O empenho repentino de certos políticos em
favor da Sputnik V exige que o país redobre a atenção para evitar que a vacina
seja aprovada na base do jeitinho e sem o necessário controle da ciência
Há duas
semanas, depois de ser cobrada a explicar seus critérios de análise sobre as
vacinas contra a Covid-19, a Anvisa encaminhou ao Supremo Tribunal Federal um
ofício em que defendia com veemência o rigor de seus protocolos. Na última quarta-feira,
3, a agência flexibilizou suas próprias normas e resolveu dispensar umas das
principais regras que balizavam a autorização para o uso emergencial dos
imunizantes no país: a obrigatoriedade de que testes fossem realizados em
voluntários brasileiros, uma exigência que precisou ser cumprida pela vacina da
AstraZeneca/Oxford e a Coronavac, da chinesa Sinovac.
A mudança de postura teve um claro propósito: agilizar a aprovação da vacina
Sputnik V, desenvolvida pelo laboratório russo Gamaleya e produzida no Brasil
pela farmacêutica União Química. Até então, a fórmula, defendida por políticos
de esquerda, como o governador petista da Bahia, Rui Costa, era mal vista pelo
governo de Jair Bolsonaro. De repente, veio a guinada. Imediatamente após a
flexibilização das regras pela Anvisa, o Ministério da Saúde anunciou que
negocia a compra de 10 milhões de doses da vacina russa. A expectativa do
governo é ter os imunizantes ainda neste mês de fevereiro.
Nesta semana, a revista científica The Lancet publicou resultados de um estudo
clínico atestando que a eficácia da fórmula é de 91,4%, mas ainda falta a
aprovação das principais agências sanitárias do mundo, como a dos Estados
Unidos e a da União Europeia. A despeito da evidente necessidade de ampliar a
campanha de vacinação no Brasil, o mínimo que se espera das autoridades é que
elas sigam o rigor necessário para que os brasileiros recebam imunizantes
seguros, devidamente submetidos aos protocolos científicos. A incúria do
governo federal na condução da pandemia, que incluiu o desrespeito ao
isolamento social, ao uso de máscaras, a prescrição de medicamentos não
recomendados pelos órgãos sanitários internacionais e a própria desqualificação
das vacinas, levou à morte de milhares de pessoas. É crucial, a esta altura,
que novos erros não sejam cometidos. Há perguntas a serem respondidas sobre a
repentina mudança na posição oficial em relação à fórmula russa, que,
estranhamente, passou a contar, em sua defesa, com uma insólita aliança de
políticos - desde a família Bolsonaro, que antes a criticava, a próceres do
Centrão.
Dentro do próprio Ministério da Saúde, acredita-se que a decisão da Anvisa foi
'política'. Assessores de Eduardo Pazuello avaliam que a guinada do governo em
favor de mais imunizantes - a medida da agência favorece também a Covaxin, da
Índia, e a vacina da Moderna, desenvolvida nos Estados Unidos - é, além de uma
resposta às pressões do Congresso e da sociedade, também uma reação aos órgãos
de controle que vinham cobrando medidas mais enérgicas no combate à pandemia.
'O Tribunal de Contas da União e
o Ministério Público estão praticamente morando aqui dentro', diz uma fonte da
pasta.
O esforço repentino da classe política em favor em particular da Sputnik V, no
entanto, é o que mais chama atenção. Durante o processo na Anvisa, antes do
anúncio da flexibilização das regras, representantes da União Química tentaram
forçar a mão para conseguir o aval ao uso emergencial da vacina sem cumprir as
exigências que valeram para as demais farmacêuticas. Os personagens envolvidos
na trama exigem cuidado.
Presidente da União Química, Fernando Marques escalou Rogério Rosso -
ex-deputado do Centrão, filiado ao PSD, e hoje lobista da empresa - para
coordenar os esforços pela aprovação da Sputnik. Pessoas próximas ao empresário
relatam que parte da operação contou, nos bastidores, com o reforço de Flávio
Bolsonaro e de seu ex-advogado, Frederick Wassef. O primeiro passo foi
persuadir Jair Bolsonaro. O filho 01 do presidente teria sido o responsável por
convencer o pai a aceitar o imunizante, cuja compra era rechaçada nas redes
sociais pela falange bolsonarista por ser uma 'bandeira da esquerda'. Um dos argumentos
utilizados por Flávio foi o de que o imunizante poderia ser produzido de forma
100% nacional, enquanto as vacinas dos institutos Butantan e da Fiocruz
dependem da importação de insumos da China. 'Nunca é bom quando se politiza
questões técnicas', observa Paulo Almeida, diretor do Instituto Questão de
Ciência.
Resolvida a questão no Palácio do Planalto, a União Química passou a atuar no
corpo a corpo com diretores da Anvisa para garantir a autorização ao uso
emergencial do imunizante. Mesmo com a flexibilização das normas da agência, a
farmacêutica ainda precisa apresentar estudos que comprovem a segurança e a
eficácia da vacina. Durante uma entrevista recente, Fernando Marques disse
contar com a ajuda de parlamentares. No Congresso, um dos entusiastas da
Sputnik V é o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros. Durante a semana,
Barros ameaçou 'enquadrar' a diretoria da Anvisa se ela não eliminasse
exigências e agilizasse a aprovação de vacinas contra a Covid-19. Parecia um
jogo ensaiado. O deputado disse ainda que a agência só derrubou a exigência de
ensaios clínicos de terceira fase para aprovação de vacinas depois que ele
protocolou um projeto para eliminar a etapa de testes. 'Eles tiraram a fase 3 e
colocaram um monte de exigências. Eles não entenderam ainda. Estão fora da
casinha', afirmou, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo.
Apesar das reações indignadas do presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, nesta
quinta-feira, 4, o Congresso deu a resposta que o presidente da União Química
tanto esperava. O Senado aprovou uma medida provisória que facilita ainda mais
a compra de doses do imunizante russo. O texto estabelece prazo de até cinco
dias para que a Anvisa autorize o uso emergencial no Brasil de vacinas que já
tenham aval internacional. A porteira para a Sputnik - já chancelada na Rússia
e na Argentina - parece ter sido definitivamente aberta. É preciso, porém,
esclarecer se ela não virá contaminada pelos interesses escusos dos políticos
que, estranhamente, passaram a defendê-la com tanto vigor. Daquilo que vem
deles, é preciso sempre desconfiar.
Por André Spigariol, na Crusoé Online
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