quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O peso da desigualdade

 


O IBGE acaba de publicar a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) referente a 2019, e os dados são aterrorizantes. Não se costuma falar muito sobre a obesidade no Brasil, ao menos não no debate público, devido à percepção equivocada de que o termo carrega preconceitos em relação a pessoas que estão acima do peso.

 

Mas a obesidade não é sinônimo de “gordofobia” ou qualquer outro termo pouco edificante que se pretenda usar para tratá-la. A obesidade é uma doença, uma doença crônica. A obesidade é uma doença crônica em que ela própria é fator de risco para o desenvolvimento de várias outras doenças crônicas. Entre elas, a hipertensão, a diabetes, doenças cardiovasculares diversas, problemas renais. Todos esses males são fatores de risco para o desenvolvimento de quadros graves da Covid-19. Como a Covid-19 estará conosco por muito tempo, o perfil antropométrico da população brasileira, que já tinha caráter de urgência, é hoje ainda mais urgente.

O que mostra a PNS? Primeiramente que o problema que aflige o Brasil — ainda que tenhamos retornado ao mapa da fome — não é o déficit de peso, mas o contrário. Cerca de 60% dos brasileiros com mais de 18 anos estão com excesso de peso e 26% sofrem de obesidade. Tanto o excesso de peso quanto a obesidade aumentaram fortemente desde 2002/2003. Naquela altura, 12% da população adulta brasileira era obesa, a prevalência mais do que dobrou de lá para cá. Há também diferenças marcantes entre gêneros: entre os homens com mais de 20 anos, 22% são obesos; entre as mulheres com mais de 20 anos, 30% são obesas. Em 2002/2003, cerca de 10% dos homens e 14,5% das mulheres sofriam de obesidade. Segundo vários estudos, a obesidade já foi “doença de rico”. Contudo, desde os anos 1980, acentuando-se ao longo dos anos 2000, a obesidade é cada vez mais relacionada com a desigualdade e a pobreza. As mulheres obesas brasileiras são, sobretudo, mulheres de baixa renda. Mulheres que não podem adoecer pois cuidam de lares com muitos filhos e parentes idosos. Mulheres que, uma vez obesas, têm um risco maior de sofrer dos casos graves da Covid-19 e que moram em comunidades onde o risco de contrair a Covid-19 é desproporcionalmente mais alto do que para a população mais abastada.

O peso da desigualdade, portanto, está não apenas no índice de massa corporal (IMC), mas nas marcas que a Covid-19 haverá de deixar em segmentos bastante específicos e visíveis da população brasileira. Diante dessas várias epidemias — a de obesidade, a de hipertensão associada além de outras doenças, a de Covid-19 —, o governo brasileiro pretende dar fim ao Guia Alimentar elaborado pelo Ministério da Saúde cujo propósito é dar informações à população mais carente sobre nutrição e prevenção de doenças crônicas relacionadas à dieta. Vejam: as questões de segurança alimentar que afligem esse segmento da população brasileira não estão associadas apenas à fome. Estão também associadas às dietas carregadas de alimentos ultraprocessados posto que mais baratos, ao hábito de tomar refrigerantes e outras bebidas com alto teor de açúcar. O governo Bolsonaro, aliás, acaba de afagar as multinacionais produtoras de refrigerantes concedendo-lhes desonerações polpudas. Ou seja, nossas políticas públicas haverão de alimentar não apenas a epidemia de obesidade e doenças relacionadas, como também agravarão os riscos de contrair Covid-19 para parte considerável da população, a de baixa renda.

Todas essas pessoas, mais doentes, menos capazes de exercer suas funções de cuidado ou de trabalho, precisarão receber mais assistência do governo. Todas essas pessoas, cuja carga de doenças crônicas presentes e futuras está ficando cada vez maior, haverão de recorrer ao SUS. Terá o SUS a capacidade de ajudá-las? Terá o SUS a capacidade de orientá-las? Com o subfinanciamento que hoje aflige nosso sistema de saúde pública, aquele sem o qual o número de óbitos na pandemia seriam inequivocamente maiores, o SUS não poderá atender adequadamente a essas demandas. Os problemas estruturais se agravarão. As desigualdades tornar-se-ão mais enraizadas e mais acentuadas. É preciso dar conta da saúde pública quando se pensa na brutal desigualdade brasileira. É preciso ter claro que nosso problema de fundo é muito maior do que a epidemia de Covid-19. Não temos só uma epidemia. Temos múltiplas.

Por Monica de Bolle, na Revista Época


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