Um “anjo”, essa é a palavra que descendentes de judeus alemães no Brasil mais usam para definir Aracy de Carvalho.
Filha
de mãe alemã e pai brasileiro, após se separar do primeiro marido, a mulher foi
para a Alemanha com seu filho, Eduardo Carvalho, para recomeçar a vida. Lá,
conseguiu um emprego no Consulado Brasileiro em Hamburgo, Alemanha, e, durante
a Segunda Guerra Mundial, de maneira ilegal, passou a emitir passaportes para
ajudar judeus a imigrarem para o Brasil. Além disso, Aracy viria a ser esposa do
escritor João Guimarães Rosa, na época, cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo. A
partir de segunda-feira, pela primeira vez, essa história real será contada na
TV em uma minissérie da Globo em parceria com a Sony. “Passaporte para
liberdade” terá distribuição mundial.
—
Todo passaporte de uma pessoa de origem judaica tinha um J, para que não
tivesse direito de sair do país. A Aracy “sumia” com essa letra, daí o
passaporte passava a ser como o de um alemão que estivesse indo fazer uma
viagem. Ela é considerada o anjo da família porque nenhum de nós existiríamos
sem ela. Então, só podemos agradecer a ela pela coragem que teve — diz Arnaldo
Franken, filho de Karl Franken, um dos judeus salvos por Aracy.
Para
dar vida a essa mulher, Sophie Charlotte assumiu o desafio. Ela conta que
quando soube que essa história estava sendo produzida, passou uma noite em
claro, decidiu ter "cara de pau" bater na porta de Jayme Monjardim,
diretor artístico da minissérie, e dizer que precisava desse papel. Sophie, nasceu
e viveu até os oito anos de idade em Hamburgo, cidade onde se passa a história
de Aracy.
—
Eu me senti atraída porque não é sempre que a gente encontra uma história
feminina com essa potência. Além disso, tinha a possibilidade de falar sobre um
tempo histórico de uma perspectiva brasileira, e de fazer uma ponte com a
história da minha família. Minha infância, os costumes culinários, na minha
casa a gente falava alemão até eu me mudar e começar a trabalhar. Essa
influência é muito marcante para mim — explica Sophie.
Para
a atriz é uma responsabilidade dar vida a essa figura que foi fundamental para
centenas de famílias. Aracy tem uma bisneta, Sofia, e Sophie pretende
procurá-la:
—
Eu fico emocionada só de pensar nisso. Foi uma honra viver Aracy, imagino que
tenha sido uma mulher que agiu pelo coração e pela humanidade, se arriscou
pelas pessoas porque acreditava que era o certo a ser feito e isso é muito
poderoso.
Apesar
de ser casada com uma figura pública, Aracy de Carvalho nunca quis os
holofotes. Mesmo tendo morrido com 103 anos de idade, nunca falou muito sobre
seus feitos na Alemanha. Foi o filho, Eduardo Carvalho, o neto e a bisneta que
entraram em contato com Jayme Monjardim e compartilharam documentos, fotos e
tudo o que sabiam.
—
Demorou quase um ano para eu entrar em contato e quando eles me contaram, eu
fiquei encantado. É uma grande história de amor ao próximo. Eu acho que esse
amor ao próximo de Aracy e esse amor pelo Guimarães Rosa que nasce entre os
dois, trazem uma leveza no meio de tanta loucura. Todo mundo já viu produções
sobre holocausto, mas acho q temos a proposta de alertar as pessoas de que
existem pessoas muito boas ao nosso lado e a gente não percebe — diz Monjardim.
Rodrigo
Lombardi, que interpreta Guimarães Rosa, teve o cuidado de se ater aos fatos
que tinham para construir o personagem e de dar protagonismo a Aracy.
—
A responsabilidade de interpretar um dos maiores escritores do Brasil é enorme.
Mas, à época, ele ainda não era conhecido. Temos poucos registros. Me baseei em
suas atitudes e criei um João que amparasse Aracy. Essa era sua função na
trama. “Passaporte para Liberdade” é sobre uma mulher forte, que se doou,
privando-se dos prazeres pessoais em prol da humanidade — explica o ator.
No
meio do processo de produção e gravação que durou três anos, o filho de Aracy
acabou falecendo. O autor da obra, Mário Teixeira, compartilha uma história que
pode ouvir da boca dele e se sente privilegiado por ter sido chamado para
eternizar a história dessas famílias.
—
Ele é um personagem da série, na época com oito anos de idade. Eu reproduzi uma
cena que ele me contou com as próprias palavras: ele chegou a apertar a mão de
Hitler, que percebeu que ele não era alemão e o questionou. Ele contou que era
brasileiro, mas a professora logo disse que ele era neto de alemães. Hitler deu
um tapinha na cabeça dele e continuou sua ronda — conta Mário.
Ao
longo dos episódios, serão mostrados depoimentos de familiares de pessoas
salvas por Aracy. Esta é a primeira vez que a história chega à TV, mas o livro
“Justa: Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus : trocando a Alemanha nazista
pelo Brasil”, de Mônica Schpun, já reunía esses depoimentos e contavam a
história dessa corajosa mulher através deles.
—
Me senti uma brasileira tentando agradecer, através de Jayme Monjardim e sua
equipe maravilhosa, o que a gente não conhece do nosso Brasil. Nunca foi dado o
devido valor a essa mulher. Eu só estou viva porque a Aracy salvou o meu avô.
Essa grande mulher lhe deu a chance de recomeçar de novo — conta Mônica, que
participa dos depoimentos na minissérie e é neta do alemão Albert Feis.
“Passaporte para liberdade” teve parte filmada
em Buenos Aires, Argentina, e, por ser uma parceria com a Sony e, portanto,
internacional, contou com um elenco de vários países e foi gravada em inglês.
Além de Sophie Charlotte e Rodrigo Lombardi, estão no elenco nomes como,
Tarcísio Filho, Gabriela Petry, os alemães Peter Ketnath e Stefan Winert e a
atriz israelense Sivan Mast. A minissérie tem criação de Mário Teixeira, foi
escrita por ele em parceria com a inglesa Rachel Anthony. A direção é de Seani
Soares.
Mariana Teixeira, O Globo
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