Um pássaro que ficou amigo de
peixes e, por isso, podia nadar, além de voar.
Um dragão que cuspia fogo
carregando gentileza.
Uma data que desaparece do
calendário e motiva uma aventura em sua busca.
Por trás destas histórias infantis,
estão autores com suas próprias histórias de vida "excepcionais" —
cujos livros chegaram às prateleiras de uma das bibliotecas mais importantes do
mundo, a do Congresso americano.
São frutos do projeto Red Fred, em
que o designer americano Dallas Graham, 45 anos, se junta a crianças com
doenças raras ou graves para criar e publicar livros com histórias únicas. Tudo
começa com uma pergunta feita a elas: se você pudesse escrever um livro para o
mundo ler, sobre o que seria?
Até agora, 18 crianças participaram
do projeto nos Estados Unidos, e escolheram contar para o mundo histórias sobre
amizade, família, bullying e superação. Os valores gerados com a venda dos
livros, muitos dos quais já foram esgotados, vão para a família das crianças,
ou então para iniciativas que elas apoiam, como de assistência a outras pessoas
com condições de saúde semelhantes.
Graham diz que quer conhecer a
história e a imaginação de outras meninas e meninos pelo mundo, expandindo o
projeto para outros países, incluindo o Brasil. O designer já está um passo
mais próximo do país — em 3 de outubro, ele participa da terceira edição do
festival inFINITO, que trata de temas sobre a vida e a morte e, neste ano, será
realizado online. As informações sobre ingressos estão no site do evento.
"É claro que nós, como
adultos, temos uma tendência a querer voltar às formas com que as crianças veem
o mundo — de uma forma mágica, vívida, com os olhos novos de uma criança. Mas
estas são crianças que estão passando por um processo de amadurecimento muito
rápido — por coisas que muitos de nós, adultos, nunca passamos em relação à nossa
saúde", afirmou o designer à BBC News Brasil por chamada de vídeo.
"Elas sabem de realidades que
nós não conhecemos. São crianças vivendo em circunstâncias extraordinárias e
que criam histórias incríveis. Elas têm uma perspectiva bonita do mundo, mas isso
não significa que elas não sofram, não tenham dor."
O caso que inspirou o projeto
Após uma pausa em que os olhos
ficaram marejados, Graham reconhece que o luto e a dor fazem parte do projeto —
desde a rotina, em que encontros para a criação dos livros precisam conviver
com uma agenda intensa de tratamentos e exames; ao seu próprio início, há sete
anos, após a morte do filho de amigos.
Este sofria de distrofia muscular
de Duchenne e, ao saber da situação em 2012, o designer se perguntou o que
poderia fazer para ajudar. De repente, veio uma ideia: "Quero fazer um
livro com ele". A família chegou a concordar com a proposta, mas o menino
faleceu e as histórias — a sua e a que ele escreveria — foram interrompidas.
"Continuo em contato com a
família dele — eles são muito amáveis e compreensivos. Afinal, ele não era meu
sobrinho ou filho. Mas eles apoiam muito o projeto, que mudou minha vida. Para
mim, trouxe uma verdadeira mudança de perspectiva", conta o designer, que
hoje vive integralmente do projeto, financiado por doações e pela venda de
livros — que, segundo ele, já têm uma "clientela" fiel de fãs do
projeto.
"A história dele foi uma
inspiração para tantas outras. Eu percebi: precisamos trocar com essas
crianças, sabe? Somos adultos, não é difícil pra gente."
Muitas crianças têm condições com
as quais viverão, fazendo adaptações. Entretanto, algumas já morreram nesta
trajetória.
"O projeto tem muito luto, e
muito cuidado também. Da minha parte, tento fazer desse processo algo bonito.
Porque a vida é bonita, e é frágil também", diz Graham, emocionado.
"Sinto isso muito
profundamente. Vejo o lado mais bonito da humanidade, mas também muito duro.
Isso às vezes me fragiliza. Ainda estou aprendendo a lidar com essas coisas —
tento me alimentar bem, ter ajuda (psicológica) profissional, praticar lições
de ioga. Ao fim, o projeto me ajudou a estar mais aberto para o mundo e a ser
um amigo melhor para todos."
Construindo memórias
Normalmente, Graham e os autores
mirins passam cerca de cinco dias criando — e isso vai desde a escolha de
personagens, normalmente uma trupe de passarinhos que se repete em vários
livros; ao enredo e apresentação estética do livro. Muitas vezes, as
ilustrações se juntam a fotografias tiradas em lugares escolhidos pelas
crianças, na região em que vivem.
"Esta é uma forma de
solidificar memórias. Uma das crianças, D*. (que está fazendo tratamento contra
um neuroblastoma), escolheu incluir fotos de um lago ao qual ia depois de suas
terapias contra o câncer. Ela disse: quero que todos conheçam o lago. A verdade
é que muitas crianças sabem que têm uma doença que ameaça suas vidas, e estão
dispostas a viver a vida dessa forma", conta o designer.
A participação da família é
fundamental no processo, e os livros se tornam, independente dos capítulos
futuros da vida real destas crianças, memória. E, para Graham, a convivência com
essas pessoas é, também, pessoalmente algo que o move.
