quinta-feira, 23 de março de 2023

Elza Soares: o canto negro que tem a cara do Brasil



Para se compreender melhor a profunda dimensão do canto da Elza Soares parece-nos ser preciso discernimento da corporalidade africana.

Onde a arte se estabelece como expressão, objetiva e subjetiva, no corpo do negro. Na cultura bantu, a música e a dança têm o mesmo sentido, formando uma amálgama indissociável. Para os povos egípcio-bantu, que constituem a primeira civilização da história da humanidade, não era possível chegar à eternidade da subjetividade espiritual sem a objetividade corporal. Razão pela qual o maior castigo, na cultura egípcio-bantu, era jogar o corpo de um indivíduo aos crocodilos, que lhe comiam até os ossos, impossibilitando-o de alcançar o decantado lugar do tempo eterno.

Quando a amiga Elza cantou e singularmente interpretou “a carne negra é a mais barata…”, todos sentimos calafrios, principalmente as mulheres negras. Sim, nossos corpos são considerados, apenas em algumas funções seculares, para conceber bens de produção, ontem seres escravizados, na atualidade jovens assassinados nos bairros e nas vilas distantes, que não são saneados. E, sabemos, não são os pesquisadores acadêmicos menos avisados que choram por nós e sim alguns artistas, aqueles como Elza conscientes de sua função de informar, de sensibilizar.

Aprendemos muito com Elza!

Nesse significativo nível de circularidade sagrada da cosmovisão africana primogênita, é que nos vem a percepção da imperecibilidade da arte de Elza Soares. Considerando que seu canto é expressão do corpo na mesma medida em que corpo é manifestação do seu canto. Essa diva negra canta com a alma, fazendo um vocal gutural, na garganta que é componente físico, em que distorce a voz, tornando-a multifacetada, como provável instrumento da dinâmica do corpo, e com uma possível ternura da alma, intensificando assim a polissemia existencial da multiplicidade negra.

A negritude musical dessa cantora dava-se em uma afirmação da imagem positiva da africanidade, que lhe fazia ainda mais ampla na holística da contemporaneidade inclusiva de forma disruptiva com as ações preconceituosas do anacronismo excludente da euro-heteronormatividade, com a qual lutou como na sua interpretação da música Mulher do fim do mundo: “Eu quero cantar / Até o fim, me deixem cantar até o fim / Até o fim, eu vou cantar / Eu vou cantar até o fim” (2015).

Com um canto próprio da educação das relações étnico-raciais do negro com nuances de gestualidade brechtiana, essa artista chega ao paroxismo da sua performance musical como se viu no comentário do programa Quilombo Academia: a educação pela diversidade, que foi ao ar em 6 de janeiro de 2022, na Rádio USP:

A música Mulher do fim do mundo tem a textura do samba como fio condutor. O arranjo introduz a sonoridade dos instrumentos de cordas, friccionadas, gerando suspense, que é ampliado na inserção do cavaquinho, no qual são tocados sucessivos arpejos. Com secção rítmica na batida do samba, o arranjo chega ao paroxismo da originalidade. Elza Soares aponta o canto como luta de resistência, indicando que seu feminismo negro chegará até o fim desse mundo. Com a possível dialética do calor na alegria negra da carnavalização bakhtiniana, superando assim com canto negro a gélida dor da opressão do colonialismo euro-caucasiano.

Na originalidade da força querigmática do orixá, ela denunciou que “a carne mais barata do mercado é carne negra…”, imbuída de uma ogumidade enfrentou a postura vertical da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário, tornando-se intérprete das minorias vulneráveis, tais como o negro, o índio, a mulher, o empobrecido, o homoafetivo, LGBTI+ e outros grupos que reclamam a tentativa reducionista do patriarcalismo euro-caucasiano.

