Área desmatada na Amazônia: autores do estudo criticam o que chamam de falsa dicotomia entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental |
Segundo pesquisa, crise sanitária é vista como "oportunidade" para reverter políticas ambientais em países com maiores florestas tropicais. No Brasil, retrocessos implicaram desmatamento e invasões de terras indígenas.
A maior crise sanitária global dos últimos 100 anos é
encarada também como uma "oportunidade" para corroer políticas
ambientais e sociais nos países com as maiores áreas de florestas tropicais. No
Brasil, Colômbia, República Democrática do Congo, Indonésia e Peru, governos
têm aproveitado a pandemia de covid-19 para reverter leis de proteção do meio
ambiente e como uma brecha para a exploração desenfreada de recursos naturais.
A conclusão é de um estudo publicado nesta
quinta-feira (18/02) por pesquisadores da Middlesex University of London e da
organização não governamental Forest Peoples Programme, ambas no Reino Unido, e
da Lowenstein International Human Rights Clinic da Yale Law School, nos Estados
Unidos.
No Brasil, os principais retrocessos apontados pelos
autores implicaram o aumento das invasões de terras públicas e territórios
indígenas, expansão do garimpo ilegal e da indústria da mineração, violações de
direitos humanos e leis de proteção ambiental, efeitos nocivos à saúde e
aumento do desmatamento.
"Infelizmente, governos estão justificando essas
regressões durante a pandemia dizendo que é necessidade econômica. Isso impacta
a vida das pessoas que vivem das florestas e os direitos delas. É importante
chamar a atenção pra isso no nível mundial", comenta Christopher Ewell, da
Yale Law School, em entrevista à DW.
Em todo o mundo, estima-se que até 1,4 bilhão de
pessoas dependam de florestas para sobreviver, dentre elas cerca de 500 milhões
de indígenas.
Com a maior floresta tropical do mundo, o cenário
crítico brasileiro se destaca entre os demais analisados na pesquisa. "Em
comparação com os outros países, o Brasil chama a atenção pela natureza
premeditada desses retrocessos. Em outros países é mais implícito, no Brasil os
ataques são diretos, principalmente contra os indígenas. É óbvio, e isso é
chocante", pontua Sofea Dil, uma das autoras norte-americanas, sobre as
ações do governo do presidente Jair Bolsonaro.
"Vemos o governo Bolsonaro usando a pandemia como
um escudo para flexibilizar muitas legislações ambientais e sociais no
Brasil", diz Ewell.
Ouro a qualquer preço
Um dos fatos destacados no estudo foi protagonizado
pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Em outubro passado, em plena pandemia,
ele defendeu publicamente o garimpo em terras indígenas.
Embora a Constituição proíba a atividade nesses
territórios, a Agência Nacional de Mineração recebeu 145 pedidos para minerar
em terras indígenas só em 2020, um recorde das últimas duas décadas. Estima-se
que, no total, mais de 3 mil requerimentos do tipo tenham sido encaminhados à
agência.
"O uso da pandemia para se apropriar de terras
para mineração, extração madeireira e agricultura industrial é uma ameaça
significativa não apenas para os povos indígenas, mas para vastas áreas de
floresta tropical em suas terras e territórios tradicionais", apontam os autores.
Thais Mantovanelli, antropóloga do Instituto
Socioambiental (ISA) e pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos
(Ufscar), que também participou da pesquisa, classifica o momento político como
preocupante. "A gente tem visto um movimento dentro do Congresso para
permitir mineração dentro das terras indígenas", ressalta.
Mantonavelli, que atua desde 2011 no Médio Xingu,
Pará, afirma que a região, marcada por obras que desrespeitaram a legislação,
teve a situação amplificada desde a chegada da covid-19. "Belo Monte foi
construída ali sem consulta livre, prévia e informação dos povos impactados. A
mineradora Belo Sun tenta licenciar uma mina muito perto dos territórios",
cita como exemplos.
Na Terra Indígena Trincheira Bacajá, homologada em
1996, as invasões de terras e desmatamento chegaram a níveis nunca antes
vistos, afirma a pesquisadora. "Isso tem a ver com toda a flexibilização
de leis, enfraquecimento da fiscalização dos crimes ambientais na Amazônia
levadas a cabo por Bolsonaro. Os invasores se sentem muito à vontade",
comenta.
A tendência em 2021 parece não ter mudado. Em
fevereiro, o governador de Roraima, Antonio Denarium, autorizou o garimpo
ilegal com uso do mercúrio, metal tóxico usado para separar o ouro dos
rejeitos. Nesse estado fica a maior terra indígena do país, da etnia ianomâmi.
Há anos, eles denunciam o aumento do garimpo ilegal na
região. Segundo a Hutukara Associação Yanomami, mais de 20 mil garimpeiros
estão na região. Durante a pandemia, os invasores trazem, além da doença, a
violência ao território.
Saúde em risco
Para Sofea Dil, da Yale Law School, os efeitos
negativos dos retrocessos observados durante a pandemia sobre a saúde de
indígenas brasileiros foram mais graves que em outros países. Dados da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apontam que o novo coronavírus
atingiu 162 povos das 305 etnias do país. Até essa quinta-feira, a covid-19 já
havia provocado a morte de 966 indígenas.
"O impacto do Ministério da Saúde na disseminação
de fake news, do uso da cloroquina como tratamento preventivo sem que haja
comprovação científica, chegou aos postos de atendimentos nas comunidades
indígenas e causou grande impacto", pontua Mantovanelli. "A situação
só não foi pior porque lideranças e organizações da sociedade civil se
engajaram no combate à pandemia, no incentivo à vacinação e contra medicamentos
que não fazem efeito."
Christopher Ewell, da Yale Law School, diz que parte
do trabalho da equipe internacional de pesquisadores é reconhecer que
retrocessos em leis sociais e ambientais no Brasil, com impacto grande sobre
populações indígenas, acontecem por influência econômica de corporações ou
instituições que estão nos países ricos.
"Deveria ser responsabilidade do governo
brasileiro assegurar os direitos dos brasileiros contra essas atividades
econômicas. É importante lembrar que, nos países desenvolvidos, cidadãos também
têm responsabilidades, já que se beneficiam tanto dos recursos naturais que vêm
de lugares como as florestas brasileiras", ressalta.
Falsa dicotomia
Os autores do estudo criticam ainda o que chamam de
falsa dicotomia entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, usada
por muitos governos analisados na pesquisa para promover os retrocessos.
"Vale lembrar que a ciência do clima mostra que
estamos muito próximos do ponto de não retorno da floresta por causa do tanto
que já desmatamos", afirma Mantovanelli, lembrando que, em 2020, o
desmatamento na Amazônia atingiu o maior patamar em mais de uma década, com
11.088 km² de devastação, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe).
"Sem a floresta, não vai ter chuva, nem para a
pecuária, nem para a soja. Preservar não se opõe a desenvolver", conclui
Mantovanelli.
Na
Deutsche Welle
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