Os polvos resolvem problemas, fazem travessuras e são verdadeiros artistas da fuga. Sua vida íntima parece ser bastante rica.
Era uma noite importante para Inky, o polvo neozelandês.
Os visitantes do dia já
tinham vindo e saído. Sua sala no aquário estava deserta. E a tampa do tanque
estava entreaberta, o que raramente acontece.
Inky não tinha companhia
feminina há algum tempo e dividia o tanque apenas com outro macho, Blotchy. E a
tampa solta oferecia a Inky uma oportunidade.
Com seus oito membros fortes
e cheios de ventosas - e, provavelmente, com preocupações íntimas próprias -
Inky saiu da água, passou pela tampa solta e desceu até o piso do aquário.
Ele prosseguiu por cerca de
quatro metros até encontrar algo mais - não uma fêmea, mas um ralo que levava
ao Oceano Pacífico. E fugiu.
Blotchy era a única
testemunha presente para presenciar a intrépida fuga. Mas, com a ajuda de uma
trilha úmida e comprometedoras marcas de ventosas, os movimentos de Inky foram
rastreados posteriormente pelos funcionários do Aquário Nacional da Nova
Zelândia, na cidade de Napier, no norte do país.
Inky demonstrou em sua
famosa fuga que os polvos são animais hábeis na solução de problemas. Eles são
muito inteligentes e podem aprender tarefas novas e orientar-se no seu
ambiente.
E existe consenso cada vez
maior de que os polvos, muito provavelmente, são sencientes.
As pessoas que trabalham com
polvos e passam muito tempo na sua companhia descrevem a sensação que têm
quando olham para um polvo. Parece que alguém está olhando de volta.
"Quando você lida com
um polvo atento e curioso sobre alguma coisa, é muito difícil imaginar que ele
não esteja tendo nenhuma experiência", segundo Peter Godfrey-Smith,
professor de história e filosofia da ciência da Universidade de Sydney, na Austrália,
e autor do livro Outras Mentes: O Polvo e a Origem da Consciência (Ed. Todavia,
2019). "Parece algo irresistível. Não é evidência, é apenas
impressão."
Partindo desse
pressentimento, como podemos explorar a consciência de um animal tão diferente
de nós?
Como é ser um polvo?
Antes de tudo, o que os
filósofos e cientistas querem dizer com "consciência" neste contexto?
Para Godfrey-Smith, o significado é de "algo que é como ser aquele
animal".
Em um ensaio famoso, o
filósofo norte-americano Thomas Nagel pergunta "como é ser um
morcego?" Nagel descreve que é muito difícil, quando não impossível,
imaginar as experiências íntimas de um morcego se o seu ponto de referência for
o corpo humano e a sua própria mente humana.
Da mesma forma, imaginar a
vida íntima de um polvo é difícil do ponto de vista humano. Tente por um
momento - imagine como seria ficar suspenso na fria penumbra azulada do leito
do oceano, talvez levemente arrastado pela corrente puxando você com seus oito
braços balançando suavemente à sua volta.
Como você imagina a sensação
de ter as pontas dos seus membros com ventosas se movendo? Talvez seja como
agitar seus dedos humanos, das mãos e dos pés?
Agora, acrescente à equação
o fato de que o polvo é um animal invertebrado, sem esqueleto. Suas pernas não
têm fêmur, tíbia nem fíbula. Ele não tem pés e nem dedos para agitar.
Os polvos têm um esqueleto
hidrostático, que combina a contração muscular e a resistência da água para
comprimir-se e gerar movimento. É muito diferente da experiência humana de
mover as extremidades do corpo.
Uma analogia um pouco mais
próxima pode ser o movimento das nossas línguas, que também fazem uso da pressão
hidrostática. De fato, os membros do polvo são cobertos de ventosas que têm
sensores exclusivos que sentem o sabor de tudo o que tocam.
"Os braços do polvo, de
certa forma, são mais parecidos com lábios ou línguas do que com as mãos",
segundo Godfrey-Smith. "Existe todo um grande conjunto de informações
sensoriais com base no paladar que chega cada vez que o animal faz qualquer
coisa. É uma situação muito diferente da nossa."
E tudo fica ainda mais
estranho quanto mais examinamos o sistema nervoso do polvo. Os braços do polvo
têm mais autonomia que nossos braços e pernas humanas.
