Aurora foi lobotomizada em 1955 e morreu quatro anos depois |
Dentro do quadro, tudo o que vemos é uma esquina do Largo São Francisco de Paula. Quase nada escapa ao brilho dos postes elétricos — o piso, as árvores e os prédios estão mergulhados num mesmo clarão amarelo, que se irradia rumo às janelas da loja Brasileira, notório estabelecimento da Belle Époque carioca.
"Ali se encontra o que há de bom e elegante em
fazendas de luxo e roupa branca para senhoras e meninas", diz um anúncio
veiculado pela casa no início do século 20. As consumidoras, todavia, não dão
as caras nesta imagem — agora elas dormem, e o centro do Rio de Janeiro
permanece deserto.
Ao fundo, nos deparamos com José Bonifácio, o Patriarca
da Independência. Mas sua estátua, tragada pelas sombras noturnas, parece pequena
diante da figura feminina que o examina. Com as mãos na cabeça e um vestido
negro de mangas vermelhas, ela ostenta um semblante cético — afinal de contas,
nenhuma outra mulher se atreveria a disputar o espaço público naquele horário.
O crepúsculo, então, se abate sobre as ruas da metrópole.
Não sabemos se a tarde chegou ao fim, ou se uma nova manhã se inicia.
Entretanto, o cenário permite que se especule a natureza desta pintura.
Trata-se, possivelmente, de um autorretrato.
A autora, Aurora Cursino dos Santos, foi uma artista
plástica sem reconhecimento de seus pares.
Pintou mais de duzentos quadros e desenvolveu um estilo
próprio, em permanente diálogo com as vanguardas de sua época.
Não conseguiu, porém, se desvencilhar de dois estigmas —
era prostituta e portadora de transtornos psiquiátricos. Toda a sua obra foi
desenvolvida nas dependências de um manicômio, onde recebera diagnósticos de
"psicose paranoide", "personalidade psicopática amoral",
"esquizofrenia parafrênica" e "autismo intenso".
João Fellet tenta entender como brasileiros chegaram ao
grau atual de divisão.
Dezenas dessas pinturas acabam de ser reunidas no livro
Aurora: Memórias e Delírios de uma Mulher da Vida (Editora Veneta), fruto de um
estudo levado a cabo por Silvana Jeha, doutora em História pela PUC-Rio, e Joel
Birman, professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ. A dupla enxerga
na própria pesquisa uma oportunidade de se confrontar um certo imaginário
social.
"As prostitutas sempre foram colocadas na mesma
categoria que os assassinos, traficantes e ladrões", afirma Jeha à BBC
News Brasil.
"Isso faz parte de um problema maior, contra
mulheres que reivindicam a liberdade sobre o próprio corpo. É como se elas
estivessem matando, roubando, ferindo muito gravemente alguma lei humana."
Para Birman, o caso de Aurora sintetiza um martírio
inerente a todo indivíduo violentado pelo sistema judiciário: "São vidas
protocoladas por registros clínicos e policiais, entre outras leituras
supostamente crítico-negativas", diz o psicanalista.
"Nesse sentido, procuramos tirar Aurora do terreno
da infâmia, dando a ela uma luminosidade que explicite os impasses de sua
história, e também os da nossa. É uma personagem muito atual, se considerarmos
a ênfase do discurso bolsonarista e da extrema-direita na questão dos
costumes."
A noite desce
Aurora nasceu em 1896, no município paulista de São José
dos Campos. Filha de um pequeno comerciante, casou-se a contragosto, obrigada
pelo pai.
O matrimônio, porém, duraria menos de 24 horas — no dia
seguinte, a jovem interiorana optou pela separação. Não gostava do marido, e
atribuía ao casamento-relâmpago a origem de todo o seu suplício.
Entre as décadas de 1910 e 1930, se prostituiu nas ruas
de São Paulo e do Rio de Janeiro. Com o dinheiro do trabalho sexual, viajou à
Europa. Só havia estudado até o terceiro ano do primário, mas apreciava
literatura, artes plásticas, música popular e erudita.
Indícios sugerem que, além de pintar, também tocava
piano. Zequinha de Abreu, compositor do choro Tico-Tico no Fubá, dedicou-lhe
uma valsa, intitulada A Noite Desce. Na Lapa, epicentro da vida noturna
fluminense, foi vizinha do transformista Madame Satã e do poeta Manuel
Bandeira.
