Preocupados com os impactos ambientais da pavimentação da rodovia que corta a região, moradores de uma cidade na fronteira agrícola pressionaram a prefeitura a criar uma unidade de conservação integral sobre 37% do território do município, incluindo as terras mais férteis.
Um
roteiro assim é improvável no Brasil, onde o agronegócio, contrário à criação
de áreas protegidas, domina a política e a economia em estados com forte
desmatamento, como Mato Grosso e Rondônia.
Mas
ocorreu em Roboré, cidade boliviana de 25 mil habitantes na região da
Chiquitânia. Ali nascem rios que deságuam no rio Paraguai, o mais importante do
Pantanal.
A
criação da Reserva Municipal do Valle de Tucavaca ocorreu em 2010, época da
inauguração da rodovia que liga Santa Cruz, principal polo econômico da
Bolívia, a Puerto Suárez, na fronteira com o Brasil. A obra viária acabou com o
isolamento histórico dessa parte do país e aumentou o fluxo migratório e o
interesse pelas terras, incluindo o de grandes fazendeiros brasileiros, que
pressionam pelo desmatamento.
"Há
momentos em que é preciso decidir", afirma o prefeito de Roboré, José
Eduardo Díaz, 45, em entrevista no seu gabinete. "É o único espaço que
temos como pulmão de oxigenação. A criação [da reserva] estava sendo
trabalhada, mas nunca se tornava lei. Em 2010, assumimos essa responsabilidade.
Porque Roboré parou com firmeza, fechou a estrada [em protesto]. Aí se cria e
se respeita."
Díaz,
atualmente no segundo mandato, não consecutivo, foi quem assinou a lei da
reserva. À época, foi a primeira iniciativa desse gênero na Bolívia.
O
tamanho da área protegida surpreende. Com 263 mil hectares, o Valle de Tucavaca
é quase o dobro do Parque Nacional do Pantanal (135,6 mil hectares), a maior
unidade de conservação brasileira da bacia do Alto Paraguai.
O
fato de ser uma grande unidade municipal também chama a atenção. No Brasil, a
soma de todas as unidades de conservação municipais de proteção integral chega
a apenas 135 mil hectares. A maior delas é o Parque Natural de Naviraí (MS),
com 16 mil hectares. Os dados são do ICMBio (Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade).
Atualmente,
Tucavaca conta com um administrador e quatro guardas florestais -equipe maior
do que a do Parque Nacional do Pantanal, que só tem dois técnicos.
Apesar
das dimensões, Tucavaca é apenas a sexta área protegida em extensão da zona
pantaneira e chiquitana. A maior, o Parque Nacional Kaa-Iya del Gran Chaco,
dispõe de 3,4 milhões de hectares.
O
resultado é que, enquanto 46% da bacia do Alto Paraguai na Bolívia estão sob
proteção integral, no Brasil, esse percentual despenca para apenas 2%. Os dados
são do governo boliviano e da ANA (Agência Nacional de Águas), respectivamente.
"Nós
estamos cuidando. As serras são as nascentes de nossas águas. Se, de repente,
nós autorizamos uma mineração, dentro de alguns anos, vamos nos arrepender, não
teremos água para a nossa gente", afirma Díaz.
Para
o gerente de projetos da ONG FAN (Fundação Amigos da Natureza), de Santa Cruz,
Carlos Pinto, 45, a gestão das unidades de conservação com participação local é
o fator crucial para a preservação ambiental. "É muito motivador trabalhar
em Roboré. Conversando com as pessoas daqui, vemos uma identificação com o seu
entorno natural."
Com
a preservação formalizada, a principal atividade em Tucavaca é o turismo. A
pavimentação da rodovia viabilizou a visita dos moradores de Santa Cruz, a 408
km.
O
ponto de entrada é a pequena e bem conservada comunidade de Santiago de
Chiquitos, antiga missão jesuítica. Dali caminha-se até o alto de uma serra, de
onde se avista todo o vale.
Compõem
a paisagem várias formações rochosas à beira do precipício. Outro passeio é um
sítio arqueológico com pinturas rupestres. Santiago também sedia um famoso
festival de música renascentista e barroca, suspenso pela pandemia.
Tucavaca
é uma área importante de preservação do bosque seco chiquitano, uma floresta
estacional decidual (perda de 50% ou mais das folhas no período de estiagem) e
semidecidual (perda de 20% a 50%).
Essa
vegetação ocorre de forma fragmentada na América do Sul, segundo o professor de
biologia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Geraldo Damasceno
Júnior. No Pantanal brasileiro, aparece na morraria do Urucum, em Corumbá (MS),
e no Parque Nacional da Serra da Bodoquena (MS), contestado judicialmente por
fazendeiros.
