Em uma questão da prova de geografia da segunda fase do vestibular da Fuvest (2020), relacionou-se o índice de precipitação média anual do Rio de Janeiro, de Cabo Frio e de Macaé com um fragmento de texto do geógrafo Aziz Ab’Saber. O item b dessa questão trazia: “Qual é a atividade de extração mineral conhecidamente associada à região de Cabo Frio-RJ? Explique como um fenômeno natural que ocorre na região corrobora para a existência dessa atividade”.
Logo, o candidato deveria dissertar sobre a extração
de sal marinho e sobre o fenômeno da ressurgência na bela cidade da Costa do
Sol, a partir do qual as águas mais profundas e frias sobem para a superfície
marítima, diminuindo a precipitação pluviométrica, o que implica menor
evaporação e precipitação, condição fundamental para a concentração do mineral
nas salinas instaladas na região.
Ao testar os conhecimentos do candidato sobre
climatologia e extração de sal marinho, a pergunta se notabiliza pelo uso
distinto do verbo corroborar, “corrobora para a existência dessa atividade”.
Tradição e inovação
Os registros de corroborar na lexicografia portuguesa,
em sua imensa maioria, apontam para um emprego de verbo transitivo direto e
transitivo direto pronominal, o que repele a projeção da preposição para.
Com efeito, tradicionalmente esse verbo costuma
aparecer nos dicionários nos sentidos de “fortalecer” e de “dar força”: i) o
padre francês Raphael Bluteau (1728) diz “corroborar: fortalecer, dar força. É
usado no sentido natural, e moral”; ii) o frei português Domingos Vieira (1873)
apresenta “fortificar, fortalecer, enrijar, dar forças, vigorar. Figuradamente:
Comprovar. (…) Termo jurídico. Confirmar, validar. Corroborar o contrato.
Reforçar, dar nova força. Corroborar um argumento”; iii) o ouro-pretano Silva
Pinto (1832), por sua vez, define-o no enxuto verbete “fortalecer, dar forças”;
iv) já o carioca Moraes (1813), que fundou uma tradição lexicográfica em língua
portuguesa, atesta que corroborar é “fazer forte, fortalecer, enrijar (…) dar
forças”. Dicionários do século XX seguem na mesma toada: v) Caldas Aulete
(1945) registra “fortificar, fortalecer, enrijar (…) (Fig.) Confirmar,
comprovar (…) fortalecer-se, adquirir forças”; vi) Houaiss (2009) traz “dar ou
adquirir força, robustez; tornar(-se) rijo, fortalecer(-se), ratificar,
confirmar (algo); comprovar”.
Todavia, de um primeiro campo semântico tripartite de
aprovação (comprovar, ratificar), assentimento (concordar, confirmar) e
evidenciação (evidenciar, referendar), amplamente abonado pelos dicionários
acima, corroborar passa a ter significado de “contribuir” na questão da Fuvest.
Tal deslizamento semântico segue a lógica de que quem ratifica confirma,
referenda, acaba por contribuir para algo, para o êxito de algum argumento. Com
esse novo significado, a projeção da preposição para – com o significado de
“com intenção, com o intuito de” – é mais do que satisfatória e obrigatória,
pois quem corrobora “contribui para” algo.
Uma jabuticaba linguística
O utilíssimo Corpus do Português, de Mark Davies e Michael
J. Ferreira, apresenta 71 usos de corrobora para na subdivisão Web/Dialects: um
em português angolano, um em português lusitano, um em português moçambicano e
68 em português brasileiro, em um universo de um bilhão de palavras em páginas
da web desses quatro países de língua portuguesa. Observemos os exemplos,
respectivamente para Angola, Portugal e Moçambique:
1) Contudo, corrobora para uma visão hierárquica de
essas distintas formas jurídicas – em a qual o direito (…);
2) O livro Colapso do Jered Diamond corrobora para
dentre outros fatos, indicar que os EUA vão dar cabo à façanha de contaminar
toda sua água através da ganância da exploração deste minério;
3) A existência desse dispositivo legal, a meu ver,
corrobora para o fortalecimento de uma cultura de transparência e de um
controle social da administração pública.
A divisão Now (News on the Web) traz 53 registros de
corrobora para, todos de português brasileiro, no total de 1,1 bilhão de
palavras, dos quatro países citados, no período 2012-2019.
Já a subdivisão Historical/Genres não apresenta
ocorrência de corrobora para, em um conjunto de 45 milhões de palavras.
A hipertrofia de um sentido
Por algum motivo, corroborar para no sentido de
“contribuir para” caiu no gosto dos brasileiros e parece já não incomodar os
ouvidos dos falantes cultos, tanto que um dos maiores vestibulares do país
empregou a construção sem problemas. Como o sentido do verbo foi alterado pelos
falantes brasileiros, é natural que sua morfossintaxe apresente reflexos dessa
alteração, com a inserção da preposição para.
Exemplos dessa ordem mostram que os usuários estão a
todo momento processando o idioma, negociando sentidos, como bem aponta o
linguista Paul Hopper, com a noção de gramática emergente, que capta o caráter
fluido da estrutura da língua, sempre adiada, sempre negociável na interação
real. E é essa interação, esse uso, que constrói os novos significados.
Marcelo Módolo e Antonio Carlos Silva
de Carvalho, Jornal da USP
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