Para se compreender melhor a profunda dimensão do canto da Elza Soares parece-nos ser preciso discernimento da corporalidade africana.
Onde a arte se estabelece como expressão, objetiva e subjetiva, no corpo do negro. Na cultura bantu, a música e a dança têm o mesmo sentido, formando uma amálgama indissociável. Para os povos egípcio-bantu, que constituem a primeira civilização da história da humanidade, não era possível chegar à eternidade da subjetividade espiritual sem a objetividade corporal. Razão pela qual o maior castigo, na cultura egípcio-bantu, era jogar o corpo de um indivíduo aos crocodilos, que lhe comiam até os ossos, impossibilitando-o de alcançar o decantado lugar do tempo eterno.
Quando
a amiga Elza cantou e singularmente interpretou “a carne negra é a mais
barata…”, todos sentimos calafrios, principalmente as mulheres negras. Sim,
nossos corpos são considerados, apenas em algumas funções seculares, para
conceber bens de produção, ontem seres escravizados, na atualidade jovens
assassinados nos bairros e nas vilas distantes, que não são saneados. E,
sabemos, não são os pesquisadores acadêmicos menos avisados que choram por nós
e sim alguns artistas, aqueles como Elza conscientes de sua função de informar,
de sensibilizar.
Aprendemos muito com Elza!
Nesse
significativo nível de circularidade sagrada da cosmovisão africana
primogênita, é que nos vem a percepção da imperecibilidade da arte de Elza Soares.
Considerando que seu canto é expressão do corpo na mesma medida em que corpo é
manifestação do seu canto. Essa diva negra canta com a alma, fazendo um vocal
gutural, na garganta que é componente físico, em que distorce a voz, tornando-a
multifacetada, como provável instrumento da dinâmica do corpo, e com uma
possível ternura da alma, intensificando assim a polissemia existencial da
multiplicidade negra.
A
negritude musical dessa cantora dava-se em uma afirmação da imagem positiva da
africanidade, que lhe fazia ainda mais ampla na holística da contemporaneidade
inclusiva de forma disruptiva com as ações preconceituosas do anacronismo
excludente da euro-heteronormatividade, com a qual lutou como na sua
interpretação da música Mulher do fim do mundo: “Eu quero cantar / Até o fim,
me deixem cantar até o fim / Até o fim, eu vou cantar / Eu vou cantar até o
fim” (2015).
Com
um canto próprio da educação das relações étnico-raciais do negro com nuances
de gestualidade brechtiana, essa artista chega ao paroxismo da sua performance
musical como se viu no comentário do programa Quilombo Academia: a educação
pela diversidade, que foi ao ar em 6 de janeiro de 2022, na Rádio USP:
A
música Mulher do fim do mundo tem a textura do samba como fio condutor. O
arranjo introduz a sonoridade dos instrumentos de cordas, friccionadas, gerando
suspense, que é ampliado na inserção do cavaquinho, no qual são tocados
sucessivos arpejos. Com secção rítmica na batida do samba, o arranjo chega ao
paroxismo da originalidade. Elza Soares aponta o canto como luta de
resistência, indicando que seu feminismo negro chegará até o fim desse mundo.
Com a possível dialética do calor na alegria negra da carnavalização
bakhtiniana, superando assim com canto negro a gélida dor da opressão do colonialismo
euro-caucasiano.
Na
originalidade da força querigmática do orixá, ela denunciou que “a carne mais
barata do mercado é carne negra…”, imbuída de uma ogumidade enfrentou a postura
vertical da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário, tornando-se
intérprete das minorias vulneráveis, tais como o negro, o índio, a mulher, o
empobrecido, o homoafetivo, LGBTI+ e outros grupos que reclamam a tentativa
reducionista do patriarcalismo euro-caucasiano.
