Ministro do STF coloca nas ruas um comandante do PCC, contrariando o bom senso e chocando o País. Não foi a única falha. Essa nova vitória da criminalidade resultou de uma cadeia de erros no Executivo, no Legislativo e na PGR. Novo presidente da corte, Luiz Fux tem a oportunidade de enfrentar os problemas do sistema judiciário, a começar do excesso de decisões monocráticas
Recém-empossado na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux está
diante de um dos maiores desafios que a Corte já enfrentou. Há anos ela é
criticada por parlamentares pela interferência no Legislativo. Mas a
judicialização da política, apesar das suas distorções, tem preenchido lacunas
graves de um arcabouço legal jovem e imperfeito, que ainda exige
aperfeiçoamentos.
A maior Corte do País também precisa enfrentar
problemas crônicos da Justiça, como a morosidade e a impunidade. Fux já deixou
claro que preservará a independência da instituição, enfrentará a leniência com
o crime do colarinho branco e manterá as conquistas da operação Lava Jato. Mais
do que tudo, está demonstrando que vai privilegiar as sentenças coletivas — em
2020, mais de 80% delas foram monocráticas. Isso pode fortalecer o STF,
diminuindo a briga de foice entre grupos e eliminando decisões contraditórias,
recorrentes e muitas vezes exóticas.
A libertação escandalosa do narcotraficante André
Oliveira Macedo, o André do Rap, um dos chefes do PCC, foi a gota d’água.
Estampou, aos olhos da população, um sistema judiciário falho em que bandidos
contam com amplos benefícios do Estado e condenados procuram determinar a ação
dos magistrados. Do ponto de vista do cidadão, a impressão é que as facções
controlam a sociedade, e não o inverso.
Polícias mal aparelhadas, sistemas de controle que
não se comunicam, leis ineficientes e uma Justiça morosa que concede uma
infinidade de recursos são a garantia da expansão das atividades delituosas.
Esse quadro calamitoso ganhou ares de escândalo com a decisão do ministro Marco
Aurélio Mello, que colocou de volta às ruas às vésperas de um feriado um dos
comandantes do PCC, que havia sido preso em 2019 após seis anos de um complexo
e custoso trabalho de investigação. Poucas vezes uma decisão do STF
foi tão reprovada. Com a medida, o magistrado chocou o País, ampliou o
descrédito do STF e expôs uma cadeia de erros que envolve o Legislativo e o
Executivo. Ou seja, o crime está vencendo.
Mello utilizou o parágrafo único do artigo 316 do
Código de Processo Penal, introduzido pelo Congresso no pacote anticrime
aprovado no ano passado. Ele prevê que a prisão preventiva exige uma revisão do
juiz a cada 90 dias, ou torna-se ilegal. Esse artigo, condenado por Sergio
Moro, não estava no texto original do projeto de lei anticrime enviado ao
Congresso em 2019 por iniciativa do então ministro, que redigiu o texto junto
com uma comissão de juristas comandada pelo ministro do STF Alexandre de
Moraes. Foi introduzido pela pressão de parlamentares. Entidades como a
Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul dizem que ele
não implica automaticamente a colocação em liberdade de um réu preso. A
Primeira Turma do STF já havia tomado essa decisão e outros ministros da Corte
tiveram o mesmo entendimento. Marco Aurélio ignorou os precedentes.
“Tenho 40 anos de experiência como juíza. Não é
possível um magistrado voltar a todos os casos de 90 em 90 dias
automaticamente. Com isso, quem vai para a rua é o grande traficante, que tem
acesso aos tribunais superiores. Isso custa muito dinheiro “, protesta Eliana
Calmon, ex-ministra do STJ e ex-corregedora-geral de Justiça. Contra a sugestão
de Moro, o presidente não quis vetar esse parágrafo. O pacote anticrime, uma
iniciativa que veio na esteira da Lava Jato para proteger a sociedade,
transformou-se, por ação marota de parlamentares, em instrumento para a
libertação de criminosos. Na época, essas modificações chancelaram uma derrota
para Moro, que ainda procurava fortalecer a luta anticrime no governo
Bolsonaro.
