Escravos no Brasil, em pintura de 1835: Darwin cita muitas vezes exemplos claros de crueldade contra negros |
Foi na Bahia e no
Rio que o naturalista se deparou pela primeira vez com a diversidade da
floresta tropical e também se chocou com a escravidão: pontos tidos como
cruciais para a elaboração de sua revolucionária teoria.
A passagem Charles Darwin (1809-1882) pelo Brasil pode ter sido
muito mais importante para a Teoria da Evolução das Espécies do que se costuma
imaginar. Muito se fala sobre as observações feitas pelo naturalista britânico
nas Ilhas Galápagos e na Patagônia argentina. Mas foi em solo brasileiro, há
185 anos, que ele se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta
tropical e também se chocou com a escravidão – reforçando suas convicções
abolicionistas de que todos os seres humanos compartilham a mesma linhagem
sanguínea em razão da ancestralidade comum.
Os dois pontos, segundo especialistas, foram cruciais para a
elaboração da revolucionária teoria que separou, pela primeira vez, a ciência
da religião, lançada, em 1859, no livro A origem das espécies.
Segundo a Teoria da Evolução, todas as espécies evoluem a partir de mutações
aleatórias e da seleção natural dos mais bem adaptados. E o homem é ligado a
todos os outros animais por descender de um ancestral comum ao dos macacos e,
por isso, não poderia haver diferenciação entre raças.
O HMS Beagle, comandado pelo capitão Fitz-Roy, partiu de
Davenport, na Inglaterra, em 27 de dezembro de 1831, para uma viagem ao redor
do mundo que duraria cerca de cinco anos. A bordo estava o jovem naturalista
Charles Darwin, de apenas 22 anos. Depois de passar por Cabo Verde, o navio
seguiu para o arquipélago brasileiro de São Pedro e São Paulo e para Fernando
de Noronha, antes de parar na Bahia. No livro Viagens de um naturalista ao redor
do mundo, Darwin dedica cerca de dez páginas a sua passagem por
Salvador, aonde chegou em 29 de fevereiro de 1832.
Embora a estadia na capital baiana tenha sido curta, Darwin
passeou pela cidade e chegou mesmo a explorar um pouco do interior, coletando
amostras de plantas, insetos e até um lagarto. Num dos trechos de seu diário,
ele nota que coletou uma grande quantidade de flores tão brilhantes e
coloridas, que seriam capazes de fazer um "florista enlouquecer”. Ainda na
cidade, Darwin enfrentou pelo menos duas experiências que considerou
assustadoras: uma forte tempestade tropical e o carnaval de rua de Salvador –
em que foi acertado pelas bolas de cera recheadas de água, o chamado limão de
cheiro, usado na época nos festejos.
Em suas anotações ele ressalta que todo o trabalho braçal era
feito por negros, registra relatos de escravos e se refere aos ingleses
preconceituosos como "selvagens polidos”.
"De onde vem a diversidade?"
Em 4 de abril, o navio chegou ao Rio de Janeiro, onde o
naturalista ficaria por mais de quatro meses. Um capítulo inteiro de seu livro
é dedicado a este período em que fez uma longa incursão pelo interior do
estado, coletando dados geológicos, amostras de plantas e animais e, como
sempre, histórias do horror da escravidão.
"O impacto da passagem de Darwin pelo Brasil não foi
pequeno e motivou a pergunta ‘de onde vem a diversidade?'”, afirma o presidente
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu Moreira, que
está terminando de organizar um livro reunindo todos os escritos de Darwin
sobre o Brasil, entre relatos de viagens e cartas. "Em vários trechos ele
diz que uma das coisas que mais o impressionaram foi a diversidade da natureza
tropical que viu em Salvador e no Rio.”
Charles Darwin vinha de uma família liberal e antiescravagista,
mas nunca tinha visto a escravidão de perto. A ideia de que a postura
antiescravagista de Darwin estaria na origem da Teoria da Evolução é defendida por
dois grandes especialistas na obra de Darwin e biógrafos do naturalista, Adrian
Desmond e James Moore, no livro A causa sagrada de Darwin.
