Um ônibus estaciona em frente ao Teatro Liberdade, em São Paulo. Do veículo fretado que havia partido de uma cidade do interior do estado, saltam grupos de mulheres de máscara, a maior parte na faixa dos 70 e 80 anos, todas com ingressos, sprays de álcool e carteiras de vacinação nas bolsas. “O pessoal já não estava mais aguentando ficar em casa!”, exclama o organizador da caravana. A cena é recente.
— O que os cariocas chamam de “senhorinhas da van” não se perdeu em São Paulo. E esse movimento é o que sustenta as bilheterias — diz Renata Borges Pimenta, produtora de “Cinderella”, em cartaz naquele endereço. — Todo mundo achava que isso ia acabar. Aconteceu o contrário.
Contra todas as previsões e expectativas, os espetáculos musicais estão na comissão de frente da lenta retomada do setor teatral no Brasil. Enquanto os monólogos se destacavam na cena virtual e davam sinais de que assumiriam a dianteira do retorno das plateias, os musicais — com seu elenco e equipe numerosos — pareciam longe de recuperar os holofotes. A realidade é outra. Na capital paulista, onde se concentra a maior quantidade de palcos em atividade no país, já há mais de uma dezena de montagens do gênero. E uma nova leva de produções superlativas aportará por lá em novembro, dezembro, janeiro...
Há uma “demanda real do público” por peças que seduzem olhos (e ouvidos) pela grandiosidade, frisa o diretor Charles Möeller, em discurso que ecoa entre seus pares. À frente de “Cinderella”, ele já prepara, com Claudio Botelho, as estreias de “O jovem Frankenstein” (para dezembro, no Rio) e “West side story” (em SP) e “Mamma Mia!” (no Rio), ambas para 2022.
— Um musical traz algo de utopia. Você vê ali a grande produção, as cores, a luz, a energia de vida. Isso ajuda a curar o claustro, a tristeza. O público estava afoito por algo assim — defende Möeller.
Plateias cheias
Na Broadway, em Nova York, após um jejum de 18 meses, espectadores têm lotado plateias desde meados de setembro, quando foi reaberta a maior parte dos 41 teatros do célebre circuito cultural da cidade. Em São Paulo e no Rio, os aplausos do público também ressoam mais fortes. A partir do próximo fim de semana, a maioria dos teatros deve voltar a funcionar com lotação máxima, com a obrigatoriedade do uso de máscaras.
— A gente não cria protocolo. A gente cumpre aquele que existe — diz Carlos Cavalcanti, produtor de “Charlie e a fantástica fábrica de chocolate”, no Teatro Renault, em São Paulo, com 44 atores no palco, e que estrearia em março de 2020, não fosse a pandemia. — A nova permissão para ocupar 100% da plateia nos dá fôlego. Estamos indo para a sexta sessão com ingressos esgotados, e abrimos apresentações às quintas-feiras.
Embora o prejuízo ainda seja mais certo do que o lucro, produtores brasileiros avaliam que esta é hora de esquentar o mercado — com a emergência de novas exigências ainda não previstas em leis de incentivo, como a realização de testes de Covid semanais entre atores e equipe técnica, a lista de gastos aumentou em até 15%.
— Quem tem verba para isso precisa voltar à cena. É o jeito de impulsionar o setor — comenta Aniela Jordan, gestora dos teatros Riachuelo e Prudential, uns dos primeiros a reabrir no Rio. — Musicais sempre atraíram um público abrangente, de todas as faixas etárias. E isso anima a classe.
Espetáculo inédito do gênero em cartaz no Rio, no Prudential, o infantil “Zaquim”, estrelado por seis atores-músicos, tem agradado não somente crianças. O que norteou a criação da narrativa de Duda Maia (de “Auê” e “Elza”) foi justamente inventar um espetáculo que abordasse temas contemporâneos e que não fosse palatável apenas para o público mirim.
A mesma plateia, formada por crianças, adolescentes, adultos e idosos, é vista nas sessões de “Barnum — O rei do show”, no Teatro Opus, em São Paulo. Protagonizada pelo ator Murilo Rosa, a primeira adaptação brasileira para o musical da Broadway — que ganhou filme com Hugh Jackman, em 2017 — tem como chamariz a linguagem circense, com ilusionismos, acrobacias e cenários arrojados.
— O segmento está tentando abrilhantar os olhos dos patrocinadores, que recuaram em 2020, para que essa cadeia não seque — conta Thiago Hofman, diretor de produção de “Barnum”, que apostou na oferta permanente de ingressos a preços populares, a partir de R$ 25, para cativar um maior número de espectadores.
Cena antiga à vista
Hoje, a maioria dos musicais que ocupa os teatros são reestreias de montagens com equipes já estruturadas — a expectativa do setor é que haja um boom de estreias em 2022. Todos, porém, captaram recursos antes da pandemia e mantêm, desde então, obrigações com patrocinadores ou determinações da Lei Rouanet. Isso também ajuda a explicar este fôlego dos musicais.
A lista de atrações inclui, em São Paulo, sucessos como “Donna Summer”, de Miguel Falabella; “A Bela e a Fera”, de Billy Bond; “Silvio Santos vem aí”, sobre o criador do SBT; “A cor púrpura”, que volta em novembro; e “Conserto para dois”, com Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello.
— Os protocolos aumentaram o tempo de preparação para entrar em cena. Mas já temos isso em mente, e o fundamental é estar de volta — comemora Claudia Raia, que divide o tablado com o marido no Teatro Procópio Ferreira. — No nosso caso, são dois atores no palco, mas há 15 pessoas nos bastidores nos ajudando. É muito gente envolvida.
Aglomeração, aliás, é palavra difícil de ser contornada nesse ambiente. Em geral, diretores têm orquestrado uma coreografia complicada para que os protocolos sanitários sejam seguidos à risca nos ensaios. Aniela diz que os encenadores se dedicam agora a uma “gestão do medo”. É que, apesar do entusiasmo geral nos bastidores, paira certa apreensão com a possibilidade de contaminações.
Há algumas semanas, entre uma sessão e outra de “Cinderella”, um bailarino revelou que estava com febre e ponderou que o mal-estar havia sido causado por um alimento estragado que consumira num restaurante japonês. Os 70 profissionais envolvidos na peça, todos já vacinados, entraram em pânico, e ele foi afastado temporariamente.
Não à toa, os musicais foram redimensionados. “Cinderella” reduziu o elenco de 34 atores para 22. Mais: a produção dispensou os 18 músicos da orquestra, que executavam a trilha no fosso do palco. O infantil “Madagascar”, em cartaz no Teatro Multiplan, no Rio — e tocado por 110 profissionais, entre artistas e técnicos — seguiu o mesmo caminho, e agora reproduz as músicas em caixas de som. Möeller e Botelho também vão abrir mão de orquestras e coros completos nas próximas obras.
— A hora é de empatar, e não de ganhar — reforça Renata Borges. — Imagino que o mercado deva demorar uns três anos para ser o que era.
Gustavo Cunha, O Globo
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