Cada braço do polvo tem o
seu próprio cérebro em miniatura, que fornece certo grau de independência do
cérebro central do animal. Já o nosso sistema nervoso é altamente centralizado
- o cérebro é o núcleo da integração sensorial, das emoções, do início dos
movimentos, do comportamento e de outras ações.
"Um dos nossos desafios
reais é tentar descobrir como poderão ser as experiências em um tipo de sistema
menos centralizado, menos integrado", afirma Godfrey-Smith.
"No caso do polvo, as
pessoas às vezes perguntam se podem estar presentes diversas consciências. Acho
que é apenas uma consciência por polvo, mas pode haver uma espécie de
fragmentação parcial, ou apenas algum tipo de desarticulação", explica
ele.
A criação em fazendas
Quanto mais de perto você examina
o corpo e o sistema nervoso do polvo, mais difícil fica imaginar - ou acreditar
que você está imaginando - qual pode ser a sensação de ser um polvo. Afinal, o
nosso último ancestral comum com esses animais viveu 600 milhões de anos atrás
(um animal sem aparência inspiradora, algo como uma lombriga).
Mas, por mais difícil que
possa parecer, vale a pena tentar entender se os polvos têm consciência - e, se
tiverem, como ela seria, segundo Godfrey-Smith. "Nós só precisamos pensar
sobre isso, trabalhar e tentar formar um quadro."
Esta questão é cada vez mais
urgente. A empresa multinacional de frutos do mar Nueva Pescanova está no
momento buscando as licenças para abrir a primeira fazenda comercial de polvos
do mundo, nas Ilhas Canárias. O anúncio levantou questionamentos dos ativistas
do bem-estar animal, que consideram antiético criar esses animais inteligentes
e possivelmente sencientes em fazendas.
Um estudo afirma que
"quando a questão de consciência animal está em consideração, nossa culpa
ou inocência como civilização por um enorme conjunto de crueldades pode pesar
na balança".
A Nueva Pescanova declarou à
BBC que está realizando pesquisas sobre os "mecanismos cognitivos e
neurofisiológicos do polvo" e que suas condições de aquacultura permitem "melhorar
objetivamente o bem-estar dos polvos".
A Nueva Pescanova afirma que
suas condições de aquacultura imitarão o habitat natural dos animais. "É
um sistema inovador que está tendo excelentes resultados em termos de
crescimento, sobrevivência e resistência da espécie", segundo um porta-voz
da empresa.
Mentes diferentes, mas ambos
sencientes
Heather Browning,
pesquisadora cursando pós-doutorado em senciência e bem-estar animal na London
School of Economics (LSE), argumenta em um ensaio que "a mente de um polvo
pode ser muito diferente da nossa, mas somente tentando ver o mundo do ponto de
vista dele é que poderemos descobrir o que é bom para ele e assim garantir seu
bem-estar".
Browning trabalha em um
projeto sobre as bases da senciência animal na LSE e fez parte de uma equipe
que produziu um importante relatório tentando descobrir se os polvos têm
consciência.
Uma abordagem é começar com
um estudo de caso sobre um animal que sabemos que é senciente: o ser humano.
"Se formos realmente
analisar, consideramos que somos sencientes e que outros seres humanos como nós
também são, o que acho bastante razoável", explica Browning. "A
partir daqui, você pode começar a procurar características que outros animais
podem ter em comum conosco."
Vamos considerar, por
exemplo, a capacidade de sentir dor, que foi o tema do relatório da equipe da
LSE sobre moluscos cefalópodes (incluindo polvos, sépias e lulas) e crustáceos
decápodes (que incluem caranguejos, lagostas, lagostins e camarões).
Browning e seus colegas
analisaram mais de 300 documentos científicos para elaborar oito critérios que
indicam que os animais podem sentir dor:
1. Presença de nociceptores
(receptores que detectam estímulos nocivos, como altas temperaturas ou cortes).
2. Presença de partes do
cérebro que integram informações sensoriais.
3. Conexões entre os
nociceptores e as regiões do cérebro integradas.
4. Reações afetadas por
anestésicos ou analgésicos locais.
5. Compensações
motivacionais que exibem equilíbrio entre ameaças e oportunidades de
recompensa.
6. Comportamentos flexíveis
de autoproteção em resposta a lesões e ameaças.
