segunda-feira, 8 de agosto de 2022

'Reduzir a pobreza extrema no Brasil é uma decisão política', afirma especialista em distribuição de renda


Especialista em distribuição de renda, o economista Carlos Góes, da Universidade da Califórnia, reconhece a importância do Auxílio Brasil para proteger a população mais vulnerável neste momento de crise. No entanto, ele afirma que, embora programas como esse reduzam a pobreza e a desigualdade, costumam ter um efeito ambíguo: a inflação corrói o valor do dinheiro.

 

Em entrevista ao GLOBO, Góes afirma que o programa é eleitoreiro e defende que a transferência de renda seja permanente. Ele também avalia que o modelo atual precisa de mudanças, pois provoca distorções no Cadastro Único.

Qual sua avaliação sobre o programa Auxílio Brasil?

Programas de transferência condicional de renda, como o antigo Bolsa Família ou o Auxílio Brasil, são formas eficientes de proteger diretamente os mais vulneráveis. Eles são formas de inclusão social via consumo no mercado: no lugar de o governante escolher o que as famílias pobres querem, ele privatiza essa escolha para a família que escolhe o que é melhor para si.

O Bolsa Família beneficiava 14 milhões de famílias (cerca de 43 milhões de pessoas), custando só 0,5% do PIB, enquanto o Auxílio Brasil deve incluir cerca de 19 milhões de famílias (53 milhões de pessoas) e custar ao redor de 1,5% do PIB. Para efeitos comparativos, a União gasta cerca de 4,5% do PIB com subsídios.

No auge desses gastos, durante o governo Dilma Rousseff, chegamos a gastar quase 7% do PIB com subsídios. Gastar 1,5% do PIB com um programa social que abarca os mais vulneráveis não é desarrazoado.

O que acha que pode ser melhorado?

Em linhas gerais, os programas são similares. Uma alteração importante é um piso alto, de R$400 por família (R$600 até o fim do ano). No Bolsa Família, o objetivo era manter mais ou menos constante entre famílias o benefício por pessoa.

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Agora, com este piso, o benefício por pessoa passa a ser maior para as famílias menores. Isso pode gerar o incentivo para que as pessoas declarem estar em famílias diferentes, mesmo morando juntas. Por exemplo, o filho já maior de idade que mora com a mãe pode declarar ser um núcleo familiar de uma pessoa, para ter ele também o benefício.

Esse incentivo tem sido criticado por especialistas em políticas sociais não somente por criar esse tipo de desigualdade no benefício por pessoa, mas também porque gera distorções no Cadastro Único, o registro geral de benefícios sociais do governo.

O Cadastro Único alimenta diversas políticas públicas e estudos científicos. Por isso, o incentivo perverso de desmembramento de famílias pode piorar a qualidade dos dados do Cadastro Único – o que reverberaria por diversas políticas sociais.

Em uma de suas últimas colunas para O GLOBO, você mencionou que o aumento dos benefícios do Auxílio Brasil foi eleitoreiro. Por quê?

Minha crítica tem mais a ver com a forma e a duração da medida. O Congresso e o presidente Bolsonaro se uniram para declarar um falso estado de emergência para, com isso, suspender os limites de gastos em ano eleitoral.

O aumento do benefício do Auxílio Brasil, sendo temporário, acaba tendo um caráter eleitoreiro de burla das regras do jogo eleitoral que tenta equilibrar as forças entre aqueles que estão dentro e fora do governo. Se o aumento de benefícios é meritório, pode ser dado de forma permanente e institucionalizada.

Como evoluíram pobreza e desigualdade no Brasil da pandemia e pós-pandemia?

Foi um período muito peculiar. O choque sobre o mercado de trabalho foi algo completamente inédito. No vale da recessão da Covid19, o número de empregos chegou a cair 10% entre os homens e 16% entre as mulheres. Contudo, enquanto ocorreram os pagamentos do Auxílio Emergencial, o benefício foi muito substancial.

Por causa dele, tanto pobreza quanto desigualdade de renda caíram durante a pandemia, o que é muito inesperado e sinaliza que reduzir a pobreza extrema no Brasil é uma decisão política. No período entre o fim do Auxílio Emergencial e o início do Auxílio Brasil, houve um novo pico de pobreza e desigualdade.

Contudo, desde a criação do Auxílio Brasil e a melhora dos indicadores do mercado de trabalho, a desigualdade voltou a cair. Mas o efeito mais recente sobre a pobreza tem sido ambíguo. Por um lado, o Auxílio Brasil e a melhora no mercado de trabalho empurram a pobreza para baixo.

Por outro, a alta inflação corrói os salários e reduz os rendimentos reais. Só saberemos os efeitos de médio prazo após uma estabilização do pico de inflação.

Há outros efeitos econômicos desse tipo de programa social?

O fato de o Auxílio Emergencial ter sido uma transferência tão grande ajuda a testar seus efeitos econômicos. Para alguns municípios, ele chegou a representar quase 40% do PIB municipal, enquanto para outros ele não foi muito grande.

Economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) usaram esse tipo de variação para estudar o efeito do Auxílio Emergencial sobre o emprego e a atividade econômica. A conclusão deles é que pelo menos dois milhões de empregos foram salvos por causa do programa; e o PIB caiu pelo menos 2% menos do que teria caído sem o Auxílio. Esse efeito é consistente com alguns outros estudos que avaliaram o impacto econômico do Bolsa Família.

Embora possa haver algum efeito de desencorajar o emprego para quem recebe, esse efeito é mais que compensado pelo fato de que as transferências aumentam a demanda por emprego, via gastos na economia local. Ou seja, em termos líquidos, dar o pão ajuda com que haja mais gente disposta a pescar.

Há experiências internacionais parecidas com o que aconteceu no Brasil?

O Bolsa Família e seu primo mexicano — o Progresa/Oportunidades — foram alguns dos primeiros programas de transferência condicional de renda da região. Hoje, quase todos os países da América Latina têm um programa similar.

O modelo desse tipo de programa é bom. O que precisa ser melhorado são alguns detalhes operacionais e parâmetros dos benefícios.

O Globo, Eliane Oliveira


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