Sua convivência com figurões nem sempre era tranquila. Em
1919, prestou queixa contra um repórter, a quem fora apresentada por José Eduardo
Macedo Soares, dono do jornal Diário Carioca.
Aurora, não correspondendo às investidas do possível
cliente, teve os cabelos puxados, a blusa arrancada e os lábios mordidos. Salva
por uma amiga, denunciou o agressor numa delegacia, sem saber seu nome.
Um exame de corpo de delito confirmaria o ataque. Macedo
Soares, no entanto, recusou-se a prestar depoimento, e o processo foi
arquivado.
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Vigorava então o Código Penal de 1890, cujo artigo 268 impunha até seis anos de cadeia para quem estuprasse mulheres "honestas" — caso a vítima fosse "mulher pública ou prostituta", a pena não ultrapassava dois anos. Desiludida, Aurora se afastaria progressivamente da boemia.
Em São Paulo, matriculou-se num curso de enfermagem para
atender os soldados que se entrincheiravam na Revolução Constitucionalista de
1932.
Posteriormente, trabalharia como doméstica em diversas
casas, não se fixando em nenhuma delas. Sem dinheiro, migrou para os albergues
noturnos da cidade. Por fim, caiu nos manicômios.
Em 1941, foi internada no Hospital Psiquiátrico de
Perdizes. Três anos depois, adentrou o Complexo Hospitalar do Juquery, a 27
quilômetros da capital paulista.
Ali, frequentaria assiduamente um ateliê improvisado pelo
psiquiatra Osório Cesar, pioneiro da arteterapia no Brasil. Por uma década,
extravasou seus tormentos mais íntimos com pinceladas de tinta a óleo sobre
folhas de papel-cartão.
"O trabalho artístico expandia a capacidade
simbólica dos internados", explica Birman.
"Eram práticas de linguagem que estimulavam a
autoexpressão dos ditos pacientes, de seus conflitos, suas dores. Partia-se do
pressuposto de que a arte havia sido fundamental na construção do espírito
humano e que, portanto, ela seria igualmente importante na reconstrução desse
espírito, em casos de perturbação mental grave."
"Aurora pôde assim desenvolver certas habilidades,
descobrir dentro de si um talento pictórico. E a maneira como trabalhava os
temas da própria vida sinaliza uma radicalidade, um desejo existencial de se
rebelar contra o patriarcado."
Quadros que gritam
O ateliê de Osório Cesar, aberto em 1949, deu origem à
Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, cujas atividades se encerrariam em
1964 — no ano seguinte, o médico paraibano foi exonerado pela ditadura militar.
Osório era militante comunista, e junto a outros
intelectuais de esquerda, como o crítico Mário Pedrosa e a psiquiatra Nise da
Silveira, esteve entre os primeiros autores a investigar as relações entre arte
e loucura.
Para além da rotina terapêutica, suas pesquisas se
desdobravam em livros, artigos e curadorias nos grandes museus.
"Há trabalhos aqui (...) que não só se assemelham às
produções artísticas dos povos primitivos, como também se identificam sobremodo
com a chamada arte de vanguarda", escreveu ele em 1948, a respeito de uma
exposição que organizava no Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
"Temos também quadros que são de impressionante
surrealismo, apresentando as mais sugestivas ideias."
Em 1950, a obra de Aurora foi exibida pela primeira vez —
Osório levara alguns de seus trabalhos para a Exposição Internacional de Arte
Psicopatológica, na França.
Naquele mesmo ano, a escritora modernista Patrícia
Galvão, vulgo Pagu, descreveu no Jornal de Notícias um quadro da prostituta:
"É desenho de artista acidentalmente alienado, ou de alienado
acidentalmente artista, empurrado pela deformação das normas comuns".
São pinturas de cores fortes, marcadas por uma insólita
combinação de texto e imagem. A caligrafia de Aurora é espessa, e suas letras,
geralmente maiúsculas, circundam figuras humanas, esmagando-as com sentenças
verborrágicas.
Em determinado quadro, um frágil rosto feminino chega a
se perder entre frases soltas: "Deus me livre, senhor Jesus";
"Enfermeiras me asfixiaram nas águas e me apunhalaram";
"Derramei sangue muitas vezes", "Caí no chão quase morta, tanto
fazia eu vir da rotunda ou de baixo".
