Há três anos, Esteban Diaz (nome fictício) foi aconselhado pelos médicos a entrar na lista de espera de transplantes de pulmão após uma longa batalha contra a fibrose cística.
A doença provoca produção excessiva de muco nos
pulmões e no pâncreas, deixando os pacientes extremamente vulneráveis a infecções
bacterianas.
No caso do francês de 47 anos, os antibióticos que
receitavam a ele desde a infância não eram mais eficazes contra as incessantes
infecções causadas por Pseudomonas aergonisa, uma bactéria agora classificada
como superbactéria.
Mas, em vez disso, Diaz viajou para a Geórgia,
ex-república soviética no Mar Negro, para se submeter à terapia fágica, um
tratamento médico que ele diz ter curado suas infecções em poucos dias,
aliviado a fadiga permanente, a tosse implacável e a falta de ar que o
atormentaram por décadas.
Para além desse caso anedótico, fagos ou bacteriófagos
são vírus que naturalmente atacam bactérias, as infectando e se replicando
dentro delas até que explodam, matando assim seu hospedeiro microbiano. Há
bilhões de fagos na Terra, e eles coevoluíram com as bactérias que infectam por
milênios, ajudando a manter seu número sob controle.
Eles foram usados terapeuticamente pela primeira vez
em 1919 por Felix d'Herelle, um microbiologista franco-canadense que recorreu
aos fagos para curar um menino que sofria de disenteria severa.
No entanto, a descoberta da penicilina em 1928 e sua
subsequente produção comercial na década de 1940 desencadeou a era dos
antibióticos, suplantando efetivamente a fagoterapia.
A função terapêutica dos fagos poderia ter sido
esquecida se não fosse pela colaboração entre d'Herelle e George Eliava, um
jovem cientista georgiano que viajou para a França em 1923.
Ele foi com o objetivo de estudar o desenvolvimento de
vacinas, mas acabou voltando sua atenção para os fagos depois de conhecer
d'Herelle no Instituto Pasteur.
Eliava voltou à Geórgia e convidou d'Herelle para
ajudá-lo a fundar o primeiro instituto de pesquisa e centro terapêutico do
mundo dedicado a bacteriófagos, no momento em que o país estava sendo
incorporado pela União Soviética.
Infelizmente, como milhares de intelectuais da época,
Eliava caiu em desgraça com o regime de Josef Stálin e foi morto em 1937. Mas o
patrocínio soviético à pesquisa e desenvolvimento de fagos para fins
terapêuticos continuou no instituto fundado por Eliava, anos depois de o mundo
ocidental ter deixado de lado essa abordagem.
"A fagoterapia fazia parte do sistema de saúde
padrão da União Soviética", diz Mzia Kutateladze, diretora do Eliava
Institute.
"Dependendo do estado de saúde do paciente e do
tipo de infecção, os médicos decidiam se deviam usar fagos ou antibióticos ou
uma combinação de ambos."
O instituto, no entanto, enfrentou graves dificuldades
nos anos que se seguiram ao colapso da União Soviética. Alguns pesquisadores
recorreram ao armazenamento de culturas de fago em suas próprias casas para
salvá-los.
Mas o instituto logo viria a desempenhar um papel
fundamental ao reapresentar ao mundo o alcance e potencial da fagoterapia.
"Demorou muito para que as pessoas se
convencessem de que os fagos podem ser usados terapeuticamente", diz Kutateladze. "Mas a
resistência aos antibióticos
reforçou a necessidade de encontrar alternativas."
O instituto enfrentou enormes desafios quando começou
a apresentar seu trabalho internacionalmente no fim da década de 1990.
Mas em 2001, recebeu seu primeiro paciente estrangeiro
logo após uma conferência em Montreal — um canadense que sofria de uma infecção
óssea bacteriana chamada osteomielite, que os antibióticos não haviam sido
capazes de curar.
O tratamento funcionou e, graças à enxurrada de
notícias publicadas, pacientes de outras partes do mundo começaram a chegar ao
Eliava Institute.
"Dos 7 anos aos 17 anos... a cada três meses, eu
era sistematicamente bombardeado com dois tipos diferentes de antibióticos —
esse era o protocolo naquela época", relembra Diaz.
Por volta dos 30 anos, ele também desenvolveu zumbido
crônico no ouvido como efeito colateral do uso contínuo de aminoglicosídeos, a
família de antibióticos mais comum usada para tratar infecções por pseudomonas
como a dele.
Aos 40 anos, a resistência aos antibióticos se
estabeleceu — e o transplante duplo de pulmão foi a única opção que seus
médicos na França deram para prolongar sua vida.
