domingo, 12 de setembro de 2021

Política audiovisual - sobrevivendo no inferno

 


Ancine: mesmo entrincheirada entre o TCU e o bolsonarismo, a agência federal mantém-se de pé e chega aos 20 anos


Há 20 anos, no dia 6 de setembro de 2001, foi publicada a Medida Provisória 2228-1, que instituiu as bases da política audiovisual brasileira e criou a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Fruto da organização de um grupo de cineastas e produtores que desejavam uma relação mais próxima entre o cinema e o Estado, a Ancine alterou de forma profunda o lugar do cinema brasileiro na sociedade e no mercado.

Em 2001, 30 longas-metragens brasileiros haviam entrado em cartaz. Em 2019, último ano pré-pandêmico, foram 169 as estreias de filmes aqui produzidos. Nesse período, o número de espectadores dos filmes feitos no País saltou de 6,9 milhões para 24 milhões (ver gráfico na pág. 58). Calcula-se que, desde então, a Ancine tenha se envolvido na produção de 2 mil obras, entre séries e longas-metragens.

Nos últimos dois anos, no entanto, a agência mergulhou numa crise que fez com que se duvidasse que completaria, de fato, seu 20º aniversário. A Embrafilme, empresa estatal criada em 1969, chegou aos 20 anos, mas, antes de fazer 21, foi extinta pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello. Jair Bolsonaro ameaçou fazer o mesmo.

Em 2019, poucos meses depois de Bolsonaro ter sido empossado, descobriu-se que havia uma bomba-relógio armada na agência. O Tribunal de Contas da União (TCU) vinha, desde 2017, apontando riscos para a política de cinema, como a lentidão na análise de projetos e a concentração de recursos em poucos beneficiários. Mas, naquele momento, o órgão publicou um acórdão no qual questionava também o sistema de prestação de contas.

Esse acórdão, além de ter ­desencadeado a paralisia no sistema de financiamento, fez com que Bolsonaro olhasse para a Ancine. E disso, obviamente, boa coisa não poderia sair. Na live de 25 de julho de 2019, o presidente, ladeado por uma tradutora de libras e por um major da PM, afirmou: “Vejam como funciona a tal da Ancine, né? Teve uma liberação de 530 mil reais para fazer um filme comigo. Olha como os caras são legal, bonzinho (sic). Depois da notícia de fazer um filme sobre mim, a Ancine ganhou mais um F.O. positivo – fato observado positivo. Vamos buscar a extinção da Ancine”.

Dias antes, Bolsonaro havia atacado Bruna Surfistinha, dizendo ser inadmissível que, com dinheiro público, se fizessem filmes como esse. Prometeu então criar “filtros” para a produção. Dois meses depois, o governo publicou uma portaria que suspendia um edital voltado à produção de obras ligadas à diversidade ­sexual – por causa da portaria, o ex-ministro Osmar Terra tornou-se réu em uma ação por improbidade administrativa.

Como se o TCU e o bolsonarismo não fossem o bastante, a agência vivenciou, em meados de 2019, o afastamento de seu diretor-presidente, Christian Castro. Ao lado de outros servidores, ele era investigado numa ação que apurava violação de sigilo institucional e prevaricação. No mês passado, a Justiça determinou o trancamento do processo e concedeu habeas corpus a todos os acusados.

A pendenga fez, porém, com que a agência terminasse 2019 em frangalhos, com apenas um membro na diretoria colegiada – originalmente composta de quatro pessoas. Esse diretor era Alex Braga, procurador federal que está na Ancine desde 2003 e que, no mês que vem, deve assumir a sua presidência.

A diretoria tornou-se, nesse momento, um espaço cobiçado por bolsonaristas de diferentes matizes. Enquanto o próprio presidente da República declarava desejar um presidente “terrivelmente evangélico”, ex-alunos do guru Olavo de Carvalho e assessores políticos do PSL se engalfinharam por uma cadeira.