Noutros trabalhos, lembranças pessoais e delírios
persecutórios se misturam a referências do mundo externo — os escritores
Anatole France, Émile Zola e Alexandre Herculano; os compositores Ludwig van
Beethoven e Frédéric Chopin; reis, papas e imperadores europeus; delegados e
políticos brasileiros.
"Não sei muito bem o que é ficção e o que é
realidade no meio disso tudo", afirma a historiadora.
"Mas tanto faz, pois Aurora nos fornece um
testemunho sobre a condição da mulher na primeira metade do século 20. Ela
aborda o feminicídio, a violência de gênero e outras questões que somente agora
têm sido nomeadas. Hoje em dia, existe todo um vocabulário novo para designar
aquilo que a mulher sofre desde sempre."
Menções a São José dos Campos, no entanto, atestam o
caráter autobiográfico dessa obra.
Numa série de pinturas, o município surge em tons
harmônicos e verdejantes, com agricultores trabalhando em meio a casebres e
milharais. Noutros quadros, Aurora se afasta da nostalgia e mergulha em tintas
fúnebres sua terra natal.
"Meu bisavô, pai do papa Corsini, foi esfaqueado três
vezes em um só instante, na frente dos netos e filhos", escreve a artista
numa representação do suposto assassinato.
Outra imagem nos mostra uma charrete que desfila
impunemente pelas ruas da cidade, sob a inscrição: "O rapto de Aurora
Cursino".
Num terceiro quadro, vemos um sujeito de batina preta e
olhos malignos, arrastando uma garota em direção a um poço: "Fui jogada lá
dentro e amarrada pelo padre", diz a legenda.
Para Jeha, tais narrativas sinalizam violências bastante
concretas: "Esse lugar de subalternidade é bem traumático, e está na raiz
de muitas trajetórias femininas em hospícios", observa.
"A mulher sai do lar, apresenta-se ao mundo e
precisa lidar o tempo inteiro com uma mira que é colocada sobre ela. Isso
enlouquece a gente."
Inconsciente coletivo
Boa parte da obra de Aurora é composta por registros
pictóricos de sua vida no manicômio. Em certos quadros, a barbárie institucional
se mescla às antigas memórias de prostituição.
É o caso de uma tela que retrata os interiores do Hotel
Piratininga, no centro de São Paulo. Aurora e Zequinha de Abreu fazem sexo
sobre uma cama suja, enquanto um médico os observa no canto do quarto.
A prostituta é penetrada por fios, que acendem lâmpadas
multicoloridas numa espécie de rádio gigante. O maquinário parece extirpar seus
membros e órgãos internos, com engrenagens específicas para o coração,
estômago, pulmões, fígado, cabeça, pescoço, ventre, seios, pernas e pés.
"O quadro expõe, nos mínimos detalhes, a destruição
de seu corpo pela tecnologia", afirma Birman.
"Durante uma relação amorosa com Zequinha, ela tem a
intimidade aniquilada pelas práticas abomináveis do poder psiquiátrico. Mas essa
mulher não tolerava o abuso, nem como trabalhadora sexual, nem como interna de
um manicômio".
Em 1955, Aurora foi lobotomizada. Ela morreu no dia 30 de
outubro de 1959, aos 63 anos, sem nunca ter deixado o Juquery. Antes que
bisturis lhe mutilassem o cérebro, experimentara outros flagelos — choques
elétricos e injeções medicamentosas, induzindo ao coma e às crises convulsivas.
Semelhantes métodos engatilhavam dores e angústias,
evocadas num quadro em que a prostituta retrata a si mesma com fisionomia aflita.
Seus braços estão rendidos, e agentes de saúde a observam
numa maca: "Eis o que as mais velhas sofrem", anuncia a legenda.
"Cocaína, moléstias venéreas, filhos, tuberculose. Temos que pagar, e
outros não".
Além dela, o sistema manicomial faria outras vítimas.
"As mulheres livres foram largamente varridas para dentro dos
hospícios", explica Jeha. "A obra de Aurora se baseia numa permanente
revolta contra isso, sem nenhuma autocensura. Ela já não tinha mais nada a
perder".
