Carlo Rovelli em outubro de 2020, durante apresentação na Universidade de Bolonha, na Itália |
"(...) o propósito da vida é abordar com uma canção qualquer coisa que encontrarmos pela frente. (...)"
"O tempo não existe. E eu tenho 15 minutos para
convencê-los disso", diz Carlo Rovelli, após olhar seu relógio de pulso.
Assim começa uma palestra TEDx feita em 2012 pelo
físico italiano, que não costuma aparecer na imprensa internacional.
Uma das vezes em que ele ganhou destaque foi na
revista britânica New Statesman, numa reportagem assinada por George Eaton
intitulada "O físico rockstar Carlo Rovelli explica porque o tempo é uma
ilusão", em tradução livre.
"A determinação de Rovelli em tornar a física
quântica acessível e suas prodigiosas vendas de livros o levaram a ser chamado
de 'o novo Stephen Hawking'", destaca o artigo.
Em 2020, no evento "The Nature of Time" (A
Natureza do Tempo), organizado pela revista New Scientist, o físico teórico
pegou uma corda e a esticou de uma ponta a outra do palco. E pendurou uma
caneta no meio da corda para marcar o presente.
Rovelli
disse: "É aqui que estamos."
Ele então ergueu o braço direito e apontou para a
direita: "Esse é o futuro." Na sequência, apontou para a esquerda:
"E esse é o passado."
"Esse é o tempo do nosso dia a dia: uma longa
fila, uma sequência de momentos que podemos ordenar, que tem uma direção
preferida, que podemos medir com relógios", disse. "E todos nós
concordamos com os intervalos de tempo entre dois momentos diferentes ao longo
do caminho, ao longo desta linha."
Depois acrescentou: "Quase tudo o que eu disse
está errado. Em termos factuais, isso está incorreto. É como se eu dissesse que
a Terra é plana".
"O tempo não funciona assim, ele o faz de uma
maneira diferente", emendou.
E esclareceu: "Essas não são ideias especulativas
que aparecem em sonhos estranhos de físicos. São fatos que medimos em
laboratório, com instrumentos, e que podem ser verificados".
'Pura
rebelião'
Nascido em Verona, na Itália, em 1956, Rovelli
confessa que sua adolescência foi "pura rebelião". O mundo em que ele
vivia era diferente do que considerava "justo e belo" e, em meio a
essa decepção, a ciência veio ao seu encontro.
No mundo acadêmico, o jovem pesquisador descobriu
"um espaço de liberdade ilimitada", que ele relembra em um de seus
livros.
"No momento em que meu sonho de construir um novo
mundo colidiu com a realidade, me apaixonei pela ciência, que contém um número
infinito de novos mundos", descreve.
"Enquanto eu escrevia um livro com meus amigos
sobre a revolução estudantil (um livro que a polícia não gostou e me custou uma
surra na delegacia de Verona: 'Diga-nos os nomes de seus amigos comunistas!),
mergulhei cada vez mais no estudo do espaço e do tempo, tentando entender os
cenários que haviam sido propostos até então."
Gravidade
quântica
Rovelli decidiu dedicar sua vida ao desafio de
conciliar duas teorias: a mecânica quântica (que descreve o mundo microscópico)
e a relatividade geral de Albert Einstein.
"Para chegar a uma nova teoria, devemos construir
um esquema mental que não tenha a ver com nossa concepção usual de espaço e
tempo", diz. "Você tem que pensar em um mundo em que o tempo não é
mais uma variável contínua, mas uma outra coisa."
Ao buscar possíveis soluções para o problema da
gravidade quântica, Rovelli foi um dos fundadores da teoria da gravidade
quântica em loop, também conhecida como teoria do loop, que apresenta uma
estrutura fina e granular do espaço.
Essa teoria tem aplicações em diferentes campos - por
exemplo, o estudo do Big Bang ou as formas de abordar e entender os buracos
negros.
O físico italiano tem uma carreira brilhante, que
inclui inúmeros prêmios e livros. Uma dessas publicações, "Sete Breves
Lições de Física" (Editora Objetiva), foi traduzida para 41 idiomas e
vendeu mais de 1 milhão de cópias.
Ele também foi professor na Itália, nos Estados
Unidos, no Reino Unido e atualmente é pesquisador do Centro de Física Teórica
de Marselha, na França.
Rovelli respondeu por escrito a algumas perguntas da
BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. Confira a seguir os principais trechos
da entrevista.
BBC
Mundo - O que é o tempo? Ele realmente existe?
Carlo Rovelli - Sim, claro que o tempo existe. Do
contrário, o que é que sempre nos falta? Mas a ideia comum que temos sobre o
que é o tempo e como ele funciona não serve para entendermos átomos e galáxias.