É ilustrativo lembrar que nos saberes das circularidades sagradas da cosmovisão negra primal encontra-se o mais antigo testemunho de respeito a biodiversidade, sendo oportuno destacar que para os iorubás todas as manifestações bioexistências são manifestações da orixalidade. Essa lógica concorre para a desarticulação das tentativas dos comportamentos preconceituosos. Temos a percepção que muitas pessoas, estranhas aos nomos das supostas convencionalidades eurocidentais, que buscam cultivar práticas religiosas, acabam encontrando acolhimento nas religiões de matriz africana, notadamente, no candomblé. Tendo em vista que todos os comportamentos são reflexos dos orixás. Elza tinha esses conhecimentos, acolhia e aconselhava todos, questões de família, quem não as têm? Há direitos, pois a amiga os discutia. Questões políticas que exigem informações e espírito crítico, além de detê-los, discutia inclusive com políticos que dela se aproximavam. Afinal, quem é malandro entre nós? Afinal, os jovens negros encarcerados são maus? E nós olhando as celas, somos os bons? Na verdade, todas as vezes que ouvimos Elza saímos pensativos.

A Elza Soares localizou-se nessa visão, que lhe fez intérprete nas lutas das minorias vulneráveis na sua arte de causa, engajada, cantando com alegria e coragem, demonstrando que “A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!”. Sua essência musical negra foi referência na luta de resistência cultural da escola de samba, que foi um lugar de composição caracterizada pela originalidade do sincopado da afrodescendência que foi negada, formando o lumpemproletariado miscigênico carioca como escrevem Prudente e Costa, no artigo Escolas de samba: comunicação e pedagogia a resistência do quilombismo:

Entre os bambas, havia também os valentes, que faziam do gingado da capoeira sua defesa pessoal, impondo inequívoco respeito nesse meio de empobrecidos marginalizados. Esses grupos batucavam, demonstrando uma capacidade rítmica especial, com batida de padrão sincopado e sugestiva de padrão dissonante para composição de versos tirados no ritmo do partido alto, o que lhes era bastante próprio e ocupava lugar de destaque no cotidiano desses desocupados. Esses compositores foram também verdadeiros cronistas desse segmento étnico-racial marginalizado.

Esse comportamento da Elza Soares permitiu-lhe confortavelmente dialogar com outras tendências musicais e artísticas, como sambalanço, rock, jazz, música eletrônica, pintura, cinema e outros. A construção desse liame foi feita com originalidade, considerando-se que essas tintas musicais são também criações diaspóricas, dos negros nas Américas. Observamos que a interpretação da Elza permeia outras culturas em um processo dinâmico da realidade no cotidiano. Isso mostra a complexidade da sua contemporaneidade musical que lhe fez sempre atual. Contemporaneidade observada na preocupação reflexiva de Michel Foucault, no livro Estética: literatura e pintura, música e cinema:

Frequentemente se diz que a música contemporânea “derivou”: (…) Ora, o que me parece surpreendente, pelo contrário, é a multiplicidade dos laços e das relações entre a música e o conjunto dos outros elementos da cultura. Isso aparece de várias maneiras. Por um lado, a música foi muito mais sensível às transformações tecnológicas, muito mais estreitamente ligada a elas do que a maioria de outras artes (exceto sem dúvida o cinema).

Essa abordagem aponta para uma Elza Soares que com seu lugar de fala fez uma guerrilha de canto poético, cuja sua inspiração na lição marxista de artista militante interpretou o ensinamento de Marx que a burguesia “cria para si um mundo à sua própria imagem.” Elza tinha a consciência que a apropriação de artes e ideias é sem dúvida a questão política mais sensível e muitas vezes dialogamos nestes cenários. De tal sorte, que o negro era tratado nos séculos da escravização como semovente, é agora a cor em relações miscigênicas na pintura musical, da inquietude de Elza Soares, cuja irreverência utópica sugere uma sociedade com a cara de todos os brasileiros. Note-se que sem usar termos dos pensadores: colonialidade, epistemicídio, Elza artista brasileira, amante da negritude, discutia formas para o enfrentamento e a libertação. Razão pela qual Elza Soares viverá eternamente no onirismo utópico da luta por um Brasil verdadeiramente democrático.

Eunice Aparecida de Jesus Prudente e Celso Luiz Prudente, Jornal da USP




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