terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
Os demônios da educação
Em 2007, o Brasil acompanhou a tragédia que assolou o Estado do Pará, quando inúmeras pessoas utilizando-se de rituais satânicos, bruxaria e magia negra, seviciaram e assassinaram crianças indefesas. Um episódio terrível, dos mais covardes e abomináveis que a história recente brasileira registra.
No segundo semestre do ano de 1993, Goiás também viveu um episódio semelhante, quando seis pessoas realizaram um ritual satânico com o sangue retirado da estudante Fernanda Militão, assassinada no dia 21 de maio, em Guapó, por Vicente Natal do Nascimento e João Maria Rocha Silva.
A feitiçaria é uma manifestação de origem religiosa e está presente de forma determinante em todas as culturas primitivas. A ignorância e o desconhecimento sobre as pestes, as doenças e os fenômenos da natureza, levaram o homem primitivo a elaborar um imaginário misterioso, onde povoavam demônios e potestades capazes de tudo, inclusive explicar o que a razão desconhecia.
Os hebreus incorporaram os demônios da antiga civilização mesopotâmica e os legaram aos cristãos modernos, para quem o diabo - Satã, Satanás ou Belzebu - e toda a sua corte seriam anjos rebelados contra Javé e expulsos do paraíso.
Na idade média a Igreja Católica chegou a criar um tribunal eclesiástico para julgar os que estigmatizava como hereges. Em 1484 o papa Inocêncio VIII introduziu o suplício e a tortura para extrair dos acusados de bruxaria a confissão que os redimiria. E três anos depois, em 1487, o dominicano Jakob Sprenger publicou Malleus maleficarum - O martelo das feiticeiras -, que se constituiria no abecedário, na cartilha e manual que conduziria a rotina de insanidades dos inquisitores – tudo em nome de Deus.
Uma das características deste tribunal de inquisição eram os processos sumários. Mulheres, crianças e escravos eram estimulados a dele participar como testemunhas de acusação, mas jamais de defesa. A delação, sobretudo de parentes e amigos, ensejava para os acusados benefícios de toda ordem, inclusive o perdão. Às execuções promovidas pelo Santo Ofício em que as vítimas eram queimadas em fogueiras dispostas em praças e logradouros públicos, denominavam-se autos-da-fé.
Em Lisboa, na torre do Tombo estão registrados quase 40 mil processos deste tipo. Antônio José da Silva, o Judeu, nascido no Rio de Janeiro no ano de 1705, e nome dos mais significativos na dramaturgia de língua portuguesa, foi queimado no fogo da santa igreja católica no ano de 1739, em Portugal.
Ao contrário destes casos recentes que tem pontuado a realidade brasileira, grande parte dos processos do Santo Ofício se prestavam à perseguição religiosa – no caso contra os judeus e muçulmanos – e sobretudo à perseguição política.
A reação científica e filosófica contra estas crenças supersticiosas se origina a partir do séc. XVII, se robustece com o Iluminismo e o desenvolvimento da psiquiatria, também com a influência dos racionalistas como Descartes, Voltaire e D`Alembert; e com as idéias que acompanharam a Revolução Industrial.
Atualmente estas práticas remanescem isoladamente e invariavelmente, de tempos em tempos, ocupam as páginas policiais dos jornais, como a mostrar o quanto a modernidade mantém-se vinculada à barbárie de nossos antepassados.
Desde sempre, estas práticas primitivas tiveram como essência o exercício da influência e do poder, seja sobre o Estado, seja sobre o próximo, ou seja ainda sobre os fenômenos da natureza.
Hoje, setores das elites criaram um racionalismo funcional que regula a existência do Estado, e mantém sob controle as válvulas de pressão para que as transformações ocorram na casca e a substância não seja alterada.
Os fenômenos da natureza são – cada vez mais – tratados pela mais fina tecnologia, com a utilização intensiva de satélites, pesquisas efetuadas no espaço sideral, e estudos cosmológicos. Já as relações de dominação sobre o outro, que no passado – de forma predominante – passavam por pactos com o diabo, deitação de cartas, prestidigitação efetuadas por feiticeiros e embusteiros de adivinhações e malefícios, são hoje substituídas ora pela sutileza dos acordos sociais, ora pela mesquinhez, pela ideologia do controle das massas, pela hipocrisia reluzente dos discursos bombásticos, perfeitos na poética, mas desprovidos de conteúdo. E tudo potencializado pela propaganda e pela onipresente televisão.