Nossa concepção usual de tempo funciona apenas em nossa escala e quando vamos
medir as coisas com muita precisão.
Se quisermos aprender mais sobre o universo, temos que
mudar a nossa visão do tempo. Porque o que costumamos chamar de
"tempo", sem pensar muito sobre o que isso significa, é realmente um
emaranhado de fenômenos diferentes. O tempo pode parecer simples, mas é
realmente complexo: ele é feito de muitas camadas, algumas das quais são
relevantes apenas para certos fenômenos, e não para outros.
BBC
Mundo - O que o senhor descobriu quando se perguntou: por que só podemos
conhecer o passado e não o futuro?
Rovelli - A razão de termos informações sobre o
passado e não sobre o futuro é estatística. Tem a ver com o fato de não vermos
os detalhes das coisas. Não vemos, por exemplo, as moléculas individuais que
compõem o ar da sala em que estamos. Mas, no mundo microscópico, não há essa
distinção entre o passado e o futuro.
BBC
Mundo - O senhor falou sobre a elasticidade do tempo e sobre um dia em que
"vivenciamos coisas diretamente, como encontrar nossos filhos mais velhos
que nós mesmos no caminho de volta para casa". Como isso pode acontecer?
Rovelli - A pergunta correta é a oposta: por que
quando nos separamos e nos encontramos novamente, o seu e o meu relógio medem o
mesmo intervalo de tempo?
Não há razão para que devam medir esse mesmo tempo. A
experiência nos diz isso apenas porque nossas medições não são precisas o
suficiente. Se fossem, veríamos que o tempo corre em velocidades diferentes
para pessoas diferentes, dependendo de onde estão e como se movem. Portanto, eu
poderia me separar de meus filhos e reencontrá-los em um tempo que significa
apenas um ano para mim, mas 50 anos para eles. Nesse cenário, eu ainda sou
jovem e eles envelheceram. Isso certamente é possível. O motivo pelo qual normalmente
não vivenciamos esse tipo de experiência é apenas que nossa vida na Terra se
move numa velocidade lenta entre nós e, nesse caso, as diferenças de tempo são
pequenas.
BBC
Mundo - Algum dia poderemos viajar ao passado?
Rovelli - Considero extremamente improvável. Viajar
para o futuro, por outro lado, é o que fazemos todos os dias.
BBC
Mundo - O que o senhor quer dizer com isso?
Rovelli - Viajar ao passado é difícil. Mas viajar para
o futuro é muito fácil. Faça o que fizer, você está viajando sempre para o
futuro: o amanhã é o futuro do hoje.
BBC
Mundo - Sabemos que o senhor gosta muito de gatos e prefere não se referir ao
gato de Schrödinger e a discussão se ele está vivo ou morto (ou dormindo). O
senhor poderia explicar por que, segundo esse famoso experimento, o animal pode
estar vivo e morto ao mesmo tempo?
Rovelli - Acho que o gato não está realmente acordado
e dormindo ao mesmo tempo. Considero que, com respeito a si mesmo, o gato está
definitivamente acordado ou dormindo. Mas quando se trata de mim e de você,
pode não haver nem um estado, nem outro. Porque eu acho que as propriedades das
coisas (incluindo os átomos e os gatos) são relativas a outras coisas e só se
tornam reais nas interações com elas. Se não houver interações, não há propriedades.
BBC
Mundo - Como o senhor explicou, a discussão entre os físicos da mecânica
quântica não é apenas sobre o gato estar vivo e morto ao mesmo tempo, mas
também sobre o experimento com dois eventos, A e B, nos quais A vem antes de B,
mas também B vem antes de A. Como isso pode ser possível?
Rovelli - Quando dizemos que um evento A é anterior a
um evento B, o que queremos dizer é que pode haver um sinal indo de A para B.
Por exemplo, sua pergunta é anterior à minha resposta, porque me chega antes
que eu possa respondê-la.
No entanto, às vezes pode acontecer que seja realmente
impossível enviar um sinal de A para B, mas também impossível enviar um sinal
de B para A. Então, nenhum é anterior ao outro.
A razão de não estarmos acostumados com isso é porque
a luz viaja muito rápido, então tendemos a pensar que podemos ver tudo
"instantaneamente". Mas a verdade é que não podemos. Portanto, sempre
existem eventos que não são ordenados de acordo com esse tempo.
BBC
Mundo - O que o senhor quer dizer quando afirma que existem muitas versões
diferentes da realidade, embora todas pareçam iguais em grande escala?
Rovelli - As propriedades de todas as coisas são
relativas a outras coisas. As propriedades do mundo em relação a você não são
necessariamente as mesmas em relação a mim. Normalmente, não vemos essas
diferenças nas propriedades físicas porque os efeitos quânticos são muito
pequenos. Mas, em princípio, podemos ver mundos ligeiramente diferentes.
