terça-feira, 5 de outubro de 2021

Boiada à vista: projetos para liberar mineração e criação de gado ameaçam reservas


Criadas nos anos 1990 para permitir a sobrevivência de comunidades tradicionais pela extração sustentável de produtos florestais na Amazônia, como castanha, látex e óleo de copaíba, as Reservas Extrativistas (Resex) estão sob ameaça.

 

Dois projetos em tramitação na Câmara dos Deputados dão sinal verde para a instalação de lavras de garimpo e a criação de bois e búfalos nessas áreas, alterando a lei de 2000 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.

A regra atual permite apenas a criação de animais de pequeno porte, agricultura de subsistência e pesca. A exploração de recursos minerais é proibida, assim como a caça amadora ou profissional. Hoje, o Brasil tem 66 reservas extrativistas.

O projeto que libera bois e búfalos, do deputado Junior Ferrari (PSD-PA), recebeu em maio um parecer favorável da relatora, deputada Silvia Cristina (PDT-RO), da Comissão de Agricultura. Ele argumenta que a criação de búfalos era exercida nas várzeas do rio Amazonas antes das reservas. Em julho, foi a vez do relator Nereu Crispim (PSL-RS) dar parecer favorável a projeto do deputado Éder Mauro (PSD-PA) que permite a instalação de lavras garimpeiras de pequeno porte.

A invasão das Resex é crescente. Entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram desmatados 143 km² nas reservas extrativistas, segundo levantamento do Imazon. De agosto de 2020 a julho deste ano, a área desmatada atingiu 213 km². Ambientalistas e extrativistas locais apontam que a investida atual em terras da União atende projetos de interesse do agronegócio, e de atividades ilegais de garimpo.

— Dizem que pequenas lavras de garimpo não têm impacto. Mas não existe extração de minério sem impacto para o meio ambiente e populações locais. É atividade incompatível com essas áreas — afirma Dione Torquato, secretário-geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).

O modelo das Resex foi proposto nos anos 1980 por seringueiros, para conter o desmatamento e a invasão de áreas de extração, ameaçadas por pastagens. O projeto saiu do papel após o assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, de repercussão internacional. Coube ao então presidente José Sarney a criação das primeiras reservas: Chico Mendes e Alto Juruá, no Acre; Rio Ouro Preto, em Rondônia; e do Rio Cajari, no Amapá.

Das quatro pioneiras, duas têm projetos em andamento para reduzir suas áreas, a Chico Mendes e a Rio Ouro Preto. A diminuição da Rio Ouro Preto partiu de um projeto do Senado.

— Nenhuma das proposições foi discutida com as comunidades. É ameaça ao ambiente e à população das áreas — diz Bruno Taitson, analista de conservação da WWF Brasil.

Parlamentares de oposição veem risco de aprovação dos projetos, pela maioria do governo na Câmara.

— A ideia é mercantilizar as Resex. Não há melhor expressão do que a de “passar a boiada” — diz o deputado Pedro Uczai (PT-SC), referindo-se à frase do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.

Relatores defendem os projetos. A deputada Silvia Cristina diz que a criação de bois e búfalos é compatível com o extrativismo e pode aumentar a renda das comunidades:

— Abrimos para conversar. Retiramos de pauta para ouvir ONGs e extrativistas.

Responsável pelo parecer favorável à mineração nas Resex, o deputado Nereu Crispim diz ter deixado a bancada governista insatisfeita por estabelecer regras de mitigação e obrigatoriedade de reflorestamento de áreas danificadas, além da aprovação de estudo de impacto ambiental:

— Após a ocorrência de eventos como a grave seca e vendavais de poeira, o Congresso precisa dar uma freada nas mudanças em unidades de conservação.

Resort no lugar

Um projeto apresentado em junho pelo deputado Uldurico Junior (Pros-BA) propõe extinguir a Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras, com 60 km de extensão no litoral da Bahia, e criar uma Área de Proteção Ambiental, o que abre espaço a empreendimentos privados. Na justificativa, o deputado afirma que a Resex emperra o potencial turístico da área, onde poderia ser construído um resort.

Mesmo sob a ameaça de extinção da reserva, os cerca de 2,5 mil moradores conseguiram financiamento de R$ 2 milhões para montar uma área de beneficiamento de peixes e mariscos, uma fábrica de azeite de coco, uma fábrica de gelo, e investir em uma operadora comunitária de turismo ecológico.

— As áreas onde vivemos e trabalhamos são cobiçadas pela especulação imobiliária. Por isso, tratam a natureza como obstáculo. A reserva não é impeditivo para o desenvolvimento. Temos o turismo sustentável — diz Carlos Alberto Pinto dos Santos, da associação de extrativistas de Canavieiras e da Comissão Nacional dos Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem).

Cleide Carvalho, O Globo


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