Nas relações inter-pessoais, diuturnamente nos deparamos com esse tipo de pessoas. As que justificam o Estado mantenedor de privilégios para os poucos iluminados. As que referendam as práticas calcadas na dominação e opressão. As que entoam a cantilena de que os fins justificam os meios. Na escola ou no trabalho lá estão elas, sempre bem falantes, bem sucedidas na vida, com um rosário de vantagens pregressas, ou providenciais “desvantagens” como: “já fui engraxate”; “já vendi picolés e quitandas para sobreviver”, “tive uma infância pobre”, e coisas do gênero. Circundam-nas um mar de mentiras e falsidades. A produção por elas obtida se circunscreve ao superficial e volátil, ao periférico, a nada que guarde semelhança com o estrutural, que sequer tangencia o que de fato importa. Neste ambiente impera a intriga e o perjúrio. A fofoca e a versão tem mais sentido que os fatos. As relações são ancoradas pelo que há de mais fugaz: a vaidade. Neste contexto o outro só existe enquanto escada, instrumento, ou obstáculo a ser suprimido. Esta categoria de pessoas só são visíveis integralmente, sem os invólucros, quando conquistam o poder. Basta presenteá-las com uma porção, ainda que diminuta de poder, e ei-las, desnudas, se mostrando por inteiro, sem as inúmeras máscaras; exalando o cheiro nauseabundo da decomposição. Lobos em peles de cordeiro.
Para conquistar espaço social e poder, alguns ainda acorrem à magia e à feitiçaria dos tempos da barbárie, distúrbios que a civilização dos tempos modernos procura resolver através da psicanálise, da psicopatologia e do conjunto das ciências médicas e sociais.
O universo em que se encerra a sociedade tem uma amostragem no ambiente escolar, acadêmico e do serviço público. As relações de dominação são reproduzidas em menor escala, mas a resultante não se apresenta de menor intensidade. Como tornar harmônicas e produtivas as relações na escola, na academia, nas organizações privadas e estatais se, as que se verificam no universo social são pautadas pela violência e autoritarismo. Este é um senhor desafio.
Na Educação, a relação educador-educando se torna extremamente delicada, haja vista a função exercida pelo professor que o coloca - no mínimo, numa posição destacada e privilegiada.
Já deveria estar longe o tempo do professor senhor da vida e da morte, conhecedor de tudo e de todos, imperador do saber e dos caminhos, olhando de soslaio e com desdém o conhecimento incorporado pelo aluno. Deveria, mas não está. Grandes avanços foram verificados, mas infelizmente estas situações ainda persistem.
Se o bom educador é aquele capaz de se situar ao lado e não acima do educando, como ignorar que o saber do aluno se constitua num dos insumos capazes de levar ambos a um patamar superior, espaço onde deverão interagir todos os diferentes tipos de conhecimento: o produzido pelas sucessivas e interpenetradas fases da vida – infantil, juvenil, adolescente, adulto e senil; o elaborado no espaço comunitário, o construído nas relações familiares, os obtidos na pesquisa empírica, científica, na lida acadêmica, ... Importa perceber que tanto o conhecimento do professor quanto o do aluno são importantes, na exata medida em que um será incapaz de desenvolver sem a presença do outro; que ambos são re-elaborados a cada encontro. É deste ciclo dinâmico, deste choque de saberes e vivências que se nutre o conhecimento transformador, o que substancia o futuro progressista. E não vai aqui nada que se assemelhe ao democratismo, à libertinagem: o professor não pode abrir mão de sua autoridade, mas na exato limite do respeito para com o educando.
Com as devidas adaptações esta realidade se reproduz na instituição pública, conformando a relação dos servidores públicos entre si e destes com os demandantes de serviços, a comunidade.
No Brasil os demônios mais representativos em cultos de origem africana são os Exus e entre os de origem indígena, o Anhangá e o Jurupari. Mas na educação e na gestão pública existem demônios infinitamente mais devastadores: é o professor e o gestor público democratistas, aquele que tece loas à liberdade mas tão somente para escamotear sua verve autoritária; aquele que se faz de bonzinho e popular, mas que se desmascara ante um naco qualquer do poder. Portanto nos lambuzemos da mais absoluta liberdade democrática, do permanente combate aos dogmas e paradigmas, do mais absoluto amor ao outro, e estaremos varrendo da face da terra estes vampiros de nossos sonhos e esperanças.
Antônio Carlos dos Santos criou a metodologia Quasar K+ de Planejamento Estratégico e a tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.