Quando camarão-pistola estala suas garras, pode criar o som mais alto produzido por qualquer criatura da Terra — Foto: BBC/GETTY IMAGES |
Os sonares militares podem causar efeitos sérios sobre algumas criaturas do oceano. Será que os ruídos naturais produzidos pelos animais marinhos poderão ser utilizados para localizar ameaças subaquáticas?
Esqueletos de baleias repousam ao longo do litoral de Fuerteventura, nas ilhas Canárias (Espanha), como um lembrete brutal dos efeitos prejudiciais dos sonares militares. Acredita-se que o sonar dos navios e submarinos seja um dos fatores que contribuem para o encalhe das baleias, confundindo o próprio sonar dos animais e fazendo com que elas se dirijam às praias.
Mas essa tecnologia
prejudicial para as baleias pode ter um concorrente em breve.
Lori Adornato, gerente de
projetos da agência de pesquisa militar americana Darpa, acredita que poderemos
detectar submarinos se prestarmos mais atenção aos sons naturais, em vez de
permanecer disparando pulsos de sonar.
"Atualmente, tratamos
todos esses sons naturais como ruído de fundo ou interferência, e estamos
tentando mudar isso", diz Adornato. "Por que não fazer uso desses
sons e ver se conseguimos encontrar um sinal?"
Seu projeto, batizado de
Sensores Aquáticos Vivos Persistentes (Pals, na sigla em inglês),
"escuta" animais marinhos como uma forma de detectar ameaças
subaquáticas.
As boias de sonar atuais,
lançadas do ar — desenvolvidas pelos militares para detectar atividade
subaquática dos inimigos — funcionam apenas por algumas horas em uma área
pequena, devido à vida limitada da bateria. Já o sistema Pals poderá cobrir uma
região ampla por meses.
Ele poderá fornecer
monitoramento quase constante das linhas costeiras e dos canais subaquáticos.
Adornato afirma que as espécies que habitam recifes e permanecem sem sair do
lugar de forma confiável provavelmente serão as melhores sentinelas. "Você
precisa ter certeza de que o seu organismo estará sempre ali", afirma a
especialista.
O projeto Pals está
financiando diversas equipes para investigar diferentes linhas de pesquisa,
utilizando espécies muito diferentes que vivem nos recifes.
Garoupa-preta
Laurent Cherubin, da
Universidade Atlântica da Flórida, nos Estados Unidos, coordena uma equipe que
pesquisa a garoupa-preta, um peixe comum nas águas americanas, que pode pesar
até 300 kg e é conhecido por emitir sons altos.
"É um som alto, porém
em baixa frequência", explica Cherubin. "As garoupas-pretas são
territoriais e costumam emitir esses sons quando flagram um intruso em seu
território."
Os sons produzidos por esse
peixe podem ser detectados a 800 metros de distância, mas nem sempre o objetivo
é afastar intrusos e predadores. As garoupas-pretas também emitem sons para
acasalar, delimitar território e outros fins, que ainda permanecem um mistério.
A equipe está agora focada
nos chamados de alerta, algo como tentar ouvir o latido de um cão de guarda
contra intrusos, segundo Cherubin. Diferenciar esses chamados dos demais não é
fácil e, por isso, a equipe criou algoritmos de aprendizado de máquina para
essa tarefa. Foram necessárias milhares de gravações até que os algoritmos
conseguissem distinguir e classificar diferentes chamados das garoupas.
O algoritmo pode ser então
transformado em software, que é conduzido em um processador pequeno, mas
poderoso, instalado em um microfone subaquático, ou hidrofone. Um conjunto de
hidrofones pode cobrir um recife, ouvindo chamados das garoupas e
acompanhando-as, à medida que a causa para os chamados se move de um território
de garoupas para outro.
Camarão-pistola
Analisar as conversas entre
os peixes pode parecer bizarro, mas o trabalho do projeto Pals no provedor de sistemas
de defesa Raytheon é muito mais parecido com o sonar antissubmarinos
tradicional — na verdade, com uma diferença importante.
"Estamos tentando
detectar os ecos criados quando os ruídos dos camarões são refletidos pelos
veículos", afirma a cientista Alison Laferriere, da Raytheon. "É
bastante parecido com um sistema de sonar tradicional que detecta ecos do som
gerado pela sua fonte."
Em outras palavras, o
sistema funciona como outro sonar normal, mas utiliza ruídos produzidos por
camarões, em vez dos artificiais.
O camarão-pistola, também
chamado de camarão-estalo, é conhecido por emitir o som mais alto produzido por
qualquer criatura viva na Terra — 210 decibéis (a título de comparação, a
decolagem de um avião a jato gera 120 decibéis).
Esse invertebrado produz seu
estalo característico fechando suas pinças com tanta rapidez que gera energia
sônica suficiente para atordoar a presa.
O camarão-pistola também se
comunica entre si. Um grupo de camarões-pistola emite um rugido constante que
Laferriere compara com o barulho de fritar bacon.