Entre entradas e saídas, pressões e negociações, Bolsonaro nomeou, há dois meses, três servidores de carreira como diretores efetivos – os primeiros desde 2019. São eles, além de Braga, os especialistas em regulação concursados Vinícius Clay e Thiago Mafra. Sobrou ainda, como interino, Mauro Gonçalves de Souza, ex-assessor de um deputado militarista do PSL.

Quando se pensa no destino da Fundação Palmares, sequestrada pela ideologia mais tacanha abrigada no bolsonarismo, ou da secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, comandada por André Porciúncula, porta-voz agressivo da teoria da “mamata na cultura”, vê-se que a Ancine foi, em alguma medida, poupada da destruição.

“Ainda que claramente cedesse a pressões do governo para estabelecer-se no posto, especialmente em relação à morosidade das liberações de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), Braga não transformou a Ancine em uma produtora de filmes conservadores nem foi uma versão, no século XXI, de Ipojuca Pontes (secretário da Cultura de Collor), um feitor que, a partir de declarações polêmicas, promoveu o desmonte da Embrafilme”, escreve o pesquisador Marcelo Ikeda, autor do livro ­Utopia da ­Autossustentabilidade: Impasses, ­Desafios e Conquistas da Ancine (2021).

A morosidade apontada por Ikeda diz respeito ao manejo dos recursos do fundo que, desde 2012, responde por boa parte do apoio ao setor no Brasil. No ano passado, várias produtoras entraram na Justiça pedindo a liberação de recursos represados e apontaram o sufocamento premeditado do fomento.

A Ancine, do seu lado, respondeu à Justiça que o FSA precisava não só adequar-se às novas exigências do TCU, como passar por um ajuste contábil, uma vez que apresentava um descompasso entre as disponibilidades orçamentária e financeira. Um novo relatório do TCU, publicado em agosto, confirmou a existência desse déficit.

De acordo com o TCU, o desequilíbrio no fundo foi agravado em 2018, quando foram aprovados 1,2 mil projetos no sistema de “fluxo contínuo”, modalidade que, ao contrário dos editais – até então o modelo dominante – não implica um processo seletivo. Em 2016, tinham sido 258 aprovados por esse sistema; em 2017, 478. O novo ritmo do desembolso era, segundo o TCU, incompatível com a capacidade técnica e operacional da agência. “E´ fácil discernir a rápida ‘queima de caixa livre’ no segundo semestre de 2018”, escrevem os auditores. “Justamente isso (...) explica – melhor que qualquer outra hipótese – a redução do ritmo de seleções e contratações do FSA.” O relatório, ao mesmo tempo, confirma a paralisia da política.

Enquanto, entre 2017 e 2018, foram aprovados quase 3 mil projetos em editais, nos últimos dois anos esse número despencou para 24 (ver quadro acima). Apesar de inegáveis, os problemas financeiros e de gestão da agência passaram a se confundir, no violento ambiente político bolsonarista, com a pressão do governo para que os projetos de filmes brasileiros ficassem na “geladeira”.

Desde o fim do ano passado, o passivo de projetos à espera de contratação tem sido reduzido e, recentemente, foram aprovados os primeiros novos editais desde 2018, no valor de 473 milhões de reais. Ao mesmo tempo, os produtores têm sido pressionados por diligências que os obrigam a caçar documentos de obras realizadas até 15 anos atrás – parte de um passivo de 4 mil prestações de contas.

Mundialmente, a política cinematográfica tem o propósito de contribuir para que, a despeito do domínio de Hollywood, os filmes locais sejam produzidos e vistos. No Brasil, essa política foi estabelecida na década de 1930 e sempre espelhou o intercâmbio entre decisões governamentais e demandas do setor. Com Bolsonaro, ainda que o vínculo entre cinema brasileiro e Estado tenha se mantido e a Ancine tenha conseguido chegar aos 20 anos, rompeu-se o intercâmbio.

Ana Paula Sousa, Revista Carta Capital    


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