O despudor transparece numa série de quadros sexualmente
explícitos, abordando estupros e orgias com protagonismo das autoridades
masculinas.
Em determinada pintura, a artista chega a retratar sua
própria vulva, rodeada por termos que aludem à geopolítica mediterrânea:
"Itália", "República", "passagem dos portos",
"aristocracia", "príncipe", "presidente".
Pelos cantos, em letras menores, há uma narrativa
obscena, envolvendo certo oficial da Marinha: "Mandaram Eloy Alvim e dois
cafajestes me anestesiar e acabar de rasgar meu ânus e b***** e enfiar em minha
boca (sic)".
O relato talvez possibilite a escrita de uma história das
subjetividades: "Essas pinturas são como diários muito íntimos, cheios de
coisas que não falaríamos a ninguém", defende Jeha.
"Acredito que Aurora seja herdeira de um
inconsciente que remonta ao século 19, quando mulheres supostamente histéricas
foram internadas aos milhares, sob uma experiência coletiva de opressão
modulada pelo cristianismo"..
Um grito anticlerical, perdido em meio aos desatinos
pornográficos da tela, parece confirmar tais impressões: "Fui lá na Itália
sem eu saber para matar o papa", diz a prostituta.
Pintura a óleo mostra um sítio no interior de São Paulo.
Ser mãe
Num misto de denúncia e fervor, Aurora professa o
catolicismo, ao mesmo tempo em que ataca os representantes da Igreja. Ela pede
graças à Virgem Maria e desenha a coroação de Nossa Senhora das Dores, mas não
canoniza dirigentes religiosos — muito pelo contrário. Um de seus quadros mais
impactantes nos mostra justamente um clérigo — com um sorriso no rosto, ele
introduz a mão por debaixo da saia de uma criança, que vomita sangue.
O abuso sexual infantil reaparece numa outra pintura de
tom acusatório — dessa vez, contra a Força Pública do Estado de São Paulo,
atual Polícia Militar. Sobre uma menina de quatro ou cinco anos, recai o
estigma do meretrício materno — indefesa, ela se encontra rodeada por oito
homens, provavelmente soldados, que lhe esfregam o pênis na boca e vagina.
"Mariazinha chora geme forçada no reto por ser filha de Aurora Cursino dos
Santos", diz uma inscrição.
Ela também cita um conhecido verso do poeta Coelho Neto:
"Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração". A melancolia e a
desesperança marcam as representações da prole, com a qual se encontra em
circunstâncias fantasmagóricas.
"Um filho veio ver sua mãe dormindo", anuncia o
retrato de um homem letárgico, com os olhos fixos sobre um abajur. Outra tela
nos mostra um sujeito encostado na proa de um barco, com uma lanterna
iluminando o mar, enquanto veleja na penumbra ao som dos noturnos de Chopin:
"Um filho veio me ver especial por eu Aurora Cursino dos Santos ser sua
mãe (sic)", enfatiza a artista.
Maternidade e calvário parecem indissociáveis — Aurora
retrata a si mesma parindo, abortando, sendo agredida em plena gestação. Os
rebentos, entretanto, sempre lhe escapam — são raptados por juízes, delegados e
tribunais.
Paulo Fraletti, psiquiatra do Juquery, comentaria em
1954: "Diante de nós, certa feita, retratou-se nua, de ventre aberto e
útero grávido e exposto, referindo-se aos nove filhos que teve, um em cada
ano". Na imagem, um menino se abriga no interior de uma bolsa amniótica,
enquanto suga dois canos ligados aos seios maternos, descritos como
"glândulas mamárias de vaca e baronesa egípcia".
O quadro produziu em Jeha um efeito de identificação:
"Lembrei do meu filho", diz. "É uma pintura que fala de carinho,
alimento, moradia, tudo ao mesmo tempo. Nada melhor do que isso para traduzir a
obsessão materna".
A insanidade, lembra a historiadora, é um traço atribuído
à maioria das mulheres: "Quando xingam a gente, quais os termos mais
comuns? P*** e louca. Então, vou ressignificar isso para mim. É uma assunção do
drama, do sentimento, da emoção, de algo que nos é colado com uma carga
extremamente pejorativa. Aurora é uma mulher ancestral. Ela diz respeito a
todas nós".
BBC News
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