É
ilustrativo lembrar que nos saberes das circularidades sagradas da cosmovisão
negra primal encontra-se o mais antigo testemunho de respeito a biodiversidade,
sendo oportuno destacar que para os iorubás todas as manifestações
bioexistências são manifestações da orixalidade. Essa lógica concorre para a
desarticulação das tentativas dos comportamentos preconceituosos. Temos a
percepção que muitas pessoas, estranhas aos nomos das supostas
convencionalidades eurocidentais, que buscam cultivar práticas religiosas,
acabam encontrando acolhimento nas religiões de matriz africana, notadamente,
no candomblé. Tendo em vista que todos os comportamentos são reflexos dos
orixás. Elza tinha esses conhecimentos, acolhia e aconselhava todos, questões
de família, quem não as têm? Há direitos, pois a amiga os discutia. Questões
políticas que exigem informações e espírito crítico, além de detê-los, discutia
inclusive com políticos que dela se aproximavam. Afinal, quem é malandro entre
nós? Afinal, os jovens negros encarcerados são maus? E nós olhando as celas,
somos os bons? Na verdade, todas as vezes que ouvimos Elza saímos pensativos.
A
Elza Soares localizou-se nessa visão, que lhe fez intérprete nas lutas das
minorias vulneráveis na sua arte de causa, engajada, cantando com alegria e
coragem, demonstrando que “A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!”.
Sua essência musical negra foi referência na luta de resistência cultural da
escola de samba, que foi um lugar de composição caracterizada pela
originalidade do sincopado da afrodescendência que foi negada, formando o
lumpemproletariado miscigênico carioca como escrevem Prudente e Costa, no
artigo Escolas de samba: comunicação e pedagogia a resistência do quilombismo:
Entre
os bambas, havia também os valentes, que faziam do gingado da capoeira sua
defesa pessoal, impondo inequívoco respeito nesse meio de empobrecidos
marginalizados. Esses grupos batucavam, demonstrando uma capacidade rítmica
especial, com batida de padrão sincopado e sugestiva de padrão dissonante para
composição de versos tirados no ritmo do partido alto, o que lhes era bastante
próprio e ocupava lugar de destaque no cotidiano desses desocupados. Esses
compositores foram também verdadeiros cronistas desse segmento étnico-racial
marginalizado.
Esse
comportamento da Elza Soares permitiu-lhe confortavelmente dialogar com outras
tendências musicais e artísticas, como sambalanço, rock, jazz, música
eletrônica, pintura, cinema e outros. A construção desse liame foi feita com
originalidade, considerando-se que essas tintas musicais são também criações
diaspóricas, dos negros nas Américas. Observamos que a interpretação da Elza
permeia outras culturas em um processo dinâmico da realidade no cotidiano. Isso
mostra a complexidade da sua contemporaneidade musical que lhe fez sempre
atual. Contemporaneidade observada na preocupação reflexiva de Michel Foucault,
no livro Estética: literatura e pintura, música e cinema:
Frequentemente
se diz que a música contemporânea “derivou”: (…) Ora, o que me parece
surpreendente, pelo contrário, é a multiplicidade dos laços e das relações
entre a música e o conjunto dos outros elementos da cultura. Isso aparece de
várias maneiras. Por um lado, a música foi muito mais sensível às
transformações tecnológicas, muito mais estreitamente ligada a elas do que a
maioria de outras artes (exceto sem dúvida o cinema).
Essa
abordagem aponta para uma Elza Soares que com seu lugar de fala fez uma
guerrilha de canto poético, cuja sua inspiração na lição marxista de artista
militante interpretou o ensinamento de Marx que a burguesia “cria para si um
mundo à sua própria imagem.” Elza tinha a consciência que a apropriação de
artes e ideias é sem dúvida a questão política mais sensível e muitas vezes
dialogamos nestes cenários. De tal sorte, que o negro era tratado nos séculos
da escravização como semovente, é agora a cor em relações miscigênicas na
pintura musical, da inquietude de Elza Soares, cuja irreverência utópica sugere
uma sociedade com a cara de todos os brasileiros. Note-se que sem usar termos
dos pensadores: colonialidade, epistemicídio, Elza artista brasileira, amante
da negritude, discutia formas para o enfrentamento e a libertação. Razão pela
qual Elza Soares viverá eternamente no onirismo utópico da luta por um Brasil
verdadeiramente democrático.
Eunice Aparecida de Jesus Prudente e Celso Luiz Prudente, Jornal da USP
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