Na semana que passou, vídeos com imagens de satélite mostrando a evolução da paisagem ao longo dos anos pipocaram nas redes sociais para justificar a importância das terras indígenas. Em meio à discussão sobre o chamado marco temporal no STF (Supremo Tribunal Federal), as animações reforçaram a noção de que, onde o resto da Amazônia já se foi, se há terras indígenas, elas funcionam como ilhas verdes de conservação.
Consideradas ferramentas fundamentais para a
preservação da floresta, as terras indígenas historicamente concentram as
menores taxas de derrubada da floresta. Mas elas vêm sofrendo, no último ano,
com um avanço de atividades ilegais --como o próprio corte raso da floresta, o
garimpo e a extração de madeira.
Uma análise realizada pelo Greenpeace sobre os dados
de alertas de devastação elaborados pelo sistema Deter do Inpe (Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais), repassada com exclusividade para a Folha,
revelou que o desmatamento em terras indígenas (TIs) no período de 1º de
janeiro a 31 de julho deste ano subiu 35,6% ante o mesmo período do ano
passado.
O corte seletivo de madeira (em que somente árvores de
interesse comercial são cortadas) subiu 66% no período, ao mesmo tempo em que o
garimpo teve um aumento de 56,2%.
O Deter é um levantamento rápido de alertas que serve
para orientar os serviços de fiscalização de que há evidências de que está
ocorrendo alguma alteração da cobertura florestal na Amazônia. Ele não indica
as taxas oficiais anuais de desmatamento --de responsabilidade de outro serviço
do Inpe, o Prodes--, mas aponta a tendência do que está ocorrendo no campo.
O Greenpeace analisou os dados do Deter específicos
sobre terras indígenas nos últimos cinco anos e observou que os números de
atividades ilegais nessas áreas desde o início da gestão de Jair Bolsonaro (sem
partido) foram bem superiores aos detectados antes de o governo começar (em
janeiro de 2019). Também houve uma piora nos últimos meses.
No agregado de um ano, entre agosto de 2020 e julho de
2021, o desmatamento em terras indígenas foi de 20.769 hectares, o equivalente
a quase 21 mil campos de futebol --cerca de 2,36% do total de alertas do Deter
para toda a Amazônia.
Apesar de representar uma queda de 23,5% ante o
registrado nos 12 meses anteriores (27.167 hectares), é um patamar mais alto
que o do período pré-Bolsonaro. Entre agosto de 2018 e julho de 2019, o
desmatamento tinha sido de 23,7 mil hectares --mais que o dobro do ano anterior
e mais que o triplo do período entre agosto de 2016 e julho de 2017.
O crime que mais avançou no último ano em terras
indígenas foi a extração ilegal de madeira. Entre agosto de 2020 e julho de
2021, houve corte seletivo em uma área de 12.516 hectares --95,6% superior à
área dos 12 meses anteriores, de 6.396 hectares. Nos três anos anteriores, o
corte de madeira tinha ocorrido, em média, em uma área de 2.300 hectares.
O garimpo também atingiu a maior área entre agosto de
2020 e julho de 2021: 2.793 hectares, alta de 7,8% em relação aos 12 meses
anteriores.
Cerca de um terço dos alertas de desmatamento do ano
ocorreram em uma única terra indígena, a de Apyterewa, que perdeu 6.249
hectares, uma alta de 11% em relação ao ano anterior. Localizada no município
de São Félix do Xingu, no Pará, ela vem sofrendo com invasões e derrubada da
floresta para a transformação em pasto nos últimos anos.
A segunda terra indígena mais afetada por desmatamento
no período, a Trincheira Bacajá, fica logo ao lado da Apyterewa. Foram perdidos
2.666 hectares, valor 9,35% superior ao registrado entre agosto de 2019 e julho
de 2020, segundo dados do Deter. Pelo garimpo, as TIs mais afetadas foram a
Kayapó e a Munduruku.
"As maiores áreas destruídas se concentram em
somente algumas terras indígenas, o que facilitaria uma ação de fiscalização
eficaz, mas não é o que vemos na prática", afirma Cristiane Mazzetti,
porta-voz da campanha de florestas do Greenpeace.
Para a ambientalista, a tramitação no Congresso de
projetos de lei que preveem a possibilidade de exploração das terras indígenas,
por exemplo, para a exploração mineral pode estar incentivando um maior avanço
de criminosos sobre essas áreas.
"Ainda que as propostas legislativas não estejam
aprovadas, só de ter expectativa de que atividades destrutivas sejam
legalizadas gera uma corrida de pessoas para ocupar essas áreas que hoje são
terras indígenas ou são reivindicadas para serem demarcadas. A expectativa é de
criar um fato consumado e depois encontrar uma alteração na lei e conquistar
aquela terra", afirma.
Outra pressão vem da discussão, no STF, do chamado
marco temporal. A tese propõe que os povos indígenas só teriam direito ao
território que estivesse fisicamente ocupado por eles no momento da promulgacao
da Constituicao Federal, em 1988. É sobre isso que o STF precisa tomar uma decisão.
Na quinta-feira (26), a corte iniciou o julgamento de
um recurso a uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa
Catarina contra o povo Xokleng. O relator do caso, o ministro Edson Fachin, já
votou contra a tese. Mas, se os demais ministros forem a favor, o marco
temporal se tornará regra para todos os demais casos no país.
Na última semana, cerca de 6.000 indígenas, de acordo
com estimativa dos organizadores, montaram acampamento na Praça dos Três
Poderes, em Brasília, para pedir que o STF não concorde com o marco temporal.
Eles temem que, se a tese passar, nenhuma nova área seja demarcada e outras
possam vir a ser questionadas.
Historicamente, as terras indígenas são áreas que
apresentam os menores níveis de desmatamento em comparação às outras categorias
fundiárias, como propriedades privadas, terras públicas não destinadas e mesmo
unidades de conservação.
Levantamento da organização MapBiomas indica que
apenas 1,6% do desmatamento observado em todo o Brasil entre 1985 e 2020 se deu
em terras indígenas demarcadas. Na Amazônia, em 2020, cerca de 3% de tudo o que
se desmatou na Amazônia ocorreu em terras indígenas, de acordo com dados do
Prodes. Mas os conflitos com agricultores, grileiros e garimpeiros vêm se
intensificando.
Um outro estudo divulgado pelo Ipam (Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia) em março deste ano revelou que aumentou em 55%
a área registrada ilegalmente como propriedade rural particular dentro de
terras indígenas da Amazônia entre 2016 e 2020. O dado foi obtido por meio da
sobreposição de informações de terras indígenas com as presentes no CAR
(Cadastro Ambiental Rural), o que indica um processo de grilagem.
Nessas áreas, no mesmo período, houve mais ocorrências
de queimadas e de desmatamento do que nas terras indígenas sem esse tipo de
sobreposição.
Giovana Girardi (Folhapress), no Yahoo notícias
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