7. Aprendizado associativo
que vai além do hábito e da sensibilização.
8. Comportamento que
demonstra que o animal valoriza anestésicos ou analgésicos locais quando
lesionado.
Os animais podem atender a
cada critério com nível de confiança alto, médio ou baixo, dependendo se a
pesquisa for conclusiva ou inconclusiva. Se o animal atender a sete ou mais dos
critérios, Browning e seus colegas defendem que existem evidências "muito
fortes" de que o animal é senciente. Se ele atender cinco ou mais
critérios com alto nível de confiança, existem "fortes evidências" de
senciência e assim por diante.
Com esta avaliação, Browning
e seus colegas concluíram que existem poucas dúvidas de que os polvos podem
sentir dor e, portanto, são sencientes. Eles atendem a todos os critérios com
confiança alta ou muito alta, exceto um com confiança média.
Eles tiveram a avaliação
mais alta de todas as criaturas estudadas - mais até que as suas primas sépias,
que são consideradas mais inteligentes. Mas Browning observa que outros
cefalópodes, além dos polvos, receberam muito menos pesquisas, o que afeta suas
avaliações.
O relatório foi usado como
evidência para servir de informação para uma alteração da Lei do Bem-Estar
(Senciência) Animal do Reino Unido, reconhecendo que os moluscos cefalópodes e
os crustáceos decápodes são sencientes.
"Acho que é algo bom o
fato de que, no Reino Unido, os polvos e também os crustáceos estejam
conseguindo um novo tipo de reconhecimento de direitos animais", afirma
Godfrey-Smith.
A capacidade de sentir dor é
apenas uma das muitas facetas da consciência. Existe também a capacidade de
sentir prazer, de sentir interesse ou desinteresse, de experimentar companhia e
muitas mais. Com novas pesquisas, os cientistas podem ser capazes de idealizar
escalas similares para medir outros aspectos diferentes da consciência dos
animais.
Curiosos e criativos
Existe também uma segunda
linha de evidências, além das correlações com as experiências humanas. Trata-se
da análise do papel biológico da consciência e por que ela evoluiu. "É
algo que as pessoas estão apenas começando a questionar", segundo
Browning.
Uma possibilidade é que a
consciência tenha evoluído lado a lado com os comportamentos, como os tipos
complexos de aprendizado, tomada de decisões e compensações motivacionais.
Você se arrisca a sair do
seu abrigo para pegar uma refeição, mesmo depois de ter visto um predador nas
redondezas? São situações complexas como esta que podem gerar a sensação de
experiência.
"Existem algumas coisas
que as pessoas pensam, pelo menos entre os seres humanos, que não é possível
fazer inconscientemente", explica Godfrey-Smith. "Elas incluem a
reação inteligente à novidade."
Às vezes, quando encontram
uma novidade, como uma alavanca no seu tanque, os polvos reagem com uma
criatividade toda própria. E, para os estudiosos, essa originalidade pode ser
um pouco frustrante.
Em um experimento em 1959, o
psicólogo norte-americano Peter Dews treinou três polvos - que ele batizou de
Albert, Bertram e Charles - a empurrar uma alavanca no seu tanque para acender
uma lâmpada e liberar um pequeno pedaço de peixe.
Albert e Bertram aprenderam
a fazer isso sem muita dificuldade. Mas Charles foi mais além.
Dews relatou que
"Charles fixou diversos tentáculos ao lado do tanque, outros em volta da
alavanca e aplicou bastante força. A alavanca dobrou diversas vezes e, no 11º
dia, ela se rompeu, levando ao término prematuro do experimento."
Além de ser
"particularmente festeiro", nas palavras de Godfrey-Smith (Charles
tinha o hábito de espirrar jatos de água em todas as pessoas que se
aproximassem do seu tanque), o polvo demonstrou notável interesse pela lâmpada.
Albert e Bertram praticamente a ignoraram, mas Charles rodeou a luz com seus
tentáculos e a carregou para o seu tanque.
Para Godfrey-Smith, esses
exemplos de curiosidade e atenção são reveladores. "Algumas das principais
teorias sobre o que é a consciência nos animais aceitam que uma espécie de
orientação atenta aos objetos não é o tipo de coisa que pode ocorrer inconscientemente
para nós ou, aparentemente, para outros animais", ele conta. "Por
isso, é um sinal altamente sugestivo de experiência."
