A falta de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) foi um ponto de grande
preocupação ao longo da vacinação contra Covid-19 neste 2021. Sem a tal
matéria-prima das vacinas, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto
Butantan, tiveram que esperar a normalização das entregas para continuar
trabalhando, mesmo com as linhas de produção prontas para finalizar as doses e
uma população sedenta por receber as agulhadas.
A
pausa na distribuição, embora motivada pela pandemia, é também fruto de um
problema crônico no país: a produção irrisória desse tipo de insumo. Esse
apagão produtivo, além de nos colocar em desvantagem ao longo da pandemia, é um
elemento que praticamente impede o avanço de pesquisas de novos medicamentos e
vacinas capitaneadas por universidades brasileiras. Cientistas dessas
instituições contam que não têm apoio para, por exemplo, lançar estudos
clínicos — aqueles que têm a participação de humanos. Normalmente, quem faz
essa parte são as farmacêuticas, dado o elevado custo e rigor técnico para o
monitoramento.
De
acordo com estimativa da Associação Brasileira da Indústria de Insumos
Farmacêuticos (Abiquifi), somente 5% dos fármacos (o que inclui diversos tipos
de medicamentos e vacinas) utilizados no país têm produção interna. O resto é
importado. O presidente da Abiquifi, Norberto Prestes, explica que esse cenário
é fruto da forte concorrência de preços internacionais. Cobrando menos, países
como a China surfam na demanda brasileira com maior facilidade do que as
iniciativas locais.
—
Isso afeta de diversas maneiras. Há poucas pessoas que têm o conhecimento ‘mão
na massa’ de produção industrial de produtos biotecnológicos no Brasil. Quando
precisamos discutir com profissionais (locais) sobre como poderíamos evoluir
com projeto de imunizante ou técnicas de produção em larga escala, não
conseguimos — diz o professor Breno Castello Branco Beirão, do Departamento de
Patologia Básica da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde há o
desenvolvimento de uma vacina para Covid-19.
Para
superar a falta de parceria com farmacêuticas, a universidade prepara um
laboratório específico para ser usado em estudos clínicos de novos fármacos.
—
Se você falar da parte de pesquisa e desenvolvimento, no Brasil, é uma situação
dramática. Das milhares de vacinas, medicamentos, fármacos, anticorpos
monoclonais, o que foi desenvolvido no Brasil é mínimo. No caso das vacinas,
isso ficou muito gritante ao longo da pandemia, a população percebeu que existe
uma diferença entre envasar a vacina e colocar o rótulo ou realmente
desenvolver a tecnologia — diz Luís Carlos de Souza Ferreira, Instituto de
Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).
Raros pedidos
Em
entrevista ao GLOBO, a diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), Meiruze Sousa Freitas, explicou que embora o Brasil seja um destino
desejado pelas farmacêuticas para desenvolvimento do estudos de fase 2 e 3 de
fármacos, há uma barreira grande quando o assunto é a chegada de produtos
desenvolvidos aqui nesses mesmas fases. São raros pedidos de registro — como é
chamada a autorização dada pela agência — de medicamentos que foram gerados em
pesquisas nacionais.
Meiruze
diz que a importação quase absoluta da matéria-prima não se trata somente de
uma decisão comercial. Abrir mão do investimento em pesquisa e real produção de
medicamentos, explica, nos coloca em posição desfavorável, em aspectos como o
controle de doenças endêmicas que causam forte abalo ao sistema de saúde no
Brasil. Ela também questiona por que os grandes laboratórios não estão de mãos
dadas com as universidades brasileiras que desbravam o desenvolvimento de uma
vacina para Covid-19 atualmente.
—
Estamos extremamente dependentes de insumos estratégicos de fora do Brasil. Em
um primeiro momento, isso se torna uma vantagem, mas lá na frente se torna um
prejuízo econômico e social muito grande. Primeiro porque perdemos investimento
em pesquisa, em conhecimento e domínio de tecnologia. E passamos a sofrer a
regra do mercado. O que vale é a procura e, quando o insumo passa a ser
necessário, o ‘dono da bola’ coloca o preço que ele quiser— afirma.
Mesmo
as instituições de referência, a produção de IFA não é totalmente inserida.
Tome-se por exemplo o Instituto Butantan, instituição de referência no
desenvolvimento de imunizantes e importante fornecedor do Programa Nacional de
Imunizações (PNI). Em toda a produção, de janeiro a agosto deste ano, foram por
volta de 191 milhões de doses para sete tipos de vacina — nem uma aplicação
sequer foi produzida com o IFA nacional. Já na Fiocruz, igualmente importante
ao PNI, o cenário é um pouco diferente: cinco tipos de vacina que têm produção
de matéria-prima no Brasil. Outras três são importadas.
Jornada até aqui
Nem
sempre, porém, foi assim. Nos anos 1980, estima a Abiquifi, o Brasil chegou a
produzir 50% do IFA dos fármacos que eram consumidos no Brasil. O cenário
começou a ganhar outros contornos em meados de 1990, com a queda de proteções
tarifárias à importação de produtos. De acordo com a professora do Instituto de
Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Julia Paranhos, a
indústria farmacêutica e farmoquímica — a responsável pela matéria-prima dos
medicmentos — foi duramente atingida justamente por essa mudança.
—
Houve naquela época a entrada de fornecedores chineses e indianos com preços
muito baixos. Isso gerou uma concorrência forte, sem qualquer política que
desse apoio à indústria nacional. No momento dessa abertura, tínhamos a
produção local sendo formada e várias transnacionais no Brasil. Existia um
plano de desenvolvimento da indústria farmoquímica nacional— explica.
Representantes
do setor apontam que para reverter esse cenário é preciso investir, desde já,
em novas fábricas que tenham a expertise de produzir IFA em território
brasileiro. O presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos
Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, por exemplo, defende que o
aumento deve ser uma política de estado, mesmo que tenha um início lento, para
pequenos grupos de medicamentos.
Cabe,
portanto, como exceção a operação do laboratório Cristália, localizado em
Itapira, a 164 quilômetros da capital paulista. Por lá, 60% da fabricação de
IFA dos cerca de 350 medicamentos disponíveis são de produção própria. O que
permite, por exemplo, firmar parceria com centros de estudo nacionais para o
desenvolvimento de novos fármacos.
—
Não produzir o IFA coloca o país em certa posição de fragilidade. Deveríamos
produzir ao menos fármacos básicos. É uma questão de segurança nacional, basta
observar o que aconteceu no país ao longo da pandemia — diz o professor
Spartaco Astolfi Filho, membro do comitê de inovação da Cristália.
Mariana Rosário, O Globo
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