"O sinal criado por um
camarão-pistola possui duração muito curta e amplitude incrivelmente
ampla", afirma Laferriere. "Um único estalo é muito mais silencioso
que uma fonte de sonar tradicional, mas pode haver milhares de estalos sendo disparados
por minuto."
Laferriere explica que o som
varia com a hora do dia e a temperatura da água, mas uma colônia de camarões
nunca fica em silêncio.
"Um dos maiores
desafios que enfrentamos é lidar com a enorme quantidade de ruído criada pelos
camarões-pistola e os reflexos de todos esses sons para fora da área
circunvizinha", afirma Laferriere.
Interpretar esses reflexos é
um grande desafio, pois, ao contrário do sonar tradicional, a localização da
fonte do som é desconhecida. Novamente, a solução é usar o software moderno.
A equipe de Laferriere
desenvolveu algoritmos inteligentes para analisar o som e selecionar um único
estalo, calculando em primeiro lugar a localização do camarão e depois o
trajeto percorrido pelo som refletido, deduzindo, por fim, onde ele foi refletido.
Para compreender o som de
retorno, a equipe de Laferriere precisou criar modelos computadorizados para
determinar quais ecos vieram de objetos de fundo e poderiam ser ignorados. A
eliminação desses ecos evidencia os objetos em movimento pelo ambiente — que
podem ser peixes, submarinos ou veículos subaquáticos não tripulados.
Novamente, a solução
finalizada será um conjunto de hidrofones inteligentes com computação a bordo,
capazes de processar os sons dos camarões e determinar a localização de eventuais
alvos de interesse na região.
Outras equipes do projeto
Pals vêm realizando estudos semelhantes. Pesquisadores da empresa Northrop
Grumman estão trabalhando em outro sistema de sonar utilizando camarões e uma
equipe da Marinha americana está pesquisando os sons gerais dos recifes e como
eventuais intrusos os afetam.
Todos prometem uma imensa
rede de sensores que cobrirá amplas regiões por extensos períodos, com a maior
parte do hardware convenientemente fornecido pela natureza. Apenas os hidrofones
precisarão de reparos ou substituições.
Vai funcionar?
"O estudo da Darpa será
realmente uma importante inovação, se for bem-sucedido", afirma Sidharth
Kaushal, especialista em equipamento militar naval do think tank (centro de
pesquisa e debates) britânico RUSI. "Um ecossistema de sensores vivos
dispersos em flutuação permanente, em princípio, é algo tentador."
Em princípio, mas não
necessariamente na prática. Kaushal tem suas dúvidas porque projetos anteriores
usando a vida marinha para detectar submarinos não tiveram sucesso.
Submarinos alemães chegaram
a ser identificados devido ao efeito causado sobre o plâncton bioluminescente,
que emite uma luz brilhante quando perturbado — e um desses submarinos
supostamente chegou a ser afundado graças a esse efeito na Primeira Guerra Mundial.
Mas tentativas posteriores de usar esse fenômeno de forma mais ampla, com
sensores especiais buscando as fontes de luz em uma área maior, tiveram pouco
sucesso.
"Os esforços soviéticos
e americanos durante a Guerra Fria para usá-los de forma sistemática não
resultaram em nada", afirma Kaushal. "Em parte, porque eles não
tinham como diferenciar os falsos positivos, como a reação de uma baleia que
passava, do objeto real."
Ainda não se sabe qual será
a qualidade da distinção que o Pals poderá fazer entre um submarino e um
tubarão, por exemplo. Lori Adornato acredita que a combinação entre os
organismos marinhos e os algoritmos inteligentes modernos fornecerá um
"aviso de trajeto" confiável, para orientar os caçadores de
submarinos mais tradicionais a verificar um possível intruso.
Adornato afirma que as
tecnologias desenvolvidas para o projeto Pals poderão também ser empregadas
para pesquisas científicas, monitorando os recifes e outros ambientes
subaquáticos com um conjunto de sensores.
"Esses sistemas de
observação de baixo impacto podem ser desenvolvidos em muitos ambientes
diferentes, sem prejudicar o ecossistema estabelecido pela natureza", diz
ela.
Sintonizar os sons
produzidos pela vida marinha normal e aprender como eles se alteram ofereceria aos
pesquisadores uma forma barata e ecológica de rastrear o impacto das atividades
humanas debaixo d'água. Isso seria útil para projetos como geradores eólicos,
extração de petróleo e mineração subaquática em alto mar, pois tudo o que
precisaríamos fazer é ouvir a natureza.
O projeto concentra-se em
espécies comuns nas águas territoriais americanas, de forma que sua replicação
em outras regiões não seria necessariamente fácil. Mas a tecnologia, de forma
geral, pode ser aplicada de forma mais ampla.
O projeto Pals completou sua
primeira fase, que foi um estudo de viabilidade para duas abordagens
diferentes, de monitoramento das reações a intrusos das espécies que vivem nos
recifes e do sonar do camarão-pistola. Os desenvolvedores agora estão
trabalhando em uma segunda etapa, para demonstrar como suas soluções funcionam
em testes controlados, no verão do hemisfério norte de 2022.
BBC, David Hambling
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