Quando ligou a câmera para participar de mais uma audiência virtual, assim como tem feito ao longo de toda a pandemia da Covid-19, a advogada Twane Hopner não imaginava que passaria por uma experiência que descreve como traumática.
Desde o início da pandemia, com a
ampliação do uso de videoconferências em audiências e sessões de julgamento,
uma série de abusos viralizou nas redes sociais. Ainda não há definição sobre a
continuidade desse modelo de audiência nos próximos anos.
Um dos casos que foram muito
compartilhados envolveu Hopner. No dia 11 de novembro de 2020, em audiência de
conciliação na 2ª Vara de Família e Sucessões de São Paulo, ela defendeu Maria,
uma mulher que tentava chegar a um acordo com o ex-marido em torno de uma
partilha de bens litigiosa. O nome da cliente foi trocado para proteger sua
privacidade.
Durante as duas horas de sessão,
assistida pela Folha, o juiz Rodrigo de Azevedo Costa gritou com Maria, a
chamou de "uma qualquer" quando foi acusado por ela de defender seu
ex-marido, e a pressionou a aceitar um acordo.
O magistrado também criticou a petição
elaborada por Hopner na frente de sua cliente e colocou em xeque sua atuação
profissional.
Quando Maria quis voltar atrás no
acordo, por entender que não seria mais benéfico para ela, o juiz adotou uma
postura agressiva e levantou a voz. Ela então aceitou o combinado, dizendo a
Hopner: "Então divide os imóveis, já que ele [Costa] está defendendo ele
[o ex-marido]".
O magistrado, em resposta, disse à
advogada que "seria muito bom no mínimo sua cliente pedir desculpas".
Maria o fez, mas ainda assim Costa reiteradamente ordenou que ela se
desculpasse. "Sabe o quanto eu estudei para a essa altura vir uma qualquer
e falar que eu estou defendendo parte?", afirmou.
O juiz também chamou a mulher diversas
vezes de "mãe" e sugeriu que ela procurasse terapia. Disse ainda que
também havia passado por uma separação, com gastos financeiros.
Durante troca de amenidades com o
advogado do ex-marido, afirmou que o casamento não é necessariamente ruim:
"Talvez morrer queimado possa ser pior".
Ao longo da audiência, Maria chorou
diversas vezes e, assim como sua advogada, teve sua fala cortada em vários
momentos pelo magistrado.
"Eu me senti um lixo, nua, no
sentido de vergonha, porque ele estava me diminuindo, menosprezando meu
trabalho como advogada", diz Hopner à Folha. Segundo a defensora, sua
cliente ficou muito abalada após a audiência e teve que procurar ajuda
psicológica.
"Criou-se um ambiente tão hostil
que ela foi psicologicamente forçada a aceitar um acordo no qual perdeu mais de
R$ 200 mil, e ainda passou vergonha na frente de pessoas que não poderia
passar. Ela foi para a audiência se sentindo bem, segura, e o juiz a destruiu.
Foi pesaroso de ver, me doeu demais", afirma Hopner.
Essa foi apenas uma das audiências
conduzidas pelo magistrado que viralizaram nas redes. Em outra, ele afirmou que
"se tem Lei Maria da Penha, eu não estou nem aí" e "uma coisa eu
aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça". O caso foi
revelado pelo blog Papo de Mãe, do UOL.
Ao fim de abril, integrantes do Órgão
Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram afastar Rodrigo de
Azevedo Costa de suas atividades durante o curso do PAD (procedimento
administrativo disciplinar) aberto contra ele.
A defesa do juiz disse à reportagem que
não se manifestaria sobre o caso nesse momento, já que o procedimento está em
curso.
Após a decisão da corregedoria, Hopner
entrou com uma ação na Justiça contra o estado de São Paulo representando duas
mulheres que se sentiram ofendidas pelo magistrado nas audiências.
A Lei Ôrganica da Magistratura prevê
que é dever do juiz "tratar com urbanidade as partes, os membros do
Ministério Público, os advogados, as testemunhas" e "manter conduta
irrepreensível na vida pública e particular".
As penas disciplinares contra os
magistrados são advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade,
aposentadoria compulsória ou demissão.
Já o Código de Ética da Magistratura
observa que os juízes devem agir com cortesia e prudência, utilizar
"linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível", manter
postura aberta e paciente para receber argumentos ou críticas e preservar a
dignidade, a honra e o decoro de suas funções.
Presidente da Comissão Nacional de
Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia da OAB (Ordem dos Advogados
do Brasil), Alexandre Ogusuku afirma que existe no país "uma crença que o
corporativismo institucional tudo resolve, tudo abafa".
Ele diz, porém, que esse quadro deve
ser revertido, já que as gravações passaram a ajudar na obtenção de provas para
corroborar as denúncias nas corregedorias.
Segundo o advogado, o "excesso de
autoridade" sempre existiu no Judiciário, mas, antes das audiências
virtuais, 90% das reclamações eram arquivadas por falta de provas.
"Não se podia gravar as
audiências, não havia recursos audiovisuais. Até que veio a pandemia e as
inovações tecnológicas, que têm proporcionado esse triste espetáculo de alguns
do Poder Judiciário", afirma.
Para a advogada Ana Carolina Moreira
Santos, vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB de São
Paulo, mais do que um meio de produção de provas, as audiências virtuais
serviram para coibir abusos durante as audiências e sessões.
"As autoridades hoje violam menos
o dever de urbanidade exatamente por saberem que estão sendo gravadas. Além de
ajudar a obter a prova, tem uma função pedagógica. Tanto para a sociedade, para
que tenha a compreensão das dificuldades da advocacia, quanto para as próprias
autoridades, que hoje sabem que estão sendo vigiadas", diz.
Santos afirma que a violação de
prerrogativas acontece com advogados e advogadas, mas ressalta que no caso das
mulheres a abordagem é diferente e envolve menosprezo.
"Temos uma situação em que uma
advogada fez o uso da palavra de uma forma um pouco mais firme, e o juiz disse
que 'ela bravinha ficava muito bonitinha'. É um tipo de abordagem que homens
advogados não sofrem."
A lei 8.906 (Estatuto da Advocacia)
prevê no artigo 6º que não há hierarquia nem subordinação entre advogados,
magistrados e membros do Ministério Público, "devendo todos tratar-se com
consideração e respeito recíprocos".
No ano passado foram abertos 16 processos
administrativos disciplinares na Corregedoria Nacional de Justiça. Até setembro
de 2021, foram 11.
A reportagem encaminhou perguntas para
o órgão a respeito das audiências virtuais e da produção de provas, do papel do
CNJ (Conselho Nacional de Justiça) diante da viralização de casos de abuso por
parte de magistrados, e da alegação de advogados sobre a existência de
corporativismo no Judiciário, mas não obteve retorno.
Não só juízes, porém, foram gravados
faltando com o respeito durante audiências virtuais. Durante uma sessão na 3ª
Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, em dezembro do ano
passado, um advogado começou a gritar e a xingar um desembargador que disse que
sua sustentação estava confusa e que iria mudar de voto.
"Inclusive se quiser ir para a
casa do caralho vá também, Vossa Excelência. Vá para a puta que te pariu,
foda-se", disse, exaltado.
O presidente da sessão, em seguida,
pediu a transcrição da fita para comunicar a OAB, e o processo foi retirado de
pauta.
Ana Luiza Albuquerque, (Folhapress), no Yahoo
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