segunda-feira, 22 de maio de 2023

"É hora de a gente começar a escutar os indígenas"

 


Filme luso-brasileiro leva para Cannes a história dos Krahô e a sua luta pela terra. Cineasta Renée Nader Messora ressalta a importância de levar a voz e o idioma de um povo originário ao famoso festival internacional.

Dos mais de 200 anos de contato com o homem branco, os últimos 80 foram os mais intensos para os Krahô, povo indígena que vive no norte do estado do Tocantins. É justamente esse período que é abordado pelo filme A Flor do Buriti, dirigido pela brasileira René Nader Messora e pelo português João Salaviza.

A obra faz sua estreia mundial no Festival de Cannes, evento que ocorre de 16 a 27 de maio. Os diretores esperam repetir o sucesso de 2018, quando Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, também rodado em aldeias dos Krahô, faturou o prêmio especial do júri em Cannes e comoveu o público ao denunciar o genocídio indígena.

"É a segunda vez que a gente viaja para a França com os Krahô, a segunda vez que eles [os participantes do evento] vão escutar um filme apresentado num idioma indígena [a língua timbira, da família Jê]", pontua Messora, em entrevista à DW Brasil. "É a segunda vez que eles vão escutar da boca dos Krahô qual a situação do cerrado brasileiro, o bioma mais devastado do país."


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Como a questão da terra é o centro do filme, a diretora espera que a repercussão internacional tenha impacto na decisão sobre o Marco Temporal — o Supremo Tribunal Federal agendou a retomada do polêmico julgamento para o dia 7 de junho.

A Flor do Buriti foi rodado ao longo de 15 meses em quatro aldeias Krahô diferentes. Por meio dos depoimentos dos indígenas, eles reconstituem as últimas oito décadas — do massacre sofrido pelo povo Krahô em 1940 às dificuldades atuais, passando pelo período da ditadura militar.

DW Brasil: Do massacre dos fazendeiros às discussões acerca do Marco Temporal, sempre é a terra no epicentro. Como você compara esses momentos?

René Nader Messora: É importante a gente perceber que esses processos de roubo, de esbulho de terra, não são nenhuma novidade. O filme tenta trazer um pouco dessa história da relação [dos Krahô] com o território, desde o massacre [de 1940], que a gente considera um marco. Foi depois do massacre que a terra deles foi […] depois demarcada, por causa dos ecos desse massacre. […] O problema sempre passou pela questão da terra.


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Mais tarde, com a ditadura militar, esse problema ganhou uma nova roupagem, mas essencialmente era o mesmo. Mas houve a militarização, a criação de uma guarda rural indígena para reprimir dentro das aldeias, das comunidades e também tinha o intuito de favorecer os grandes fazendeiros da região […]. O Serviço de Proteção aos Índios, que era como era chamada a Funai [hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas] naquele momento praticava livremente o aluguel de terras indígenas para fazendeiros, agricultores, dentro de áreas determinadas para o usufruto indígena. […] A questão indígena e a questão da terra estão intrinsecamente relacionados, não tem como separar.

Essa luta pela terra é a questão mais urgente dos povos originários?

Não é só a questão da terra como território físico, mas a questão do entendimento de território para os povos indígenas. Essa é uma chave que está, com muita luta do movimento indígena, sendo um pouco mais falada hoje. E a gente trouxe [no filme] a fala da Sonia Guajajara [líder indígena, política e atual Ministra dos Povos Indígenas] falando sobre isso justamente porque ela coloca em oposição duas visões de mundo que são ontologicamente opostas: o entendimento de terra dos povos é diametralmente oposto ao entendimento do grande capital.

São dois projetos de mundo antagônicos, que estão em conflito e a Sonia define isso muito bem, de uma maneira muito simples, quando ela fala ‘a terra não nos pertence; nós pertencemos à terra'. Tem uma inversão fundamental aí que a chave: vai muito além do entendimento do território como espaço físico. A gente quis trazer isso para o filme. A Sonia dá essa ideia de que a terra é muito mais do que um pedaço de território habitado por determinado povo.

Isso deve ser discutido agora com a questão do Marco Temporal?

Os povos indígenas vêm batendo nesta tecla faz tempo e a luta contra a tese jurídica do Marco Temporal é a luta que está sendo encampada com a maior força. A continuidade do julgamento foi pautada agora para [o dia 7 de] junho. É um momento muito importante: toda a sociedade civil tem de olhar com muita atenção porque a decisão sobre essa tese vai afetar diretamente muitas terras indígenas no país inteiro e todas as futuras demarcações.

Então não é à toa que o movimento indígena está batendo nesta tecla com muito afinco e a gente precisa ficar atento. Nós, não como cineastas, mas como sociedade civil mesmo e como pessoas que deveríamos estar engajadas numa luta pela terra, pela sobrevivência de nossa espécie no planeta.


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É a segunda vez que vocês têm um filme selecionado para o Festival de Cannes, e novamente com os Krahô. Quais as expectativas?

É a segunda vez que a gente viaja para a França com os Krahô, a segunda vez que eles [os participantes do evento] vão escutar um filme apresentado num idioma indígena [a língua timbira, da família Jê] É a segunda vez que eles vão escutar da boca dos Krahô qual a situação do cerrado brasileiro, o bioma mais devastado do país e um dos mais importantes também porque é o berço das bacias hidrográficas mais importantes do Brasil. E [vão escutar] essas preocupações com a situação do planeta, com o aquecimento global, com a manutenção das florestas em pé, essas máximas que o movimento indígena vem gritando desde sempre e, na verdade, agora está ocupando também as mentes e os corações do mundo inteiro.

E é bom a gente mais uma vez constatar que os indígenas tinham razão. Porque eles vêm falando isso desde sempre. Finalmente agora estão encontrando eco em todas as camadas da sociedade. Isso pode ser visto como um sinal de que a gente está caminhando para um lugar onde seja possível a gente continuar existindo como comunidade neste planeta. Citando o grande [líder indígena, ambientalista e escritor] Ailton Krenak, os indígenas viveram o fim do mundo há muito tempo [quando os colonizadores europeus chegaram à América]. Então, se tem alguém que pode ensinar alguma coisa para a gente sobre como resistir ao fim dos tempos, são eles. É hora da gente começar a escutar, né?

DW