No fim da manhã de
ontem o telefone tocou num gabinete no terceiro andar do Palácio do Planalto
onde despacha o assessor especial do Gabinete Pessoal da Presidência da
República, Sandro Antonio Scodro.
A secretária
informou que o assessor, mais conhecido pelo sobrenome, Mabel, tomado de
empréstimo de sua antiga fábrica de biscoitos, não estava. Naquele momento,
disse, despachava com o presidente.
O despacho não
constava da agenda oficial do presidente Michel Temer. Até aí, nada demais.
Assessores especiais entram e saem dos gabinetes deste e de quaisquer
presidentes sem registro oficial. Assim o fazem o chefe do Gabinete Pessoal,
José Yunes, titular, até a posse do presidente, de um escritório de advocacia
em São Paulo, e Rodrigo Rocha Loures, ex-deputado federal pelo PMDB, herdeiro
da empresa de alimentos Nutrimental e colaborador de Temer desde a
VicePresidência. Assessor especial da Presidência nunca foi nomeado
No time de
assessores especiais com franco acesso ao gabinete presidencial está ainda
Nelson Tadeu Filipelli, ex-vice-governador do Distrito Federal pelo PMDB que,
assim como o titular do cargo, Agnelo Queiroz (PT), foi condenado no fim de
outubro pelo TRE por uso da máquina pública em tentativa de reeleição e tornado
inelegível por oito anos.
A particularidade
que distingue Mabel dos demais assessores é que ele nunca foi nomeado para o
cargo que exerce. A explicação colhida na assessoria de comunicação da
Presidência é que o ex-deputado, a despeito de ter vendido para a PepsiCo, há
cinco anos, a fábrica de biscoitos, sétima maior do país, por um valor
estimado, à época, em R$ 800 milhões, não quis se afastar dos negócios que
ainda mantém.
Desde o
impeachment, Mabel é um dos principais articuladores do presidente. No governo,
recebeu a missão de atuar como um dos coordenadores do Fórum Nacional de
Desenvolvimento Produtivo. A instância reúne empresários, sindicalistas e
representantes do governo para encaminhar propostas sobre alguns dos negócios
mais candentes da República, como as mudanças no acordo de leniência para
facilitar a reinserção das empreiteiras em contratos públicos. O acordo está
para empresas condenadas pela LavaJato, como a Odebrecht, como a delação
premiada está para penitenciários de Curitiba, como o ex-deputado Eduardo
Cunha.
Foi com o respaldo
do fórum que o líder dogoverno, deputado André Moura (PSC-SE), apresentou
relatório à proposta sobre o tema que excluía a obrigatoriedade de o Ministério
Público e o Tribunal de Contas da União avalizarem os acordos de leniência, tal
como está previsto na Lei Anticorrupção. O texto ia muito além da reinserção
das empresas em Licitações públicas. Anistiava e imunizava a celebrante e seus
diretores das penalidades já estabelecidas pela Lava-Jato. Era uma versão ainda
mais leniente do que aquela tentada pelo governo Dilma Rousseff em medida
provisória que extrapolou prazo de tramitação e caducou.
Sandro Mabel
coordenou as quatro reuniões realizadas sobre o tema. A lista de presença da
primeira delas, realizada no quarto andar do Palácio, registra 58 nomes, entre
eles os ministros Marcos Pereira (Desenvolvimento, Indústria e Comércio), o
empresário Jorge Gerdau, os dirigentes das confederações patronais, Luiz Carlos
Trabuco (CNF), João Martins da Silva Jr. (CNA), Clésio Andrade (CNT), Antonio
Oliveira Santos (CNC), e Mônica Guimarães (CNI), os dirigentes das
confederações laborais, Paulo Pereira da Silva (Força Sindical), Vagner Freitas
(CUT), Ricardo Patah (UGT), José Calixto (NCST) e Adilson de Araújo (CTB), além
dos presidentes do Ipea, Ernesto Lozardo, e do Dieese, Clemente Ganz.
Com tamanha
representatividade, o substitutivo, cujo texto acabaria por sumir dos registros
da Câmara dos Deputados, não custou a ganhar urgência na Casa. A missão que o
abortou se iniciou pelos procuradores de Curitiba, que atribuíram à proposta o
enterro da Lava-Jato, agitou os ministros do Tribunal de Contas e aportou no
gabinete de Torquato Jardim. O ministro da Transparência não participa do
fórum, a despeito de ter assumido a Pasta com a missão primeira de fazer
deslanchar os acordos de leniência.
Abordado por Mabel
num restaurante de Brasília, Jardim mobilizaria os sindicalistas do patronato e
das centrais trabalhistas, além do líder do governo, para convencê-los da
inconstitucionalidade da proposta. O novo texto ainda não foi apresentado pelo
líder do governo e Sandro Mabel não se dispõe a falar sobre o tema.
Ainda estão sob a
alçada do fórum que coordena temas tão palpitantes quanto desoneração às
exportações, mudança na lei de Licitações, aquisição de terras por estrangeiros
e revisão das áreas públicas e privadas de portos.
Mabel circula com
desenvoltura no Congresso desde o primeiro mandato como deputado federal em
1994. Foi relator de temas de grande interesse empresarial, como unificação do
ICMS, flexibilização da CLT, ampliação de recursos ao Carf e reestruturação do
Cade. No governo Luiz Inácio Lula da Silva agilizou propostas dessas áreas em
dobradinha com o então deputado Antonio Palocci, hoje prisioneiro em Curitiba.
No governo Dilma
Rousseff foi parceiro de Eduardo Cunha. Temas como a terceirização não teriam
andado sem seu empenho. Réu no STF, teve um processo jogado para a primeira
instância ao deixar de ser deputado, mas talvez não tenha se livrado da
justiça. A revista "Época" identificou trecho de delação a ser
homologada na Lava-Jato que atribui a Mabel a autoria de emenda a pedido da
Hypermarcas, em medida provisória sobre assunto diverso, esporte brasiliense
conhecido como jabuti.
Na Câmara, costuma
despachar nos gabinetes das liderança do governo e do PMDB. Ministros e
parlamentares se dizem surpreendidos pela ausência de filiação formal do
articulador que se identifica, para todos os fins, como assessor especial do
presidente da República.
Os governos do PT
foram acusados de transformar a Esplanada em cabides de emprego, alguns dos
quais abriram portas para malfeitos. O presidente Michel Temer talvez tenha
razão em concluir que Mabel não precisa de emprego. O loteamento que autorizou
dentro do Planalto é de outra natureza. O artigo 328 do código penal tipifica
como crime de usurpação da função pública o ato praticado por alguém que, não
estando na posse de cargo público, pratica atos a ele reservados.
Maria Cristina Fernandes, no Valor.
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