Mas, se o polvo realmente
for senciente, ainda permanece a questão mais importante: como é ser um polvo?
Parte da razão da dificuldade
da resposta é que a ciência não fornece resultados que sejam úteis para
determinar experiências subjetivas, segundo Marta Halina, professora do
Departamento de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge,
no Reino Unido.
"Como é ser um
organismo do ponto de vista daquele organismo em primeira pessoa - nós não
temos acesso a isso", afirma Halina. "A ciência assume o ponto de
vista de terceira pessoa sobre os sintomas - e aqui reside o problema."
Este salto do objetivo para
o subjetivo ficou conhecido como "o problema difícil da consciência".
O problema difícil da
consciência
Segundo o filósofo
australiano David Chalmers, a questão é: como os processos físicos no cérebro
causam as experiências subjetivas da mente?
Apesar de décadas de
pesquisas neurocientíficas sobre fenômenos como o sono, vigília, percepção e
solução de problemas, o problema difícil da consciência persiste.
Chalmers argumenta que é
concebível podermos compreender os fundamentos neurocientíficos de uma ampla
variedade de comportamentos humanos sem a necessidade de invocar uma
experiência subjetiva do mundo, em primeira pessoa, para que faça sentido.
Chalmers acredita que o
problema, em última análise, é uma questão para os cientistas responderem - se
é que os nossos métodos científicos atuais são apropriados para encontrar essa
resposta.
Consciência exótica
O problema difícil da
consciência pode ainda não ter solução clara, mas existem uma ou duas formas
práticas de contorná-lo.
Uma delas é observar as
"correlações comportamentais" ou "correlações neurológicas"
da consciência - em outras palavras, comportamentos e sistemas neurais que
suspeitamos terem relação próxima com os estados conscientes.
"Podemos usá-los como
marcadores da consciência", afirma Halina. É o que fizeram Browning e seus
colegas da LSE, usando marcadores como a presença de nociceptores.
Mas existe o risco de
afundarmos na nossa perspectiva humana.
"Temos mais certeza
sobre a consciência humana e, com muita frequência, as correlações neurológicas
e comportamentais nas quais nos baseamos têm seus fundamentos no caso
humano", segundo Halina. "Quanto mais nos afastamos dos seres humanos
em termos de estrutura, comportamento e função, menos certeza temos de que
estamos realmente rastreando a consciência."
Se observarmos um organismo
como a mosca das frutas e procurarmos um sistema neural parecido com o dos
humanos para sentir e reagir às dores, sem encontrar, isso não elimina a
possibilidade de que a mosca das frutas consiga sentir dor. "Significa
simplesmente que elas podem sentir de forma um pouco diferente", explica
Halina.
É por isso que o polvo é um
caso tão interessante. Ele pode ser considerado uma forma de "consciência
exótica", ou um exemplo de consciência muito diferente da nossa, como
descreve Halina em um ensaio sobre o tema.
Os polvos são tão diferentes
de nós que precisamos questionar muitas das nossas concepções sobre eles - e
até as nossas concepções sobre nós mesmos.
"Quando questionamos se
os polvos são conscientes como nós, podemos estar formulando uma pergunta que
não faz muito sentido, porque não sabemos totalmente como é ser
consciente", afirma Halina.
Ela usa o exemplo de uma técnica
tomada emprestada da pesquisadora da consciência Susan Blackmore. A tarefa
proposta pela pesquisadora britânica é perguntar a si mesmo "estou
consciente agora?" ao longo de todo o dia, sempre que for possível -
quando estiver a ponto de dormir, durante o café da manhã, em meio a uma
conversa.
"Você descobre que não
tem tanta confiança sobre o que é a consciência em todos os momentos",
segundo Halina.
Além de aprender mais sobre
a consciência do polvo para o próprio bem-estar da sua espécie em vista da
criação comercial em fazendas, suas mentes também podem nos dizer algo sobre
nós mesmos.
"É importante ponderar
como é ser um polvo porque pode nos levar a reavaliar como é ser humano",
afirma Halina. "E talvez refletir sobre como sabemos tão pouco sobre o que
é ser humano possa nos abrir mais para saber como é ser um polvo."
BBC Future Planet, Martha Henriques
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