"É difícil ver crianças
sofrendo, é difícil ver as famílias sofrendo. Essas pessoas têm suas vidas
viradas de cabeça para baixo, e têm que lidar com custos de operações, de
saúde, em cima de todo o resto. São exemplos brilhantes de como perseverar, de
como resolver problemas, de como se envolver com suas comunidades."
Um dos exemplos
"incríveis" disso, citado pelo americano, é o da família de Alejandro
Ako, que tem uma paralisia generalizada causada pela atrofia muscular espinhal
severa — ela afeta o funcionamento dos músculos, no caso do menino exigindo que
ele use um aparelho para conseguir respirar.
Mas Alejandro consegue movimentar
seus olhos — e é a partir deles que ele se comunica, através de um software
criado pelo pai, que trabalha com programação. Com a engenhoca, Alejandro criou
com "os olhos", brinca Graham, sua história.
"O ponto mais incrível do
projeto, para mim, é conhecer essas famílias. São as pessoas mais incríveis do
mundo", exalta o designer.
Uma dessas pessoas, Guiller
Bosqued, mãe de Alejandro, conversou com a BBC News Brasil via e-mail sobre a
transformação do seu filho em autor. Em março, chegaram a acontecer encontros
presenciais, mas depois o processo precisou ser finalizado virtualmente por
conta da pandemia de coronavírus. O livro de Alejandro está recebendo doações
para então ser publicado.
"Inicialmente, hesitamos em
nos comprometer com o projeto porque nosso tempo é muito limitado, mas o Dallas
conseguiu acomodar isso muito bem e nunca precisamos desorganizar nossa
rotina", lembra Guiller, que vive na cidade de Chicago. "Alejandro
sempre estava muito animado para os encontros, e eles eram muito
divertidos."
O menino criou a história de Peco,
um pássaro que vive em um hospital — "que é um dos lugares favoritos do
Alejandro, o qual ele visita frequentemente", explica a mãe. Um dia, Peco
percebe que a data do aniversário de um amigo desapareceu do calendário, e uma
trupe embarca na busca por esse "dia perdido".
"Datas são um assunto que
Alejandro sempre adorou — ele adora falar sobre elas e tem uma habilidade
extraordinária para lembrar delas", conta Guiller.
"O Dallas fez um trabalho
incrível guiando Alejandro no processo da escrita, mas em última instância foi
Alejandro que tomou todas as decisões, escolhendo o desenho do pássaro, seu
nome, os personagens, o cenário e roteiro."
Dallas Graham explica que busca dar
muita liberdade para as crianças inventarem suas histórias — mesmo que isso
signifique mudar bruscamente de roteiro no meio do caminho.
Algumas, mas não todas, vão ao
encontro das próprias biografias das crianças, conta Graham — como a de um
pássaro que tinha dificuldades de voar, e por isso ficava a todo tempo em sua
árvore. No fim, o personagem, diferente do autor por sua condição de saúde,
consegue se movimentar.
'Defenda o que você ama'
Em cada livro, as crianças são
convidadas também a sugerir duas lições para o mundo.
N.*, por exemplo, escreveu:
"Algumas vezes, nossos dragões nos ajudam."
G.*: "Defenda o que você mais
ama."
M.*: "Permaneça verdadeiro em
relação a você mesma."
Mas enquanto nós, adultos, buscamos
significados profundos nos olhares das crianças, o designer conta que, para
estes jovens escritores, a motivação para participar do projeto pode ser muito
mais… mundana.
"Elas se tornam autoras de um
livro infantil. É uma grande coisa. Haverá uma publicação, uma sessão de
autógrafos, com toda a família, amigos e comunidade. Seu livro estará na
Biblioteca do Congresso, uma das mais importantes do mundo, para sempre",
diz.
"Mas é também uma forma de
expressão pessoal. De identificação para além de sua condição de saúde."
A mãe de Alejandro Ako diz que, no
caso do filho, todas essas motivações foram percebidas.
"Foi uma oportunidade de criar
algo que veio dentro dele e era verdadeiramente seu. Foi algo que deu ao meu
filho uma sensação de realização e até a percepção de que fez algo que não
muitas pessoas conseguirão fazer — assinar um livro", relata Guiller
Bosqued.
"Todos nossos amigos, os
professores e colegas dele sabem do livro e o parabenizaram. Foi muito
gratificante e legal tê-lo no centro das atenções."
Entretanto, a pandemia de
coronavírus já está afetando etapas essenciais do projeto — principalmente as
que promovem interações entre as pessoas, como os próprios encontros com Graham
e a sessão de autógrafos. Afinal, a imunidade de muitas dessas crianças é frágil,
o que exige atenção redobrada diante da covid-19.
O próximo encontro de Graham com
uma criança está marcado para outubro, possivelmente virtual. De todo modo,
independente dos meios, podemos esperar o nascimento de mais um autor de livros
infantis e a revelação de suas histórias excepcionais.
*Alguns nomes foram omitidos pois,
segundo normas da BBC para a proteção de crianças, nomes e imagens de menores
de idade só podem ser publicados mediante autorização de responsáveis.
Por Mariana Alvim, na BBC Brasil
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