Estamos vivendo uma emergência climática que atinge o mundo inteiro,
gerando diversos impactos e consequências, entre eles, a mobilidade humana
Nas últimas semanas foi possível notar em vários canais
de comunicação o aumento de desastres ambientais, muitos destes vinculados a um
aumento de temperatura, provocada pela emissão de gases de efeito estufa e
resultante da exacerbada exploração industrial de recursos. O notável
crescimento nos números de desastres e eventos extremos que estamos
presenciando tem feito com que milhares de pessoas no mundo se desloquem de
suas casas, forçada ou “voluntariamente”, para procurarem lugares mais seguros
que permitam sua subsistência.
Desde as dezenas de mortes na China, causadas pelas
“chuvas torrenciais que autoridades meteorológicas do país dizem ser as mais
fortes em mil anos”, e que obrigaram a mais de 395 mil pessoas abandonar suas
casas, até as quebras de recorde de temperaturas máximas no Canadá, fazendo com
que o ecossistema local fosse drasticamente afetado, esse problema também afeta
terras latino-americanas. O aumento de temperatura da superfície terrestre,
derretimento das geleiras andinas, mudança nos padrões de precipitação e o
aumento no número e intensidade de eventos climáticos extremos, têm sido sinais
das mudanças climáticas que se apresentam de forma cada vez mais frequente na
região. Essas variações são os primeiros indícios do que pode estar por vir nas
próximas décadas. Os incêndios na Amazônia e no Pantanal, além da temperatura
recorde de 18,3°C registrada recentemente na Antártida alertam para um aumento
da temperatura média da América do Sul, que pode chegar a quatro graus até o
fim do século, caso as emissões de gases de efeito estufa continuem no mesmo
ritmo.
O
cenário brasileiro: aumento de temperatura e crise hídrica
No contexto brasileiro, além dos incêndios, o desmatamento
também constitui um problema que agrava a situação do aumento de temperatura.
Muitas vezes ligado à expansão do agronegócio, o desmatamento contribui para o
aquecimento global, impactando diretamente os ciclos da água (com menos árvores
na floresta, há menos umidade no ar e menos chuvas). Isto gera consequências
que impactam setores estratégicos como a energia, cujos impactos estão sendo
sentidos com o aumento das tarifas de eletricidade, e a produção agrícola tanto
de grande escala, como o agronegócio, quanto de pequena escala, como a
agricultura familiar e de subsistência. Isto tem afetado não apenas as
populações vulneráveis da região amazônica, que tem a maior concentração de
população originária, muitas delas em situação de vulnerabilidade socioeconômica
e insegurança alimentar, mas também famílias e comunidades dependentes da
agricultura de outras regiões do Brasil.
Em uma recente publicação do El País, Gil Alessi refere
que estamos vivendo a pior seca dos últimos 91 anos no Sudeste e Centro-Oeste
do país, e isso traz inúmeras perdas econômicas e de infraestrutura.
Entretanto, este fenômeno atinge mais fortemente diversas famílias que se
encontram vivendo nas regiões mais afetadas. “Aos poucos a agricultura familiar
vai sumindo e vão ficando apenas os grandes produtores”, afirma resignado
Claudinei Ferreari, 53, presidente da Cooperativa de Agricultura Familiar de
Fernandópolis. A reportagem narra o drama que estas famílias vêm enfrentando
com a seca e visibiliza, em algumas falas, uma situação cada vez mais
recorrente diante do cenário climático: a migração ambiental. “A nossa geração, de 40 a 60 anos, vai ficar
na roça, porque é o que sabemos fazer. Mas os jovens não vão querer essa vida
difícil não”. Esse seria o caso de Davi, de doze anos, filho de um dos
entrevistados, que ajuda no plantio do mamão, e que diante do cenário de crise
acrescenta: “Quero ser biólogo. Não vejo futuro na agricultura não”.
A
migração vinculada a fatores ambientais e as mudanças climáticas
Não é a primeira vez que se chama a atenção para este
tema. Estamos vivendo uma emergência climática que atinge o mundo inteiro,
gerando diversos impactos e consequências, entre eles, a mobilidade humana.
Esta mobilidade pode derivar tanto de desastres vinculados a fatores geofísicos
(como terremoto e tsunamis), ou a fatores climáticos (como deslizamentos,
furacões, etc). Ainda vinculado às mudanças climáticas, a mobilidade também
pode derivar de eventos menos súbitos como os denominados “eventos de início
lento”, entre os que destacam a desertificação, a degradação do solo, o aumento
do nível do mar, entre outros.
Apesar da sua importância, esta temática ainda é
escassamente debatida. Entre os diversos fatores que contribuem para isso,
podemos mencionar dois muito relevantes: a falta de uma terminologia e
reconhecimento formal e a ausência de dados confiáveis e desagregados.