Após se deparar com um documentário sobre a
fagoterapia do Eliava Institute em um canal de TV francês, ele comprou uma
passagem para Tiblíssi, capital da Geórgia.
"No quarto dia de tratamento, foi como se
tivessem levado minha doença embora. Dormi a noite toda pela primeira vez em
anos. É difícil de descrever... Praticamente podia sentir o oxigênio correndo
pelos meus pulmões. Foi incrível", diz ele.
Desde sua primeira visita, Diaz voltou regularmente a
Tbilisi para reabastecer o estoque de doses orais de preparações de fagos que
ajudaram a controlar as infecções subsequentes. Até que ele ficou sem fagos em
março do ano passado, quando a Geórgia fechou suas fronteiras no esforço para
combater a disseminação do coronavírus.
Assim que as restrições de viagem foram suspensas,
Diaz voltou para outra rodada de tratamento que, segundo ele, aliviou
imediatamente uma tosse persistente que contraíra nesse meio tempo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a
resistência antimicrobiana (AMR, na sigla em inglês) uma crise de saúde global
— e estima que até 30 milhões de pessoas serão afetadas até 2050.
Para pacientes com fibrose cística como Diaz, a
resistência aos antibióticos é a consequência inevitável de uma vida inteira de
prescrição de medicamentos.
Mas seu tratamento não foi isento de complicações.
Diaz teme perder seus benefícios se descobrirem que ele viajou para a Geórgia
para se submeter à fagoterapia, especialmente durante a pandemia.
Ele acrescenta que seus médicos e um importante grupo
de apoio a pacientes com fibrose cística na França também advertem repetidas
vezes contra a utilização de fagos para tratamento, uma vez que ainda não foi
aprovado para uso em países do Ocidente.
Mas isso não impede centenas de pacientes estrangeiros
de buscar fagoterapia na Geórgia, com um punhado de agências de turismo médico
de nicho atendendo a eles.
O francês Alain Lavit e sua esposa georgiana Irma
Jejeia têm ajudado pacientes como Diaz por meio de sua agência Caucasus Healing
desde 2016.
A maioria de seus clientes é francesa e, embora alguns
tenham falado abertamente com a imprensa sobre seus tratamentos com fagos,
Lavit diz que pacientes com doenças crônicas, como fibrose cística, preferem
manter o anonimato devido às complexas relações que desenvolvem ao longo da
vida com seus médicos.
"Não é ilegal ir para o exterior em busca de
tratamento, mas muitos dos pacientes com fibrose cística com os quais
trabalhamos estão preocupados em ofender seus pneumologistas, que consultam
desde a infância, e a maioria dos médicos não sabe nada sobre fagoterapia, por
isso sempre desaconselham", diz Lavit.
Uma cláusula do sistema francês de pensão por
invalidez, por exemplo, estipula que os pacientes devem procurar emprego assim
que se recuperarem da doença, tornando difícil para quem tem doenças crônicas
relatar qualquer melhora em seus sintomas.
"A terapia fágica não os cura, mas ajuda sua
condição", acrescenta Lavit.
Milhões de pessoas foram tratadas com fagos na
ex-União Soviética, e o Eliava Institute continua recebendo e tratando com
sucesso centenas de pacientes internacionais todos os anos.
Mas já se passaram pouco mais de duas décadas desde
que os cientistas ocidentais retomaram as pesquisas sobre fagoterapia e
conduziram os testes clínicos necessários para regular seu uso como medicamento
terapêutico.
O Phagoburn foi o primeiro ensaio clínico europeu
conduzido pela França de fagoterapia em queimaduras infeccionadas, seguindo
diretrizes médicas rígidas.
Parcialmente financiado com um subsídio de 3,8 milhões
de euros da Comissão Europeia, o estudo foi realizado entre 2013 e 2017, mas
foi encerrado prematuramente devido a alguns motivos, como o fracasso em
recrutar voluntários adequados e problemas na estabilidade dos fagos preparados
.
Além disso, levou dois anos (e uma quantidade
significativa do orçamento do projeto) para fabricar fagos de acordo com as
Boas Práticas de Fabricação (BPF) prescritas.
Embora o estudo tenha demonstrado que os fagos
ajudaram a reduzir a carga bacteriana em alguns pacientes, isso aconteceu em um
ritmo mais lento do que o tratamento padrão.
Uma decepção para os defensores da terapia fágica,
incluindo o Eliava Institute.
