpe produz mapas de desmatamento do Cerrado como extensão dos seus dois programas de monitoramento que já vigiavam a Amazônia, chamados Prodes (para cálculo preciso do desmate do bioma) e Deter (para vigilância em tempo real). Os primeiros anos de implementação do projeto tiveram recursos do Banco Mundial. Mas no ano passado o governo federal não manifestou interesse em renovar o contrato.

Como o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação não tem verba prevista para o projeto na Lei Orçamentária Anual de 2022, os cientistas que tocam o projeto, uma equipe ainda com contrato temporário, sem vínculo empregatício com o Inpe, buscou ajuda.

Em maio do ano passado, com intermediação do ex-diretor Câmara, os cientistas obtiveram uma proposta do grupo Clua (Climate and Land Use Alliance) de complementar os R$ 2, 5 milhões de que o programa precisa para se manter por um ano, um valor relativamente baixo.

A Clua - aliança de fundações sem fins lucrativos dos criadores das empresas HP, Ford e Intel - propôs que o repasse fosse feito ao projeto por meio da Funcate, fundação que o próprio Inpe mantém para viabilizar parcerias com a iniciativa privada.

Nardin, porém, engavetou a proposta, baseando-se em um parecer que havia encomendado à AGU. Junto da advogada da União Regina Motooka, Longato usou como argumento contra o convênio uma tecnicalidade administrativa pela qual 'a terceirização deve envolver a prestação de serviços e não o fornecimento de trabalhadores'.

Como os técnicos do projeto do Cerrado não estão na folha de pagamento do Inpe como funcionários contratados, a ressalva travou a proposta. A Clua diz que não chegou a receber uma negativa oficial, mas até hoje o instituto não respondeu à entidade com uma solução.

Histórico de conflitos

Em 2007, Longato usou argumentos semelhantes para subsidiar um processo de improbidade - administrativa contra Gilberto Câmara na gestão do programa CBERS, que estava um ano atrasado. O ex-diretor venceu o processo, porém, tanto na primeira quanto na segunda instância.

- O parecer da AGU no caso desse convênio com a Clua também é meramente opinativo. Nenhum diretor de instituição pública é obrigado a seguir parecer da AGU - diz Câmara. - Houve casos, na minha época como diretor, em que precisei de recurso via fundação para contratar pessoas. Ele (Longato) me denunciou para o Tribunal de Contas da União (TCU), que investigou e não achou nenhum problema.

No início deste ano, após a notícia de que o monitoramento do Cerrado seria interrompido, Nardin disse em vídeo de rede social que a informação não é verdadeira.

- Estamos ampliando o monitoramento dos biomas brasileiros. Agora ele se chama 'Biomas BR MCTT', e vamos monitorar todos - disse. - Aprovada a Lei Orçamentária Anual, teremos recursos da União através do ministério para financiar esse programa por mais quatro anos.

A negociação com a Clua não é mencionada no vídeo, porém, e o texto da lei orçamentária não especifica fonte nem destinação dos recursos. O GLOBO pediu ao Inpe que explicasse melhor o financiamento, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Pesquisadores que conduzem o Prodes e o Deter do Cerrado, um grupo de 20 pessoas, não se pronunciam publicamente enquanto o impasse sobre o projeto não se resolve. Há um clima de tensão instalado no Inpe desde que o ex-diretor Ricardo Galvão foi demitido em 2020 por confrontar o presidente Jair Bolsonaro. Sem provas, Bolsonaro acusava o Inpe de inflar dados de desmate da Amazônia.

No instituto, entre os poucos que se manifestam sobre o risco de apagão de dados sobre o Cerrado estão pesquisadores aposentados ou com proteção sindical.

-O atual diretor do Inpe fala que é tudo mentira e que o dinheiro está no orçamento. Acontece que esses recursos não estão especificados. A lei orçamentária de 2022 foi projetada em meados de 2021, quando achavam que não precisariam colocar recursos para o monitoramento do Cerrado por não ser atribuição do Ministério da Ciência e Tecnologia. O convênio (com o Banco Mundial) que acabou era pelo Ministério do Meio Ambiente - diz Acioli Olivo, vice-diretor do Sindicato dos Servidores Federais de Ciência e Tecnologia.

Sem desistir

A Clua afirma que dialoga com o Inpe e quer ajudar. Em comunicado, afirmou que ainda não desistiu de firmar o acordo. 'Encontramos uma equipe muito dedicada e empenhada em buscar uma solução garantindo a redução de Tiscos e segurança nos contratos, e continuamos em diálogo e buscando alternativas', afirmou a aliança. O desmate no Cerrado bateu recorde em 2021, com 8. 500 km? devastados. Apesar de ter uma biomassa menor que a da Amazônia, a vegetação nativa desse bioma protege reservatórios de água estratégicos do país e está sob maior pressão do agronegócio.

No cenário de incerteza, o MapBiomas, projeto independente de monitoramento por satélite do território brasileiro operado por ONGs e universidades, se ofereceu para ajudar. Em nota, afirmou que pode produzir alertas sobre desmate no Cerrado caso haja um apagão de dados.

Pesquisadores da área, porém, defendem que o governo não pode abrir mão de uma ferramenta própria nem deixar o Inpe perder protagonismo.

-Eles têm uma experiência de 30 anos desenvolvendo metodologia científica, modelos computacionais e hoje até inteligência artificial para monitorar biomas a partir de imagens de satélite -conta Olivo. - Com o Prodes e o Deter, o programa formou centenas de mestres e doutores, e cada um deles contribuiu com parte dos modelos que hoje monitoram a Amazônia.

Rafael Garcia, O Globo   



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