A falta de uma nomenclatura apropriada e oficial para
se referir às pessoas que migram por fatores vinculados a questões ambientais
resulta em uma dificuldade de reconhecimento e visibilidade destas pessoas, que
reflete na falta de normas internacionais que contemplem mecanismos de proteção
para elas. Isto gera situações que violam seus direitos, mantendo-as muitas
vezes em situação de desamparo. No mesmo sentido, esta falta de visibilidade
limita e dificulta a busca por soluções jurídicas que possam proteger esses
migrantes ambientais. Nesse sentido, as questões climáticas podem violar
diretamente os direitos humanos, pois afetam diretamente o direito à vida, à
saúde, à habitação, à alimentação e água, entre outros. Direitos estes
consagrados no plano internacional e seus diversos instrumentos de proteção.
Já em relação aos dados, uma das consequências da falta
de reconhecimento formal é a ausência de instrumentos que permitam a coleta e
levantamento de dados precisos e desagregados sobre a quantidade de pessoas que
se deslocam por motivos vinculados a eventos ou fatores ambientais, tanto os de
início súbito como os de início lento ou gradativo. Assim, existe um enorme
obstáculo na questão dos dados que, para além do reconhecimento de uma
terminologia, se reflete diretamente em um desafio operacional, institucional e
conceitual, pois para um possível monitoramento dessas pessoas será necessária
uma classificação que consiga abranger as diferentes formas de mobilidade que
derivam destes eventos, e que contemple as diversas fragilidades e questões de
classe, gênero, raça, etc., das pessoas ou grupos impactados.
Visibilizar
para proteger
Com a ausência de normas globais e vinculantes
específicas sobre a proteção jurídica desses migrantes, o Direito Internacional
dos Direitos Humanos (DIDH), na teoria, confere proteção às pessoas que migram
por causas ambientais; porém de uma forma genérica, sem nenhuma menção ou
mecanismo específico de proteção. Outro instrumento jurídico internacional como
o do Direito Internacional dos Refugiados (DIR) tampouco contempla os desastres
ou quaisquer causas ambientais, como fator que configurem a aplicação do
instituto do refúgio.
Apesar destes vácuos normativos, é importante
reconhecer que a discussão sobre o tema e os possíveis mecanismos de
enfrentamento vêm sendo discutidos gradativamente em alguns fóruns regionais
sobre migração. Por meio de instrumentos não vinculantes, que reconhecem a
vinculação entre a ocorrência de desastres e intensificação dos impactos das
mudanças climáticas e o aumento de processos de mobilidade humana forçada, a
temática vem sendo abordada desde a perspectiva do Direito Internacional
Humanitário (DIH), em nome da solidariedade internacional, para prestar
assistência às vítimas, sobretudo em contexto de desastres. Nesse sentido, a
Conferência Sul-americana de Migração (CSM) integrou o tema na agenda regional
desde 2010 (X Conferência) até 2018 (XVIII Conferência), na qual foram
aprovadas as “Diretrizes Regionais de Proteção e Assistência a Pessoas
Deslocadas nas Fronteiras e migrantes em países afetados por desastres de
origem natural”. Este documento apresenta diretrizes para garantir que as
respostas frente ao deslocamento entre fronteiras em contexto de desastres
sejam mais eficazes e consistentes com as regulamentações nacionais.
Entretanto, e para além de medidas emergenciais, é
desejável que haja a adoção de medidas preventivas dirigidas tanto à expansão
de instrumentos legais que lidem com a temática e viabilizem a proteção das
pessoas em situação de deslocamento ou em risco deste, quanto à adoção de
políticas públicas para o planejamento de respostas, sobretudo frente aos denominados
eventos de início lento. Na tentativa de contribuir a estes objetivos, o
Observatório Latino-americano de Mobilidade Humana, Mudança Climática e
Desastres (MOVE-LAM), uma iniciativa inovadora desenvolvida em cooperação entre
a Universidade para a Paz (UPAZ) e a Rede Sul Americana para as Migrações
Ambientais (RESAMA), publicou o Primeiro Informe: “Visibilizar para Proteger:
Un abordaje de datos e información sobre movilidad humana en el contexto de
desastres y cambio climático en Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Guatemala
y México” (Visibilizar para Proteger: Uma abordagem de dados e informações
sobre mobilidade humana em contexto de desastres e mudança climática no Brasil,
Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala e México). Este trabalho apresenta um
primeiro esforço produzido por e para a região latino-americana, com o objetivo
de verificar a disponibilidade de dados e a informação relacionada com o
deslocamento humano no contexto de desastres e mudança climática. Esse esforço
coletivo contou com importantes contribuições de pesquisadores especialistas de
diferentes países que, a partir de suas realidades e experiências no tema,
abordaram a situação de cada um dos países que compõem este estudo.
Esforços regionais como este são de extrema importância,
sobretudo considerando que a problemática das migrações ambientais ainda é
pouco visibilizada. Ainda, devido à sua complexidade, as respostas a um futuro
cenário de aumento de fluxos migratórios por fatores ambientais exigirão
esforços e ações, desde diferentes frentes e escalas de ação, que envolvam não
apenas a agenda migratória, mas também a agenda climática, de redução de risco
de desastres, e sobretudo dos Direitos Humanos, a fim de garantir a proteção e
respeito à dignidade das pessoas que já são afetadas por estes fenômenos.
Zenaida
Lauda-Rodriguez e Maria Luísa Sader Teixeira, ProMigra
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