"Não se trata apenas do fracasso de um único
teste... afeta o conceito como um topo", diz Kutateladze, que acredita que
o tipo de fago, as doses receitadas e o método de aplicação do teste não foram
adequados para a infecção dos pacientes .
"É muito difícil seguir a forma clássica padrão
de aprovação. Não é uma fórmula química."
Os fagos devem ser combinados com as bactérias que
infectam para obter os resultados mais eficazes, diz ela. As preparações
médicas também precisam ser atualizadas regularmente, tornando mais difícil
para elas atenderem às diretrizes ocidentais estabelecidas, que são projetadas
para antimicrobianos convencionais.
"Esses são biomedicamentos e deveriam ter um
status separado, especialmente por serem naturais", afirma Alain
Dublanchet, um dos principais defensores da fagoterapia na França, que
frequentemente encaminha pacientes para a clínica do Eliava Institute, na
Geórgia.
Para ele, o resultado do ensaio Phagoburn tornou ainda
mais difícil para pacientes como Diaz falar abertamente na França sobre como os
fagos ajudaram a curar suas infecções.
"O principal obstáculo parece estar na
possibilidade de produzir suspensões de bacteriófagos que satisfaçam as
autoridades sanitárias [francesas]", diz.
Ele acrescenta que a concentração de fagos usados no
estudo Phagoburn também foi reduzida para ficar dentro do lado mais seguro
das diretrizes de fabricação de medicamentos, um fato levantado em vários
estudos de caso sobre as deficiências do ensaio.
Mas apesar do revés do Phagoburn, o fato da
fagoterapia ter salvado as vidas do americano Tom Patterson e da jovem
britânica com fibrose cística Isabelle Carnell-Holdaway de superbactérias
mortais foi amplamente divulgado.
Em ambos os casos, os fagos foram especialmente
preparados e administrados sob uso compassivo, uma cláusula que permite o uso
da medicina experimental como último recurso.
Embora vários países desenvolvidos, incluindo Reino
Unido, França e EUA agora permitam o uso compassivo de fagos avaliando caso a
caso, Dublanchet argumenta que isso deixa de fora muita gente que precisa
desesperadamente receber o tratamento.
"Parece absurdo esperar até que a vida das
pessoas atinja um estágio precário antes de sermos autorizados a [tratar] suas
doenças", diz ele.
A Bélgica tomou a dianteira como o primeiro país
desenvolvido a aprovar o uso de fagos como preparações magistrais, ou medicação
personalizada que pode ser preparada por um farmacêutico qualificado com base
na receita de um médico.
"Na Bélgica, passamos muitos anos discutindo com
os reguladores, mas isso foi um erro", afirma Jean-Paul Pirnay, diretor de
pesquisa do Queen Astrid Military Hospital, em Bruxelas.
"Os reguladores gostavam de fagoterapia, mas não
tinham o poder ou atribuição para alterar ou flexibilizar os regulamentos. Só
quando o ministro da saúde pública pediu oficialmente que nos ajudassem que a
bola começou a rolar."
Pirnay é o autor de um artigo que descreve as
recomendações para a fagoterapia na Bélgica, incluindo um sistema regulatório
para criar um banco de fagos testados e certificados necessários para
preparações personalizadas.
Segundo ele, há planos em andamento para exportar esta
solução para a Farmacopeia Europeia ou uma solução regulatória pan-UE para
reger o uso de fagos, mas a pandemia de covid-19 retardou o processo.
Com esses avanços, Pirnay acredita que é apenas uma
questão de tempo até que a fagoterapia personalizada seja aceita como uma opção
de tratamento padrão em todo o mundo.
Ele prevê isso no artigo Phage Therapy in the Year
2035 ("Terapia com fagos no ano 2035", em tradução literal) — metade
ensaio científico, metade enredo de ficção científica que retrata um futuro
sombrio "caracterizado pela superpopulação humana, grandes perturbações do
ecossistema, aquecimento global e xenofobia", onde a inteligência
artificial ajuda a combater doenças combinando os fagos certos para elas.
Mas 2035 é muito longe para quem está doente agora.
Cerca de 700 mil pessoas morrem atualmente a cada ano devido a infecções AMR.
De acordo com Pirnay, a alegoria futurística foi
inserida em seu artigo para destacar a necessidade urgente de uma solução.
Embora a OMS tenha afirmado repetidamente a
necessidade de priorizar alternativas aos antibióticos, nunca mencionou
oficialmente o potencial da fagoterapia.
Há também cada vez mais reivindicações de cientistas
de fagos para que a OMS ajude a direcionar o financiamento necessário para mais
pesquisas clínicas e testes com fagos para uso terapêutico.