"Vivenciar a escravidão desta forma e constatar a
diferenciação absurda feita entre seres humanos certamente o impactou
bastante”, sustenta Moreira. "Ele cita muitas vezes exemplos claros de
crueldade contra escravos e dá para notar claramente a irritação dele ao
discutir a escravidão com Fritz-Roy.”
Poucos dias depois da chegada de Darwin ao Rio, o naturalista
escreve que conheceu um inglês que se preparava para visitar suas propriedades,
"situadas a pouco mais de 100 milhas (160 km) da capital", ao norte
de Cabo Frio. "Ele teve a gentileza de me convidar como companhia, o que
aceitei com prazer”. A expedição começou no dia 8 de abril. Darwin conta que,
em meio a um calor intenso, o silêncio da mata era completo, "quebrado
apenas pelo voo preguiçoso das borboletas”.
Já neste primeiro dia, o grupo passou por uma fazenda na Lagoa
de Maricá. Lá ele ouviu uma história que reproduz em seus escritos. Um grupo de
capatazes teria sido enviado em busca dos escravos fugitivos e todos eles
acabaram se rendendo, encurralados junto a um precipício, à exceção de uma
mulher, já de uma certa idade, que preferiu se lançar para a morte.
"Praticado por uma matrona romana, esse ato seria interpretado e difundido
como amor à liberdade”, escreveu Darwin. "Mas da parte de uma pobre negra,
se limitaram a dizer que não passou de um gesto bruto."
"Jamais voltaria"
Outra história chamou muito a atenção de Darwin, desta vez numa
fazenda em Conceição do Macabu, no interior do estado.
"Ele fica particularmente chocado ao ver um capataz ameaçar
separar uma família como forma de punição”, conta Kátia Leite Mansur, do
Departamento de Geologia da UFRJ, uma das idealizadoras do projeto Caminhos de
Darwin, que mapeou toda a região por onde o naturalista passou em sua
expedição. "Ele escreve que além do uso da força, é um dos castigos mais
cruéis. E diz que jamais voltaria a um país em que houvesse escravidão.”
Em 2009, por conta dos 200 anos do nascimento do naturalista, 12
placas foram instaladas ao longo do percurso com informações sobre a sua
passagem. Ainda em 2017, Kátia espera inaugurar seis grandes painéis com
informações geológicas. Há ainda o projeto de se construir um espaço Darwin na
Fazenda Campos Novos, entre Cabo Frio e Búzios, um dos pontos de pouso do
naturalista. A fazenda, do século 18, é tombada pelo patrimônio, mas precisa de
reformas. Trata-se da mais antiga fazenda jesuíta que resta em pé no país.
"Darwin ficou muito tempo no Rio, onde fez observações
sociais, levantou questões relativas à escravidão, e ainda coletou muita coisa,
descreveu muitas plantas, bichos e rochas”, resume Katia. "O tempo que
passou no interior viu coisas que nunca tinha visto, restingas, borboletas.
Também descreve os lugares por onde passa, as hospedarias, igrejas, as comidas,
as pessoas. E é um relato muito poético, muito bonito.”
A viagem do Beagle estava prevista para durar apenas dois anos,
mas acabou se prolongando por quase cinco, com uma volta ao mundo, que incluiu
as passagens mais conhecidas da expedição do naturalista pelas Ilhas Galápagos
e a Patagônia. Quando finalmente voltou à Inglaterra, Darwin já era famoso por
conta das amostras que mandava regularmente a seu país.
Ao que tudo indica, não foi apenas a visão dos tentilhões e dos
fósseis de mamíferos gigantes que forjaram a mais revolucionária das teorias
científicas, mas também a exuberância da floresta tropical brasileira e os
horrores da escravidão.
Por Roberta Jansen, na Deutsche Welle
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