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O ministro Marco Aurélio pode ter agido
tecnicamente embasado, mas sua decisão agride o bom senso. Agiu corretamente
Luiz Fux, que ressaltou a periculosidade do bandido e apontou os riscos para a
segurança e a ordem pública. Porém, quando o presidente do STF suspendeu a
decisão de Mello, o bandido já tinha pegado um jato particular e fugido para o
exterior — o destino presumido pela polícia é o Paraguai ou a Bolívia, onde o
PCC tem bases. Como André do Rap tem conexões internacionais, incluindo a máfia
calabresa ‘Ndrangheta, e coordena operações no exterior da quadrilha, era fácil
prever a fuga. Nem passou pela cabeça do meliante seguir a determinação do
ministro de permanecer no endereço fornecido pelos advogados, no Guarujá (SP),
e “adotar a postura que se aguarda do cidadão integrado à sociedade”.
Erro coletivo
Quando foi preso, André do Rap estava em uma mansão
com dois helicópteros e uma lancha. Na cadeia, a certeza da impunidade era tamanha
que ele já falava para os companheiros de presídio que seria solto em breve. O
episódio é constrangedor para o ministro Marco Aurélio, pois o pedido de habeas
corpus foi assinado pela sócia de um advogado que foi seu assistente até
fevereiro. Também causou estranhamento porque ele não poderia ter decidido
sobre esse pedido, já que a prisão do traficante ocorreu no âmbito da Operação
Oversea, cuja relatoria é da ministra Rosa Weber, uma questão que já havia sido
decidida pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, em junho.
O resultado desastroso não foi gestado apenas
dentro da mais alta Corte do País. O triunfo de um chefão da criminalidade foi
uma comédia de erros que envolveu o Legislativo (formulador de uma lei falha),
o presidente (que lavou as mãos) e também da Procuradoria-Geral da República. O
órgão atentou para a dimensão do episódio apenas pela repercussão na imprensa.
Não foi consultado antes da decisão por Mello, que alegou se tratar de uma
medida de urgência. Ainda assim, a PGR recebeu o caso três dias antes da ordem
de soltura, mas Augusto Aras estava em viagem particular e uma pane no sistema
eletrônico fez o responsável pelo plantão acionar o presidente do STF tarde
demais. Esse não foi o único caso escandaloso recente. Outro chefe do PCC,
Valacir do Alencar, condenado a 74 anos por tráfico, foi solto no Paraná em
abril porque o juiz considerou que havia o risco de contrair Covid-19 na
prisão. Para surpresa de ninguém, ele rompeu a tornozeleira eletrônica e
desapareceu apenas cinco horas depois.
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No episódio André do Rap, o ministro Marco Aurélio
demonstrou grande indignação e irritação. Não pela fuga espetacular, mas porque
sua ordem de soltura foi suspensa por Fux. “A decisão é péssima para a boa
convivência na Corte”, protestou. Também disse que a contramedida representava
uma autofagia, já que o presidente havia podado sua decisão. Ocorre que o
próprio Marco Aurélio derrubou uma decisão de Celso de Mello há um mês, que
determinava o depoimento de Jair Bolsonaro no inquérito sobre a interferência
na PF. Para o Marco Aurélio, Fux tenta agradar a população em “busca
desenfreada por justiçamento”. Quis “jogar para a turba”. Além disso, afirmou
que “não estava em jogo a periculosidade do paciente” — um argumento para
provar sua isenção. O problema é que a turba é a sociedade brasileira, que se
mostra desamparada com a violência cotidiana nas ruas e respondeu com uma justa
indignação.
As ações do ministro, evidentemente, precisam ser
avaliadas com ponderação. Por um lado, há fundamento técnico para elas.
Representam o pensamento da ala garantista do STF, atenta para a interpretação
literal do texto da lei e especialmente preocupada com a preservação dos
direitos individuais. Essa vertente, levada ao extremo, se choca por outro lado
com a realidade abissal do País. O ordenamento jurídico é extremamente liberal
com os réus, que têm a possibilidade de entrar com inúmeros recursos e retardar
decisões até a prescrição. Isso privilegia os ricos e os políticos encrencados,
que têm acesso a advogados caros e influentes. Os tribunais estão abarrotados e
têm dificuldade em avaliar um número excessivo de apelações, o que abre brechas
para ações oportunistas. A nova regra tem a intenção justificável de impedir a
extensão indefinida de prisões preventivas, mas ignora a realidade do País ao
transferir ao Judiciário o ônus de reafirmar suas ações de maneira desmedida.
Usando o próprio artigo 316, Marco Aurélio já havia libertado pelo menos 79
presos.