Além dos desafios regulatórios, os fagos não podem ser
patenteados porque são produtos biológicos. Isso significa que a maioria das
empresas farmacêuticas evita financiar pesquisas para desenvolvê-los como
medicamentos.
As bactérias também podem desenvolver resistência a
fagos ao longo do tempo, uma questão que os pesquisadores de fagos e médicos
conseguiram contornar até agora. Eles fazem isso seja isolando novos fagos de
bilhões de amostras disponíveis na natureza ou treinando fagos em laboratório
para desenvolver novas maneiras de atacar as bactérias.
Este último é um processo de coevolução do qual ambos
micróbios fazem parte há milênios.
Uma nova pesquisa identificou a imunidade defensiva
chamada sistema Crispr-Cas que as bactérias desenvolvem contra os fagos,
fornecendo mais pistas sobre como combater a potencial resistência.
Laboratórios de pesquisa em países como os Estados
Unidos estão se debruçando agora sobre fagos geneticamente modificados e
extração de lisinas, o agente ativo nos fagos que matam bactérias.
Isso, por sua vez, despertou o interesse de gigantes
farmacêuticas, uma vez que esses métodos podem ser patenteados, ao contrário
dos fagos naturais usados atualmente para uso terapêutico.
No ano passado, a Johnson & Johnson assinou um
contrato inicial de US$ 20 milhões com a Locus Bioscience para pesquisar e
desenvolver fagos com Crispr-Cas3, que poderiam destruir mecanismos de defesa
desenvolvidos por bactérias.
Em meio ao burburinho atual em relação às pesquisas
modernas sem precedentes sobre fagos, o trabalho do Eliava Institute está sendo
lentamente esquecido, mas não há como negar sua contribuição para a atual
discussão global sobre fagos, diz Pirnay.
"O Eliava Institute deveria receber mais crédito
pelo que fez, mas também pelo que ainda está fazendo."
Com poucos testes clínicos para fagos no Ocidente — e
bastante espaçados —, o Eliava Institute começou a compartilhar estudos de caso
de seus pacientes online. Kutateladze espera que isso possa ajudar os outros a
concentrarem suas pesquisas em questões mais cruciais.
"Na minha opinião, deveria haver muito mais
colaboração", diz ela.
"Muito tempo e dinheiro foram gastos em detalhes
que já pesquisamos e documentamos."
O instituto está atualmente colaborando com o grupo
suíço Ferring Pharmaceuticals e a empresa americana Intralytix para pesquisar e
desenvolver fagos para tratar problemas de saúde reprodutiva feminina. Também
faz parte de um consórcio financiado pela União Europeia para estudar o uso
potencial de fagos no tratamento da asma infantil.
Enquanto isso, o Eliava Institute continua a ser uma
das únicas clínicas no mundo onde pacientes podem ser submetidos a tratamentos
com fagos. A clínica lançou recentemente um serviço de consulta online para
ajudar pacientes desesperados que não podem viajar para a Geórgia devido à
pandemia de covid-19.
E também tem trabalhado na modernização de suas
instalações de produção para atender aos padrões BPF — uma tarefa desafiadora,
uma vez que o instituto está muitas vezes sem dinheiro, mas Kutateladze espera
que a reforma ajude a facilitar as exportações de suas preparações de fagos
para outros países.
Esta seria a solução ideal para pacientes como Diaz.
Ele prefere ir pessoalmente a Tbilissi para renovar seu estoque de fagos, a fim
de evitar que a alfândega os intercepte e destrua, como aconteceu no passado,
quando tentou mandá-los pelo correio.
"Que a fagoterapia não seja um tratamento
prontamente disponível é o maior escândalo da medicina moderna", diz ele.
Por Pearly Jacob, na BBC
- - - - -
No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Coleção As mais belas lendas dos índios da Amazônia” e acesse os 24 livros da coleção. Ou clique aqui.
No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Antônio Carlos dos Santos" e acesse dezenas de obras do autor. Ou clique aqui.
Clique aqui para acessar os livros em inglês. |
-----------
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |
Coleção Greco-romana com 4 livros; saiba aqui. |
Coleção Educação e Democracia com 4 livros, saiba aqui. |
Coleção Educação e História com 4 livros, saiba mais. |
Para saber sobre a Coleção do Ratinho Lélis, clique aqui. |
Para saber sobre a "Coleção Cidadania para crianças", clique aqui. |
Para saber sobre esta Coleção, clique aqui. |
Clique aqui para saber mais. |
Click here to learn more. |
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |
Para saber mais, clique aqui. |