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Judite e Holofernes, de Caravaggio |
Há muito tempo que gostaria de escrever sobre outra
coisa: a dimensão do realismo fantástico num país em que o presidente acha que
vacina nos transforma em jacaré, oferece hidroxicloroquina para a ema do
palácio e manda os jornalistas enfiarem uma lata de leite condensado no rabo.
Mas a urgência do drama proíbe digressão. Não absorvemos bem o que aconteceu em
Manaus. Não quero dizer apenas que era necessário avaliar os estoques de
oxigênio, planejar, em termos estratégicos, a produção e o consumo desse
elemento vital.
Pazuello foi a Manaus defender a cloroquina e não percebeu a gravidade da falta
de oxigênio. Quando percebeu a gravidade da falta de oxigênio, tarde demais, não
percebeu outro fato decisivo: a presença de uma nova variante do coronavíras.
Desde quando os japoneses sequenciaram o mapa dessa variante em turistas que
chegaram da Amazônia, era preciso acionar o alarme.
A variante brasileira tem características, ao que parece, semelhantes às
mutações encontradas na Inglaterra e na África do Sul.
Todos se adaptaram de tal forma que podem se propagar com mais facilidade.
Boris Johnson imediatamente decretou um lockdown para conter a nova onda que
estava a caminho.
No Brasil, confirmada a existência da variante, não houve um debate nacional
sobre o que fazer diante desse novo perigo. Na verdade, a variante brasileira é
mais destacada nos jornais estrangeiros do que nos nossos.
Parece que, no Brasil de Bolsonaro, adotamos aquele velho lema: desgraça pouca
é bobagem. Pazuello decidiu transferir os doentes de Manaus sem cuidados
especiais de segurança. O aeroporto de Manaus durante algum tempo foi muito
usado pelas UTIs aéreas que saíam do estado com os doentes mais ricos.
Somente Roraima e Pará, dois estados limítrofes, tentaram erguer uma tímida
barreira sanitária. A variante já apareceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul,
sem contar seus voos mais longos: Estados Unidos e Alemanha.
Os voos do Brasil para Portugal foram suspensos. Biden manteve as restrições à
entrada de brasileiros.
Muitos já notaram que Pazuello errou ao receitar hidroxicloroquina. Está sendo
questionado por isso. Errou ao ignorar o avanço da crise de oxigênio, algo que
não acontece de um momento para outro.
Mas não estamos cobrando do governo um projeto para conter a variante amazônica
no norte do país.Na verdade nem se toca no assunto, como se o vírus mutante
fosse brasileiro ejá tivesse o direito de circular livremente pelo nosso
território. Muito menos nos espantamos com o fato de os japoneses terem
sequenciado e anunciado a variante. Na Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, já era
conhecida. Mas a verdade é que rastreamos pouco, sequenciamos pouco, por falta
de recursos.
O negacionismo da política de Bolsonaro não se limita atiradas verbais. Ele tem
uma tosca base teórica. Prefere gastar com remédios a gastar com vacina e não
se preocupa com testes. Milhares deles foram abandonados num galpão de São
Paulo. O que adianta conhecer e monitorar? O que adianta sequenciar mutações de
vírus?
Pelo que li, o governo já sabe que uma nova onda virá, dobrando o número de
mortos. Diz que vai correr atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde
demais.
Quando Bolsonaro pagará por isso? Quem quiser pesquisar desde o início as
frases, decisões, atitudes, omissões vai recolher um acervo, mais amplo ainda
do que o enviado ao Tribunal Internacional.
Quando vejo Pazuello respondendo ao TCU pela compra da cloroquina, à PF pela omissão em Manaus, a
sensação que tenho é de que tudo é um único e indivisivel processo: a história
da negação e as mortes que ela produz diariamente no Brasil.
E ele é apenas o homem que obedece.
Governo diz que correrá atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde
demais. Quando Bolsonaro pagará por isso?
Por Fernando Gabeira, em O Globo
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