Um antídoto eficiente contra a impunidade é a volta
da execução de pena após condenação em segunda instância, que limitaria ações
protelatórias. Foi derrubada em 2019 por pressão política para beneficiar o
ex-presidente Lula. Se estivesse em vigor, André do Rap não estaria nas ruas,
já que está condenado a 25 anos de prisão em duas instâncias. A aprovação da
PEC que restabeleceria a norma deveria ser o primeiro passo do Congresso para
reverter o descrédito da Justiça. Colocaria o País dentro da prática das
grandes democracias.
A prisão em segunda instância é defendida por Fux,
que quer reavaliar o caso no STF, e está por trás da disputa que trava
pessoalmente com Mello. Com a soltura do megatraficante, o ministro Marco
Aurélio aprofundou o racha na Corte, que já é contestada pelo excesso de
decisões monocráticas, pelas rivalidades e por bate-bocas públicos. A briga
entre os garantistas e os consequencialistas precisa ser resolvida em prol da
sociedade. Fux tem agora a oportunidade de favorecer uma prática mais realista
para balancear nas decisões a investigação e o contraditório, mas também fazer
prevalecer a celeridade e a eficiência.
Nessa direção, Fux adotou uma medida certeira ao
eliminar as decisões sobre causas criminais nas duas Turmas do STF. Também foi
previdente ao suspender outra medida introduzida pelo Congresso na lei
anticrime, igualmente criticada por Moro: a criação do juiz de garantias. Ainda
que seja um procedimento consagrado em vários países, como a França, sua
aplicação açodada no Brasil poderia estender processos indefinidamente e
sobrecarregar uma estrutura que ainda tem deficiências gritantes — a euforia de
bancas caras e políticos acusados na Lava Jato com a norma reafirma o acerto da
decisão. A longo prazo, o aperfeiçoamento precisa transformar o STF de fato em
uma Corte constitucional, deixando decisões cautelares para as instâncias
inferiores.
O Legislativo também precisa enfrentar o desafio. O
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou num primeiro momento que não havia
nenhum problema na regra aprovada. “A lei não é o problema, o problema é a
decisão”, disse. O deputado federal Lafayette Andrade (Republicanos), autor da
norma, tentou se eximir. “Não é correto afirmar que o artigo 316 foi a causa da
soltura. O artigo apenas explicita que prisão preventiva não é condenação, e
que por isso deve ser reavaliada a cada 90 dias”, disse. A explicação é
capenga, já que o texto abriu valiosa brecha para a bandidagem. Relator do
texto do pacote anticrime, o deputado Capitão Augusto criticou o dispositivo.
“Lutei contra isso, avisei que daria problema”, disse. Para os delinquentes, o
que importa é o resultado. Outro membro da facção já fez pedido semelhante de
habeas corpus no próprio sábado em que André do Rap sumiu. Diante da comoção,
Maia prometeu colocar em votação até o final do ano a PEC da prisão em segunda
instância.
O governador João Doria, que havia conseguido tirar
a cúpula do PCC de São Paulo no início de 2019 com a ajuda do ex-ministro
Sergio Moro, foi a voz mais indignada. “Foi um desrespeito ao trabalho da
polícia de SP e uma condescendência inaceitável com os criminosos”, disse. Ele
manifestou apoio a Fux. Moro apontou o risco de libertação de assassinos e
voltou a defender a prisão em segunda instância. “Este é o momento”, declarou.
O caso é tão grave que o presidente do STF teve sua segurança reforçada. Ele
levou a matéria ao plenário do STF na quarta-feira, 14, que decidiu manter a
prisão preventiva do traficante com o voto dos nove ministros contra Marco
Aurélio. Ele “debochou da Justiça”, disse. Mas a decisão não tem efeitos
práticos para o caso. O nome de André do Rap já tinha sido incluído pela PF na
lista de mais procurados da Interpol. Porém, os responsáveis por sua captura
consideram muito difícil prendê-lo novamente.
A problemática indicação para a Corte de Kássio
Nunes Marques, a primeira de Jair Bolsonaro, coloca à prova novamente a solidez
do STF. E o episódio André do Rap marcou o início melancólico do decanato de
Marco Aurélio Mello, que vai se aposentar compulsoriamente em julho de 2021.
Ele se tornou o membro mais antigo da Corte com a aposentadoria de Celso de
Mello. É conhecido por votos em conflito com o colegiado, frequentemente pelo
placar de 10 a 1, além de ser autor de decisões polêmicas. Que sua nova
controvérsia sirva para despertar a sociedade e eliminar as brechas
oportunistas que fazem do País um paraíso da impunidade, além de sanar as
vulnerabilidades do sistema judiciário reconhecidas por seus próprios membros.
Por Marcos Strecker, na Revista Isto é
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