BBC
Mundo - O senhor disse que temos que reorganizar a forma como pensamos a
realidade. Como podemos fazer isso? O que estamos perdendo se não tentarmos
seguir por esse caminho?
Rovelli - Podemos continuar vivendo nossas vidas
ignorando a física quântica, mas se estamos curiosos sobre como a realidade
funciona, temos que encarar que as coisas são realmente estranhas.
BBC
Mundo - A metáfora que o senhor faz sobre a mecânica quântica e sua interseção
com a filosofia, como se essas duas áreas do conhecimento fossem um casal se
reunindo, se separando, depois voltando e se separando novamente, é fascinante.
A mecânica quântica e a filosofia precisam uma da outra?
Rovelli -Creio que sim. No passado, a física
fundamental também avançou graças à inspiração da filosofia.
Todos os grandes cientistas do passado eram leitores
ávidos de filosofia. Não há razão para que as coisas sejam diferentes hoje.
Na minha opinião, o inverso também é verdadeiro: os
filósofos que ignoram o que aprendemos sobre o mundo com a ciência acabam sendo
superficiais.
BBC
Mundo - Para o senhor, o livro "A Ordem do Tempo" é muito especial
porque "finge ser sobre física, mas secretamente é o meu livro sobre o
significado e a finitude da vida". Qual é o sentido da vida para Carlo
Rovelli?
Rovelli - O sentido da vida para Carlo Rovelli é o que
penso ser o sentido da vida para todos nós: a rica combinação de necessidades,
desejos, aspirações, ambições, ideais, paixões, amor e entusiasmo, que surgem
em várias medidas e em diferentes versões naturalmente de dentro de nós. A vida
é uma explosão de significado.
Alguns projetaram o significado da vida fora de si
mesmos e ficam desapontados ao perceber que havia algo ilusório em esperar que
o significado viesse de fora.
Uma das minhas respostas favoritas a essa pergunta foi
atribuída a um antigo sioux [etnia indígena norte-americana]: o propósito da
vida é abordar com uma canção qualquer coisa que encontrarmos pela frente.
BBC
Mundo - O senhor assinalou que na ciência muitos erros são cometidos quando
fingimos estarmos certos, quando na verdade muitas vezes não temos essa certeza
toda. O novo coronavírus trouxe muitas incertezas para nossas vidas. Como o
senhor lidou com isso?
Rovelli - Eu tenho me esforçado não apenas para
minimizar o risco para mim e para as pessoas que amo, mas também para minimizar
meu próprio papel na disseminação da infecção.
Mas sabendo bem que o risco foi e continua a ser real
e que milhões de pessoas morreram e ainda estão morrendo, tenho em mente que
isso ainda pode acontecer comigo e meus entes queridos.
Essa constatação não deve ser motivo para pânico, mas
também não gosto de esconder a cabeça na areia.
BBC
Mundo - Que reflexões o senhor fez nestes tempos desafiadores para milhões de
pessoas ao redor do mundo?
Rovelli - O que fico pensando é simples: não seria o
momento de a humanidade trabalhar em conjunto, em vez de continuarmos a ficar
uns contra os outros? O Ocidente está construindo novos inimigos: China, Irã,
Rússia...
Não podemos viver de forma respeitosa e colaborativa,
sem a necessidade de subjugar uns aos outros, de prevalecer sobre os outros, de
vencer, em vez de cooperar para o bem comum?
A humanidade está enfrentando uma pandemia, milhões de
mortes, desastres ambientais e ainda não conseguimos aprender a nos vermos como
membros de uma única família, que é o que realmente somos.
A mecânica quântica é a descoberta de que a realidade
é tecida por relacionamentos, mas permanecemos cegos para o fato de que
prosperamos em relação aos outros, não uns contra os outros. Posso ser ingênuo,
mas é isso o que penso todos os dias quando vejo o noticiário.
BBC
Mundo - O senhor disse que gostou de ler "O Amor em Tempos do
Cólera", de Gabriel García Márquez, porque "nestes tempos sombrios, é
bom ler sobre o amor verdadeiro". Você pode nos contar mais sobre o que
gostou no livro?
Rovelli - É um livro cheio de graça e luz. Retrata as
muitas formas de amar e partilhar, com um olhar que sorri diante de toda essa
complexidade.
Uma forma de amor é a lealdade da personagem Fermina
Daza ao marido. Outra é a intimidade e a amizade de Florentino Ariza com
dezenas e dezenas de mulheres. Mas esse amor absoluto entre ele [Ariza] e ela
[Daza] é uma bela forma de amor, que foi venerado e valorizado por décadas, até
que conseguiu florescer de forma maravilhosa quando os dois já estavam mais
velhos.
Por
Margarita Rodríguez, BBC News
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