"No
Brasil, essas florestas são protegidas pela Lei da Mata Atlântica",
afirma. "Mas, em Mato Grosso do Sul, ainda não há entendimento dos órgãos
ambientais no sentido de proibir o desmatamento das florestas
estacionais."
Segundo
o biólogo, a situação mais preocupante é a da morraria do Urucum, perto da
fronteira com a Bolívia. Lá empresas têm obtido autorização para desmatar, para
a exploração de minério de ferro.
"Os
bolivianos são muito mais cuidadosos do que nós. As florestas estacionais
crescem em solos de altíssima fertilidade. Havia muita em Dourados, no sul do
estado, mas a soja entrou pesadíssima e não tem mais quase nada", afirma.
O
histórico de ocupação explica em parte a diferença. No Brasil, a colonização e
a introdução do gado na região do Pantanal tiveram início no século 18 e se
aceleraram no século 20, dizimando povos indígenas e privatizando o território.
Na
Bolívia, o relativo isolamento trouxe menos impactos às populações tradicionais
e à vegetação. O povo chiquitano, o mais numeroso, tem cerca de 90 mil pessoas.
Esse
isolamento, porém, diminuiu bastante nas últimas décadas. Sob o governo Evo
Morales (2006-2019), que concluiu a pavimentação da rodovia, as terras baixas
do leste passaram a receber colonos vindos do altiplano que promovem desmate,
assim como grandes projetos agrícolas de brasileiros e argentinos.
Há
também grandes comunidades meninotas, denominação cristã de maioria russa. Além
disso, mineradoras, principalmente atrás do minério de ferro, chegaram à
região.
O
protesto em Roboré, em 2010, visava impedir a implantação de um assentamento
federal do Inra (Instituto Nacional de Reforma Agrária). Para lideranças
regionais, tratava-se de uma tentativa de mudar a demografia para favorecer o
MAS (Movimento ao Socialismo), do ex-presidente.
A
estrada também alimentou o aumento de queimadas na região, que, como no lado
brasileiro, está no terceiro ano de seca severa. Vários focos costumam surgir
ao longo da via. Em 2019, a Bolívia registrou seus piores incêndios florestais,
uma perda de 6,4 milhões de hectares (um pouco maior do que a Paraíba).
O
departamento (divisão equivalente a estado no Brasil) mais atingido foi Santa
Cruz, onde está a Chiquitânia, com 65% da área queimada. Apesar de vários
incêndios no entorno, Tucavaca escapou quase ilesa.
Neste
ano, com o prolongamento da estiagem, os incêndios voltaram a ocorrer acima da
média. Em agosto e setembro, um esforço entre instituições governamentais e
organizações civis conseguiu novamente preservar Tucavaca. Até 15 de outubro, o
fogo na Bolívia havia consumido 3,4 milhões de hectares. Os dados são da ONG
FAN.
A
pressão sobre o Pantanal e a Chiquitânia deve continuar crescendo com as
oportunidades trazidas pela estrada. Em junho, o presidente Luis Arce, aliado
de Morales, esteve na região e assinou acordo com a empresa chinesa Sinosteel
para a implantação de uma siderúrgica.
O
objetivo é industrializar o minério de ferro, explorado em baixa escala na
serra de El Mutún, bem próximo da fronteira com o Brasil. Trata-se de um
projeto que teve diversas tentativas de implantação desde 1970.
Além
de atender ao mercado nacional, a produção pode ser exportada por meio do rio
Paraguai, a única saída soberana ao mar da Bolívia, que perdeu o litoral para o
Chile na Guerra do Pacífico (1879-1884). Atualmente, uma pequena produção de
minério de ferro é levada ao Uruguai por meio do porto Busch, cujo acesso ainda
é por estrada de terra.
Em
Colonia, o povoado mais próximo de Mutún, o sentimento é de desconfiança,
resultado de décadas de projetos fracassados. Fundado por veteranos da Guerra
do Chaco (1932-1935), disputada com o Paraguai, a comunidade de casas simples e
ruas de terra vive da agricultura e dos poucos empregos abertos pela mineração
incipiente.
"O
presidente veio aqui, e os chineses começaram a trabalhar", diz a
liderança Felizardo Aguayo, 60. "Mas há problemas entre o Ocidente [La
Paz] e o Oriente, isso não deixa avançar. Até há problemas entre nós, a
comunidade está dividida, alguns querem se aproveitar. Mas, se nós nos unirmos,
esse país se levanta."
A
reportagem foi produzida com apoio do Documenta Pantanal.
Fabiano Maisonnave e Ialo
de Almeida, no Yahoo notícias
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